Revista Impressões Rebeldes

UMA GUERRA POUCO (OU NADA) JUSTA

A assinatura de um tratado parecia ter garantido a paz roubada pela Guerra do Açu. O que ninguém esperava era que os conflitos retornariam e diversas vidas seriam tiradas.

"Índio Tarairiu (Tapuia)", óleo sobre tela de Albert Eckhout (1643) - Coleção Museu da Dinamarca

Patrícia de Oliveira Dias

Patrícia de Oliveira Dias é doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense e autora da Dissertação “Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira do Apodi-Mossoró (1676-1725)” (UFRN, 2015).

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As negociações os colonos e os nativos durante a Guerra do Açu culminaram com a assinatura de um tratado entre o principal líder indígena, Canindé, e o governador geral da região. Nele, Canindé reconhecia o rei de Portugal enquanto soberano de suas terras e garantiu o batismo de suas gentes em troca da manutenção das terras indígenas.

Quando esse tratado foi assinado, as tropas de Matias Cardoso não recebiam mais o soldo, o fardamento não havia chegado e as ajudas para o abastecimento delas não foram enviadas. A desmotivação desses homens era incontrolável, sobretudo após a escravidão dos indígenas ser considerada injusta. As fugas de paulistas para Palmares, em busca de melhores ganhos com a guerra passaram a ser corriqueiras. Cardoso continuou no Rio Grande, honrando seu compromisso de defender a capitania e os antigos moradores do Açu voltavam as suas terras e alguns outros solicitavam novas sesmarias.

Antes de desmobilizar suas tropas, o mestre-de-campo havia sugerido uma efetiva povoação das fronteiras da capitania e criar aldeias, em forma de arraiais. Açu, Jaguaribe e Piranhas teriam duas aldeias com cem casais de índios e vinte soldados, além do incentivo constante para a vinda de novos moradores. Essa proposta impossibilitava um desfecho bélico para a guerra e assegurava que as fronteiras estivessem salvaguardadas caso alguma cláusula do tratado assinado pelo Canindé fosse rompida e novos levantes surgissem. Matias Cardoso deixou a capitania, seguindo para o rio São Francisco, e estabeleceu fazendas de gado.

Os moradores do Rio Grande, o governo dessa capitania e de Pernambuco apoiavam esse final para o conflito. No entanto, o governo geral, sob o comando de João de Lencastro, entendia que o desfecho ideal seria uma guerra ofensiva, na qual a extinção dos índios levaria a uma paz perpétua. Ouvindo os argumentos dos dois governadores, o rei, por meio de uma carta régia de 10 de março de 1695, ordenava que um novo terço de paulistas deveria ser formado e enviado ao sertão daquela capitania para guerrear contra o gentio.

Neste momento, o governo da capitania do Rio Grande estava nas mãos de Bernardo Vieira de Mello, originário da capitania de Pernambuco e afinado com as pretensões do governador desta, e dos moradores do Rio Grande, de seguir com uma guerra defensiva. Como primeira medida de seu governo, Vieira de Melo convocou os moradores da capitania para discutir qual a melhor forma de agir contra os bárbaros. De comum acordo decidiram que deveria ser feito um presídio na ribeira do Açu, para servir de base para a defesa de tal localidade, construção iniciada em 1695. Os moradores se comprometeram de, por seis meses, sustentar as tropas para defesa com farinha. Além disso, Vieira de Melo se reuniu com os principais e ratificou a paz firmada em 1692.

No ano seguinte Manoel Alvares de Morais Navarro, sargento-mor do terço de Matias Cardoso, recebia a patente de mestre de campo do terço dos paulistas, com ordens para marchar imediatamente ao Rio Grande. No entanto, este mestre de campo tardou a chegar à capitania. Antes de assumir suas tropas, foi a Portugal solicitar ao rei mercês régias e deixou seu irmão, Jose Morais de Navarro, em São Paulo para convocar os homens necessários. Lencastro enviava cartas para todas as vilas de São Paulo assegurando que o terço não seria contratado, como foi o caso de Matias Cardoso, mas sim convocados como parte da tropa paga, o que garantia o pagamento de soldo. Além de que todas as terras que fossem conquistadas no sertão do Rio Grande seriam suas por direito, bem como os índios aprisionados poderiam ser considerados seus escravos.

