Revista Impressões Rebeldes

SELEÇÃO SOCIAL

A contribuição de alguns cientistas sociais que teorizaram sobre os laços de sociabilidade pode ajudar a entender melhor a estrutura das rebeliões. E a entender inclusive a razão das punições terem sido seletivas.

O Julgamento de Filipe dos Santos, óleo de Antônio Parreiras.

Douglas Coutinho Dias

Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Luiz Claudio Sant'anna Dos Santos

Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Mateus Gonçalves Gusmão

Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Rodrigo da Cunha Tourinho

Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Tauan Monteiro Cordeiro

Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Em capítulo escrito para a coleção História General de America Latina (Unesco), Laura de Mello e Souza categoriza didaticamente os movimentos rebeldes da época colonial em três grandes grupos (ou “momentos críticos”), divididos de acordo com as particularidades e contexto específicos no qual estavam inseridos, sempre estabelecendo as relações entre tais movimentos no Novo Mundo e os contextos específicos do continente europeu. O primeiro momento (1640-1684) se dá após a Restauração Portuguesa, em um contexto de recuperação e afirmação militar da metrópole perante seu vizinho ibérico; o elemento em comum: a disputa travada por alguns colonos desejosos em utilizar os indígenas como escravos. O terceiro momento (1789-1798) diz respeito ao contexto de “revolução atlântica”, para citar a autora, quando os ideais de liberdade e igualdade suscitados pela Revolução Francesa e reafirmados pelo pensamento ilustrado encontravam os resultados práticos da independência das colônias inglesas na América do Norte; dentre os movimentos, o ideal de emancipação, muito embora circunscrito às “pátrias locais”, uma vez que é sabido que a constituição de uma identidade nacional foi, de fato, posterior à independência política do país. O momento que nos interessa mais, no entanto, é o segundo (1708-1720). Em um contexto de participação portuguesa na guerra de sucessão espanhola, os constantes ataques de corsários franceses e ameaça de invasão iminente atiçaram insatisfações. Trata-se do período com o maior número de conflitos documentados em toda a época colonial, motivadas principalmente pelo aumento da cobranças de impostos, aprofundando divergências internas à sociedade luso-brasileira.

Um breve estudo da bibliografia produzida sobre o período demonstra que tais motins e rebeliões tinham uma característica social em comum: a presença de diversos grupos distintos. Bandeirantes, comerciantes, latifundiários, potentados, portugueses, colonos… Enfim, uma heterogeneidade social quando não evidente, ao menos aparente. Importante lembrar que essa marca não se demonstra apenas no estudo de rebeliões ou conflitos distintos, mas também no estudo dos exemplos específicos. O fato de Filipe dos Santos ter sido estrangulado e enforcado em Vila Rica enquanto Pascoal da Silva Guimarães saía “ileso” da querela, mesmo sendo apontado pelo então governador como o grande cabeça do motim, levanta questões importantes.

O que diferencia Filipe dos Santos do potentado Pascoal da Silva Guimarães? Ambos eram portugueses, brancos, livres… O que os diferencia talvez nada mais seja do que um circuito de relações e influências, sob a qual o segundo encontrava-se “protegido”. Seria essa também uma das explicações para compreender a resposta diplomática do governo português ao episódio acontecido durante a Guerra dos Emboabas. Manuel Nunes Viana era então uma figura por demais influente e prestigiosa naquela sociedade, como evidenciado pela sua “eleição” a governador da capitania que ainda nem existia oficialmente. Notável é, portanto, que os revoltosos que possuíam mais poder, seja político ou econômico, pareceram receber tratamento mais moderado no tocante ao aspecto punitivo, quando chegaram a serem punidos de fato. Mas o que salta aos olhos é a presença de tais circuitos e “redes”, laços de sociabilidade estabelecidos entre os potentados estabelecidos nas Minas no início do XVIII. Um indício claro de tal realidade se configura na observação do nome de Manuel Nunes Viana, importante figura e liderança dos Emboabas no conflito homônimo do início do século, em fontes que relatam os auspícios do ocorrido em Vila Rica. A justificativa das punições presentes no Discurso Histórico, sem autor comprovado, é eficacíssima nesse sentido, ao demonstrar a percepção do Conde de Assumar, então governador da capitania de São Paulo e das Minas, de que havia uma espécie de conspiração dentre alguns potentados locais pelo poder e primazia na exploração do ouro.

Os chamados “laços de sociabilidade”, ou “redes de sociabilidade”, podem ser melhor compreendidos a partir da leitura de de alguns sociólogos, em especial Ferdinand Tönnies e Émile Durkheim. Sendo escritos em época distinta ao recorte temporal de nosso objeto de estudo, faz-se necessário aludir que o uso da teoria deve ser problematizado sempre, portanto, permitindo uma aplicação mais segura.

