Revista Impressões Rebeldes

BALAIADA (MARANHÃO E PIAUÍ, 1838-41): “POVO” E POLÍTICA

Adotando-se novas abordagens sobre a sociedade que produziu um movimento com as dimensões e características da Balaiada, pode-se superar a velha tendência de despolitizar a história dos movimentos populares no Brasil

Mapa da província do Maranhão em 1838, ano de início da revolta. ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig. “Histórias do Balaio”: Historiografia, memória oral e as origens da balaiada. IV Encontro Nacional de História Oral, Recife, p.85, nov. 1997

Marcelo Cheche Galves

Marcelo Cheche Galves é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e professor do Departamento de História e Geografia e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão. Autor do livro “Ao público sincero e imparcial”: imprensa e independência na província do Maranhão (1821-1826). São Luís: Café & Lápis; Editora UEMA, 2015.

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Há pouco mais de dez anos, a historiadora Magali Engel propôs, no texto Memórias e histórias dos balaios, publicado no livro A escrita da história escolar, o levantamento de um conjunto de abordagens referentes à Balaiada, apresentado como abordagens gerais, particulares, didáticas e paradidáticas. Tratava-se de revisitar um movimento conduzido por populações marginalizadas do interior da província do Maranhão, e também do Piauí, entre 1838 e 1841. Nesse período, brancos pobres, negros forros, escravos e índios foram protagonistas da cena pública, e mantiveram em alerta grandes proprietários, autoridades provinciais e imperiais, responsáveis pela dura repressão que pôs fim ao movimento.

Um dos objetivos da proposta de Engel era explorar as dimensões do variável e recorrente argumento de desqualificação política dos segmentos mais pobres envolvidos no movimento, e identificados por intermédio de uma diversidade de expressões, cuja aplicabilidade compreende desde a caracterização social até o modus operandi. Assim, “desocupados”, “fugitivos da justiça” e “assaltantes de estrada” protagonizaram “desatinos”, “violências”, “atrocidades”…

Ainda que ocupados, mais recentemente, em valorizar a luta empreendida pelos balaios, a autora identifica na diversidade dos trabalhos com os quais dialoga a permanência do argumento do caráter “não político” do movimento em sua versão mais popular, pressuposto que deita raízes na noção elitista de incapacidade endêmica das populações marginalizadas, que ainda estariam “despreparadas para a política”.

Para Engel, a viabilidade de se superar tal perspectiva conservadora a partir da ideia de uma “consciência política dos balaios” toma corpo a partir dos trabalhos de Matthias Assunção. O autor cuja tese, em alemão, foi defendida em 1990 e publicada em 1993, em 2015 ganha edição em português com o título De Caboclos a Bem-Te-Vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850. Assunção, alguns anos antes, em 1988, publicou em português A guerra dos bem-te-vis: a Balaiada na memória oral e, na sequência, vários artigos e capítulos de livro sobre o assunto – e a formulação da concepção de um campesinato maranhense, composto por três matrizes: indígenas destribalizados; descendentes forros e aquilombados de escravos africanos; e migrantes nordestinos. Em que pese o conceito de campesinato sobreviver com dificuldades à época de sua operacionalização por Assunção, o conceito ainda possibilita a identificação de grupos heterogêneos, articulados por um conjunto de relações não escravistas, exploradas pelo autor, a partir da mais escravista das províncias do Império, o Maranhão.

Ao colocar em xeque a ideia de monocultura escravista algodoeira, Assunção propôs um debate sobre a diversidade dos meios de produção que conviveram/conflitaram com aquela estrutura. Nas palavras do autor,

[…] a economia escravista de plantation – apesar de sua implantação tardia – caracterizou-se no Maranhão pelo desenvolvimento de uma economia camponesa relativamente importante, diferenciada e autônoma, sobretudo quando comparada a outras regiões brasileiras onde também predominou a grande lavoura escravista. Apesar de um segmento da economia camponesa assumir uma função complementar à economia de plantation, o antagonismo estrutural entre os dois setores está na base do conflito entre os fazendeiros escravistas e os camponeses, chamados e autodenominados caboclos desde aquela época. Este antagonismo foi a pré-condição para a eclosão da Balaiada (2015, p.21, grifos meus).