Navarro chegou à capitania entre o fim do ano de 1698 e o início de 1699 e trouxe consigo dez companhias de soldados. No trajeto de navio da Bahia ao Rio Grande, os paulistas sofreram com doenças e mal tempo. Segundo o mestre de campo, Bernardo Vieira de Melo e os moradores, insatisfeito com sua chegada, dificultaram sua estadia, não socorrendo nenhum deles. Após alguns dias, partiram diretamente para Açu, onde fizeram seu arraial.

No mês de julho de 1699, os capitães Teodósio da Rocha e Pedro Carrilho acompanhavam Morais Navarro, com mais 130 infantes e 250 tapuias a uma visita às aldeias de índios aliados na ribeira do Jaguaribe. O principal objetivo era reunir homens para guerrear contra os Caratiu, também conhecidos como Airiu, considerados inimigos. Encontraram-se com Matias Peca, o principal Paiacu da aldeia missionada Madre de Deus. Partiram de lá com mais guerreiros para visitar a aldeia de Jenipapoaçu. Ao chegar à aldeia, foram iniciados festejos em comemoração a aliança dos dois povos. Durante as comemorações, Navarro atirou no irmão de Jenipapoaçu, afirmando que este estava prestes a lhe atacar. Em resposta, todos os homens de seu terço começaram a executar os indígenas. Os Paiacu caíram em uma armadilha. Ao fim da matança, contabilizaram cerca de 400 mortos e aprisionaram aproximadamente 300 homens. Esse episódio, conhecido como massacre do Jaguaribe, acentuou a diferenças entre os paulistas e os moradores da região, deixando ainda mais delicada sua relação com Bernardo Vieira de Melo.

Nas entrelinhas do conflito entre homens da Coroa e indígenas inimigos existia uma disputa de poder por aqueles sertões. Após esse massacre, esta disputa entre os paulistas, que ainda pretendiam ficar no território das Capitanias do Norte, representados por Morais Navarro e com apoio do governo geral, e os moradores do Rio Grande, representados principalmente por Vieira de Melo, com o apoio do governo de Pernambuco, escancarou-se. Após a apuração dos fatos, a Junta das Missões considerou o ato como guerra não justa, e uma carta régia obrigava a retirada do terço da capitania.

As ordens reais não foram cumpridas pelo governo geral de imediato, o que provocou mais ainda o governo de Pernambuco. Com o objetivo de protelar essa saída, Lencastro enviou a Portugal uma documentação justificando a permanência do terço. Após uma longa discussão sobre o caso, o rei resolveu que o mestre de campo deveria ser preso para cumprir pena sobre seus crimes. Assim, em 15 de dezembro foi ordenado que Cristóvão Soares Reimão, então ouvidor-geral da Paraíba, prendesse Navarro e libertasse os cativos. Além desta ordem, mais uma carta foi enviada diretamente para Lencastro. Nela o rei ordenava que as terras tomadas pelos paulistas no Açu fossem devolvidas aos antigos donos, o deveria dissolver o terço e perdia a jurisdição do Rio Grande, que agora respondia diretamente a Pernambuco. As ordens deveriam ser cumpridas imediatamente.

No campo de batalha os índios ainda continuavam seus ataques. Assim, o terço permaneceu no Açu, temporariamente sob o comando do irmão de Manoel Álvares de Morais Navarro, o sargento-mor José de Morais Navarro. O então capitão-mor do Rio Grande, Antônio Carvalho de Almeida, conseguiu fazer um acordo de fidelidade com os grandes principais dos Janduí em 1702, nas três novas aldeias: Nossa Senhora de Aparecida, na ribeira do Cará-Mirim, São Paulo, na ribeira do Potengi, e São João Batista, na ribeira do Cunhaú. Apesar do momento de aparente paz, o terço continuou nas ribeiras dos sertões, mas vigiados de perto, principalmente pela Junta das Missões.