Ferdinand Tönnies, autor alemão clássico da sociologia que viveu entre os anos de 1855 e 1936, é referência nos estudos de sociabilidade. É de uma de suas mais famosas antinomias que iremos buscar inspiração, a de comunidade e sociedade, fundamentada em sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft (Comunidade e Sociedade). Segundo o autor, a unidade-base da vida social seria a relação social, a qual implica em interdependências e no encontro de duas ou mais vontades. Assim, a vontade de um indivíduo (ou de uma pluralidade de indivíduos) interfere e se imbrica ante a vontade de outro indivíduo (ou pluralidade), fundamentando a relação social. A inter-relação entre essas vontades supracitadas define os tipos ideais trabalhados pelo autor.

“Comunidade” implica objetivos ou vontades em comum, coesão social, espaços compartilhados, enfim… Denotam uma relação típica entre indivíduos que se reconheçam em motivações ou propósitos análogos, semelhantes. Em A formação da classe operária inglesa, E.P. Thompson vai demonstrar que o fator crucial para o entendimento do processo de transformação dos trabalhadores em “classe”, foi a própria experiência e ação coletiva desses grupos em oposição às classes superiores da sociedade inglesa. Tendo a consciência de que o uso de “classe” não cabe ao nosso escopo espaço/temporal, mas inferindo na ideia de que o que constrói uma concepção comum entre esses grupos sociais distintos, com diversos interesses diferentes, são suas experiências e sua ação coletiva, compreendemos a base teórica de Thompson análoga, e para o nosso estudo, complementar à ideia de comunidade e sociedade de Tönnies, além de conectar-se ao pensamento de interdependências de Nobert Elias. “Sociedade” alude considerar avaliações mais racionais na interação social, pois nela está presente a conveniência de sujeitos autônomos em busca da realização de fins individuais. Permite a problematização, portanto, acerca de casos específicos em que indivíduos de origens sociais distintas lutem a mesma causa sob objetivos e motivações próprias de seus anseios. Esses dois tipos de manifestação de sociabilidade estudados por Tönnies, a comunitária e a societária, podem servir de arcabouço teórico valioso para estudar o problema por nós proposto. Dentre os potentados formaram-se redes de sociabilidade comunitárias, evidenciado não apenas pelas motivações compartilhadas, mas também pelos espaços igualmente compartilhados, os laços de afetividade e “carinho” estabelecidos dentre alguns… Um estudo prosopográfico seria de importância salutar nesse ínterim. E quando observamos a manifestação de diversos grupos sociais motivados ao embate na Vila Rica, em 1720, podemos tranquilamente refletir acerca de redes de sociabilidade societárias estabelecidas entre os líderes dos grupos-chave envolvidos. Aquilo pelo que Filipe dos Santos almejava e lutava poderia não ser necessariamente idêntica às razões de Manuel Nunes Vianna ou Pascoal Guimarães, no entanto tais figuras lideraram movimentos na mesma contenda, de forma bastante organizada. Motivações talvez “distintas” (dentro de um mesmo contexto e justificativa, deixemos claro), laços de aliança mesmo assim estabelecidos.

Válido também falar de Norbert Elias, supracitado, e seu conceito de “sistema de interdependência”, apresentado em A Sociedade de Corte. O autor demonstra sua análise da sociedade do Antigo Regime como alicerçada num sistema de trocas baseado nos “laços afetivos” através dos quais se expressava o jogo de interesses entre as partes envolvidas e que produzia um “sistema de interdependência”, que não se limitava à corte e a ambientes políticos, mas vinculava todas as relações sociais. Uso claríssimo em nosso debate, não só por relacionar-se à uma lógica social mais análoga ao nosso recorte, mas por incorporar de forma evidente a base da participação de diversos atores sociais nos conflitos, qual seja a busca por maiores vantagens, privilégios, fortificando a teorização sociológica já exposta anteriormente.

Vale o estudo e reflexão sobre tal problema, que pode enfim revelar-nos mais acerca dos atores e suas motivações em período tão conturbado e intenso da sociedade mineira, para não falar de toda a extensão da América Portuguesa em si. Perceber laços de sociabilidade que perdurem e tenham papel decisivo nos motins, bem como em suas respectivas punições, é a proposta aqui elicitada. Para que em meio ao caldeirão revoltoso da conjuntura mais crítica de nossa história colonial, possamos talvez divisar com ainda mais clareza seus ingredientes principais.

Bibliografia Básica

BOXER, Charles. A Idade de Ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

FIGUEIREDO, Luciano Raposo de. Rebeliões no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

FONSECA, Alexandre Torres. “A revolta de Felipe dos Santos”. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de (coord). História de Minas Gerais. As Minas Setecentistas. BH: Companhia do Tempo; Autêntica, 2007, vol 1, p.549-566;

GOUVÊA, Maria de Fátima. “Dos poderes de Vila Rica do Ouro Preto – notas preliminares sobre a organização político-administrativa na primeira metade do século XVIII”. Varia História. n. 31, p. 120-140, jan./jun. 2004.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1977.

SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 4. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Graal, 2004. 

_____. “Motins, revoltas e revoluções na América Portuguesa – Séculos XVII-XVIII”. In: Historia General de America Latina. UNESCO, vol. IV, cap. 17.

TÖNNIES, Ferdinand. “Comunidade e sociedade”. In: Miranda, Orlando de. Para ler Ferdinand Tönnies. 1. ed. São Paulo: EdUSP, 1995. p. 231-352.

 

 

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