No trecho transcrito, transparece o principal pressuposto metodológico que orienta o argumento de Matthias Assunção: a perspectiva de uma história comparada – referenciada em matrizes interpretativas que caracterizaram outras regiões escravistas da América portuguesa, e depois do Império do Brasil -, à procura de especificidades da sociedade maranhense e, por conseguinte, das condições para a emergência da Balaiada.

No construto dessa história social, Assunção produz dois quadros, fartamente documentados, caracterizados pelas noções do que considera como especificidades da ocupação do território maranhense e, ainda mais claramente, da região do Maranhão Oriental, com foco no Vale do Rio Parnaíba, palco principal da Balaiada.

Uma síntese dessas singularidades pode ser observada a partir das seguintes características, todas elas contrastadas pelo autor com as regiões da plantation açucareira:

1 – às vésperas da Independência, a população ainda se concentrava no núcleo inicial da colonização, com incipiente inserção no centro sul da capitania;

2 – a população indígena, arredia ao domínio português, era superior à população colonial;

3 – eram predominantes os escravos da Guiné na região de plantation;

4 – era menor o predomínio da escravidão masculina;

5 – extensos territórios, nas imediações das zonas de plantation, escapavam ao controle das autoridades;

6 – a média de escravos por propriedade era inferior às existentes no engenho açucareiro;

7 – era pouco significativa a presença de uma classe média baixa, branca e escravista, capaz de cooperar com a estabilidade do sistema;

8 – parte da população livre, inclusive fazendeiros de médio porte, era hostil ao governo.

Ademais, Assunção destacou aspectos próprios da sociedade do Maranhão Oriental, tais como: ela era fortemente marcada pela presença de migrantes provenientes do Piauí e do Ceará; havia um número elevado de propriedades em que o dono não residia na freguesia; era forte a presença de proprietários médios e de uma “classe média rural”; era o mercado de terras ainda incipiente com predominância de formas não privadas de uso da terra.

Haveria assim, na região oriental da província, uma concentração de camponeses e de fazendeiros voltados para o mercado interno, cujos interesses se chocariam com aqueles defendidos por negociantes e proprietários envolvidos na economia algodoeira. A essa oposição estrutural, Matthias Assunção acrescenta razões políticas, observadas desde, pelo menos, a Independência, e agravadas com a Regência (1831-1840), que instituiu duas novidades: a Guarda Nacional e a Lei dos Prefeitos. Nos dois casos, a política praticada a partir de São Luís, centro de autoridade provincial, atingiria agora, mais efetivamente, a política local: pelas alterações provocadas na composição dos aparatos de repressão e pela prerrogativa do presidente da província de nomear os prefeitos. Para Assunção, essas mudanças teriam provocado, ou agravado, no âmbito provincial, o desequilíbrio do poder entre as elites locais e regionais.

De volta às considerações de Magali Engel, com as quais inicio esse texto, as pesquisas de Assunção qualificam a ideia genérica de “povo” a partir de um mergulho de fôlego em uma documentação que transparece os elementos que possibilitaram a luta por mudanças políticas a partir de projetos, por vezes dissonantes, mas profundamente “políticos”. É nesse ponto, especialmente, que Engel destaca o trabalho de Assunção: a mobilização da “população livre e pobre” – devidamente caracterizada por Assunção -, teve como uma das motivações sua “exclusão da política”, pensada também através de ações políticas que atingiram essa população, como no caso dos recrutamentos.

Por fim, cabe lembrar que estudos dedicados à “consciência política” de movimentos sociais, tendem a recorrer à produção escrita por integrantes desses movimentos como fonte principal da apreensão de suas concepções de mundo e desejos de transformação. Sob esse aspecto, o trabalho de Assunção nos lembra de que tais desejos, por vezes, dispensam formulação escrita, ou podem ser captados por um conjunto de elementos mais diverso, e complexo.

Bibliografia Básica

ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. (1988) A guerra dos bem-te-vis. A Balaiada na memória oral. 2 ed. São Luís: Edufma, 2008. Coleção Humanidades, v. 6.

______. De Caboclos a Bem-Te-Vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850. São Paulo: Annablume, 2015.

ENGEL, Magali Gouvêa. Memórias e histórias dos balaios: interpelações entre os saberes acadêmicos e a história ensinada. In: ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO, Rebeca (org.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 329-344.

GALVES, Marcelo Cheche. (2017). O Maranhão nas primeiras décadas do Oitocentos: condições para a eclosão da Balaiada. Almanack, (15), 356-359. https://dx.doi.org/10.1590/2236-463320171511

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