Revista Impressões Rebeldes

FARDAS AMOTINADAS

Insatisfeitos pelos constantes atrasos nos soldos, a guarnição de Salvador rebela-se, em plena epidemia de febre amarela, colocando população e governo em pânico.

Salvador, ca. 1695. Ilustração do livro de François Froger, “Relation d’un voyage : fait en 1695, 1696 et 1697…” de 1698.

Fernando Pitanga

Fernando Pitanga é mestrando em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) e professor da rede pública de ensino.

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Salvador, sede do Governo-Geral da América portuguesa, anos finais da década de 1680. A cidade, principal centro político-administrativo da colônia, vive dias não muito felizes. O quadro econômico é grave pois o açúcar, principal fonte de rendas da região, tem os seus preços a cada dia mais reduzidos pela queda do comércio internacional, fragilizando bastante a situação financeira dos senhores de engenho, representantes do poder local, estacionados na Câmara. Esta, no momento, debatia sobre onde executar as ordens régias de se plantar 500 covas de mandioca por escravo – se nas terras ocupadas pela cana ou pelo tabaco- enquanto a fome dava os primeiros sinais de vida e prometia trazer muitos infortúnios para aquela Bahia de fins do século XVII.

Além da iminência da fome, outros dois cavaleiros do apocalipse davam as suas caras pela Bahia naquela época: a peste, na forma da febre amarela, ou bicha como era conhecida à época, e o resultado natural dela, a morte. Após fazer muitas vítimas em Pernambuco, a doença se alastrou pelo recôncavo baiano, chegando a capital da colônia em abril de 1686, segundo o relato contemporâneo de Sebastião da Rocha Pita, em sua História da América Portuguesa. Morador da Bahia, nascido em 1660, Rocha Pita é o principal cronista daqueles funestos acontecimentos, fazendo um relato com tintas fortes sobre a letalidade da doença: “Estavam cheias as casas de moribundos, as igrejas de cadáveres, as ruas de tumbas”.

Não havia uma guerra em curso para caracterizar o último cavaleiro e findar o quadro apocalíptico bíblico mas a situação parecia não estar muito longe do que a pintada pelo apóstolo João para retratar o fim dos tempos. Em tempos normais, de economia estável e sem epidemias mortais, a situação das tropas de Salvador, os conhecidos terços velho e novo, existentes desde a época posterior a invasão holandesa de 1624, era de absoluta penúria. Os soldos eram pagos pela municipalidade que, ciosa da sua falta de interesse em quitar seus compromissos, com a tropa, repassava a obrigação para contratadores que, em troca do direito de arrecadar as sucessivas contribuições impostas sobre o consumo do vinho português, deviam arcar com os efeitos da infantaria, como se referia os pagamentos da tropa à época. Os contratadores tampouco eram mais corretos em quitar os seus débitos com os soldados, aumentando mais ainda o clima de tensão.

Relatamos acima a realidade de tempos sem crise. Não é difícil inferir que naquela conjuntura de epidemia, crise econômica, potencializados por uma seca extremamente severa que assolou a Bahia nos verões de 1687 e 1688, que desestabilizou a produção agrícola e arremessou nas alturas os preços dos alimentos, os combalidos soldados dos terços de Salvador teriam seus efeitos ainda mais atingidos pelos acontecimentos. A desvalorização da moeda circulante em 20% no começo de 1688 é a senha para que tanto o senado da câmara quanto o contratador não cumpram suas obrigações com a tropa. Um pavio curto havia sido aceso perto de um barril de pólvora.

A referência à pólvora não poderia ter sido mais apropriada: Foi na Casa de Pólvora, onde obviamente se localizava o paiol da cidade, no campo chamado de Desterro, que os soldados dos terços resolvem se amotinar em 21 de outubro daquele ano. Ano fatídico pois ainda não haviam visto a cor de seus rendimentos, pagos em parte com farinha de mandioca, num ardil muito utilizado naqueles tempos para que os soldados não desertassem assim que recebessem o soldo e, obedecendo também a uma mentalidade típica daqueles tempos, de que os soldados não passavam de pródigos e beberrões e, desta forma, gastariam todo seu soldo na taberna ou prostíbulo mais próximos assim que estivessem com o dinheiro em mãos. Pagar em farinha em pelo bem dos próprios militares.