Em junho do ano seguinte, Navarro foi soltou e voltou ao comando dos seus soldados. Em novembro do mesmo ano, os índios trarairiús da nação Icó, que habitavam a ribeira do Jaguaribe, mataram 18 pessoas na localidade. O governador de Pernambuco, Francisco de Castro Morais, encaminhou o terço para a ribeira para resolver o problema. A Coroa cobrou provas de que a Junta das Missões havia liberado esse ataque. O Padre Filipe Bourel, padre da missão do Apodi, enviou uma certidão afirmando que tinha liberado a ação dos paulistas. Assim, Navarro seguiu para o Jaguaribe, onde matou os índios e prendeu os sobreviventes. Enquanto cuidava de feridos, seu irmão, o sargento-mor José de Morais Navarro, continuou caçando os indígenas pela mata até encontrar os Icós e seus confederados, os Cariri e Paiacu. 150 indígenas foram mortos, inclusive o principal Icó. Segundo Puntoni, essa seria a última expedição do terço dos paulistas nessa guerra.

Em 1705, após essa última luta, os demais indígenas inimigos procuraram o mestre de campo para mostrar obediência e prometeu fidelidade ao Rei. O governador de Pernambuco mandou desativar o forte de São Francisco Xavier na ribeira do Jaguaribe. Os jesuítas, reconhecendo a dificuldade de manter aldeamentos em locais tão longínquos, transferiram os índios dos sertões para missões mais próximas do litoral.

Sebastião de Castro e Caldas assumiu o governo de Pernmabuco em 1707 e foi solicitado pelo governador geral, Luís César de Menezes, que averiguasse a situação do terço. Acreditava que estava tendo descaminhos no pagamento dos soldos. Havia pagamento, mas os militares que os recebiam não estavam ocupando sua função. A desconfiança se confirmou. O caso mais premente era o de Morais Navarro, que pediu dispensa de um ano para ir a São Paulo pra ao velório de sua esposa e não estava no Rio Grande quando mais uma rebelião de índios Janduí, entre os anos de 1712 e 1713, estourou. Até 1715, quando foi decretada novamente a prisão de Navarro, poucos sabiam de seu paradeiro. Em junho de 1716 o terço dos paulistas foi extinto, reduzido a duas companhias, incorporadas ao regimento que fazia a guarda da fortaleza dos Reis Magos, em Natal.

Segundo os argumentos do padre Antônio de Souza Leal, que escreveu ao Conselho Ultramarino em 1720, a guerra contra os bárbaros em poucos momentos foi justa. O argumento da violência de atos indígenas contra moradores do sertão e a criação e alimentação do medo do bárbaro levou a autorização de uma guerra total contra esses habitantes do sertão, muitas vezes prejudicando bom convívio entre brancos e índios. A guerra estava a serviço de muitos interesses, fossem políticos, como a disputa pela jurisdição das Capitanias do Norte entre o governo geral e o governo de Pernambuco, fossem econômicos, como disputa por terras entre os antigos moradores dos sertões que se viram ameaçados pelos paulistas, que tomaram suas terras, e a busca de mão de obra barata, escravizando os índios para alimentar um comércio de escravidão. Os bárbaros estavam longe de serem os índios, os portugueses se encaixavam melhor nessa categoria, segundo o padre.

Para Morais Navarro, a guerra contra o gentio era necessária e constante. Cita ainda, quando solicitou dispensa para entrega de armas recebidas para combater os tapuias, que possuía-las era necessário para a segurança das capitanias que guardava. Citou mais um exemplo de uma rebelião sufocada, no rio grande, em 1720, no lugar chamado Ferrero Torto, na barra do Potengi. Se não fosse a ação dos homens, que um dia foram do seu terço, os indígenas tinham pegado a pólvora e causado um grande estrago na capitania. Para Navarro, esta era uma “guerra viva”, a luta contra o índio bárbaro deveria ser constante

Bibliografia Básica

ALVEAL, Carmen. SILVA, Tyego Franklim da. Na ribeira da discórdia: povoamento, políticas de defesa e conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de história militar na idade moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012.

LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande do Norte. Edição especial para o Projeto Acervo Digital Oswaldo Lamartine de Faria. Coleção Mossoroense.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte: História e mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.

PIRES, Maria Idalina Cruz. “Guerra dos Bárbaros”: resistência indígena e conflitos no nordeste colonial. Recife: FUNDARPE, 1990.

PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora Hucitec, 2002.

SILVA, Tyego Franklim da. Na ribeira da discórdia: terras homens e armas na territorialização do Assú. Dissertação (Mestrado em história) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte: 2015.

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