Em farinha ou em dinheiro, a realidade é que naquele momento os soldados tinham três pagas – feitas trimestralmente- atrasadas. Como súditos de Sua Majestade, aqueles membros da tropa não viam mais soluções para seus problemas do que a rebelião. Recurso, de certa forma, em moda desde a restauração do trono português, levado a cabo pelos Braganças em dezembro de 1640, a rebelião ganhou legitimidade dentro da cultura política portuguesa como recurso-limite para os povos que se vissem vexados no exercício de seus direitos por governantes e agentes reais que não os reconheciam, extrapolando suas atribuições políticas e fiscais, ou por negociantes inescrupulosos, que em nome de sua cupidez, não hesitavam em esconder mercadorias para forçar altas inflacionárias. Contra todos estes, e sempre em nome do rei , a rebelião era justificável, embora não fosse recomendada e muito menos estimulada.

Neste sentido, os soldados não enxergavam outra solução no horizonte. Homens desesperados pela miséria a que eram submetidos, pelo desprestígio social que os tornavam párias dentro daquela sociedade, entendiam que só teriam suas demandas atendidas por meio do confronto aos poderes estabelecidos. E, como uma estratégia eficaz de pressão, escolheram justamente o momento em que a epidemia de bicha tinha retomado o seu curso, vitimando principalmente o governador-geral Matias da Cunha, que jazia em seu leito no momento em que o motim estourou.

Novamente o relato contemporâneo conhecido é o de Rocha Pita, na História da América Portuguesa, publicada em 1730. Reunidos em torno da Casa da Pólvora, os soldados elegeram seus procuradores- momento importante em todas as rebeliões- e exigiram que os soldos atrasados fossem quitados no prazo de um dia, sob pena da cidade ser invadida e saqueada pela tropa. O arcebispo D. Manuel da Ressurreição- a quem caberia o governo caso Matias da Cunha expirasse- e os cabos, que se abstiveram de participar do protesto, tentaram instar os soldados a adotarem um comportamento cristão e misericordioso e não se rebelarem naquele momento, onde o governador-geral corria risco de vida tomado pelo vômito negro. Os soldados continuaram resolutos em seu intento.

Os membros do senado da câmara, apavorados diante da possibilidade de terem suas propriedades e vidas tomadas pelos amotinados resolveram agir. Reuniram as rendas obtidas para a reconstrução do cais de Viana, no reino, e as destinaram para o pagamento da tropa. Dos soldados especificamente pois cabos e oficiais, talvez já temerosos pela repressão que viria, abriram mão de se receber os seus atrasados. Os amotinados também contavam com uma repressão e, conhecedores dos termos que regiam a cultura política vigente, exigiram o perdão por todos os seus atos, que teria de ser assinado pelo governador moribundo. Aliás este seria o seu último ato nesse mundo, vindo a falecer logo depois. A revolta é encerrada no dia 24, deixando um saldo de vinte e duas mortes, não se sabendo o porquê delas.

O arcebispo de fato substituiu o governador até que chegasse outro. Pouco tempo depois alertava a câmara que os efeitos da infantaria estavam atrasados e que, novamente, os soldados poderiam se colocar em rebelião. A experiência não tinha sido muito feliz para o santo homem. Somente em junho de 1691, quase três anos após o levante, é que o novo governador-geral, D. Antônio Luis Gonçalves da Câmara Coutinho informa em carta ao rei D. Pedro II o que foi feito com os amotinados. Alguns haviam sido mandados, em degredo interno, para outras capitanias e outros tinham fugido para não sofrer o castigo. Somente um dos líderes, um certo João da Silveira Magalhães estava preso na cadeia da cidade. No final da missiva o governador-geral é taxativo “ (…) O que me parece é Vossa Majestade se não deve lembrar desta matéria por se não poderem castigar os culpados como mereciam (…)”. Era o que restava fazer depois de tanto tempo.

Os soldados baianos voltariam a se rebelar quarenta anos depois, em outra conjuntura. Os motivos seriam outros, não mais os soldos atrasados. Todavia, estes continuam a existir assim como os soldados continuariam vistos como uma parte menor da sociedade, homens desqualificados, ridicularizados pelas fardas pouco vistosas e sem brilho. Beberrões, gastadores, maltrapilhos, estrato desclassificado do mundo colonial, sendo lembrado somente na hora de combater os invasores estrangeiros, os escravos aquilombados e as tribos do gentio feroz. Serviço realizado, voltavam para o ostracismo. Não era dos menores castigos ser soldado na América portuguesa.

Bibliografia Básica

BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000

COSTA, Luiz Monteiro da. Na Bahia Colonial. Apontamentos para a história militar da cidade do Salvador. Bahia, Livraria Progresso Editora, 1958.

FIGUEIREDO, Luciano. Rebeliões no Brasil Colônia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005

PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Com introdução e notas de Pedro Calmon. São Paulo, Edusp/Itatiaia, 1976 ( Primeira edição, Lisboa 1730).

SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial. Recife, Fundação de Cultura da cidade do Recife, 2001.

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