Revista Impressões Rebeldes

INDESTRUTÍVEL BALAIADA

Enquanto as elites dirigentes do Império se estruturaram no século XIX, indígenas e habitantes das matas lutavam contra os ricos e poderosos. A serra da Ibiapaba foi o cenário de resistências multiétnicas

Na fronteira entre Piauí e Ceará, as matas da serra da Ibiapaba serviam de refúgio e espaço da guerrilha de indígenas e grupos populares na Balaiada. Imagem atual da serra, disponível em: https://shre.ink/licensed-image
21 de dezembro 2023 Ano 11, n. 2 (jul-dez), 2023

João Paulo Peixoto Costa

é doutor em História Social pela Unicamp, professor do Instituto Federal do Piauí e do PROFHISTÓRIA da UESPI. Autor da tese, publicada no livro Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845). Teresina: EDUFPI, 2018.

A serra da Ibiapaba, longe de ser uma barreira entre os territórios de Ceará e Piauí, era a ponte que conectava os dois espaços. Desde o início da conquista portuguesa no século XVII, o histórico de migrações e campanhas militares é longo. Já na virada para o  Oitocentos, a carestia e os pesados impostos no Ceará fizeram com que muitos indígenas de Vila Viçosa, São Pedro de Baepina (Ibiapina) e São Benedito, localizados na serra, migrassem para o lado piauiense. Anos depois, no contexto da independência do Brasil, os indígenas da Ibiapaba foram recrutados para enfrentar possíveis investidas de forças portuguesas no Piauí. Juntos a outros grupos étnicos e sociais, protagonizaram saques às propriedades de quem identificavam como partidários da união com Portugal, os chamados “corcundas”. Na verdade, bastava ser rico para ser apontado como tal. 

A todos esses grupos diferentes, a elite proprietária era uma inimiga comum. Foi contra ela que muitos subalternos combateram após ser debelada a Confederação do Equador de 1824, o que se seguiu por boa parte da década de 1820. Após 1831, com a abdicação de D. Pedro I e o início do período Regencial, se iniciou uma impetuosa investida do Império contra esses grupos. Com o fortalecimento do poder das elites provinciais após o Ato Adicional à Constituição de 1834, muitas regiões do Brasil começaram uma violenta política de controle social dos mais pobres, com combate à vadiagem, arregimentação de mão de obra e recrutamentos forçados ao exército. 

De um lado a outro das fronteiras, a brutalidade atingiu a muitos, mas também, na mesma medida, a indignação. O que se seguiu foi a eclosão da Balaiada, iniciada no Maranhão com a liderança do vaqueiro piauiense Raimundo Gomes Vieira Jutahy, e que se alastrou pelo Piauí e no oeste do Ceará, justamente na serra da Ibiapaba. No final de 1838, há relatos da presença de cearenses caboclos (ou seja, indígenas) e cabras em Chapadinha, território maranhense, que diziam ter participado de conflitos em 1824 e se declaravam adeptos de Raimundo Gomes. As memórias revelam as experiências que compuseram a cultura política de grupos diversos que, ao atravessar as fronteiras provinciais, conviviam, agiam e se rebelavam juntos.

Em meados de 1839 já era conhecido das autoridades piauienses a participação de grupos da Ibiapaba na Balaiada. Em julho, o subprefeito de Piracuruca expressou seu receio acerca da proximidade da sua vila com a “… serra e Vila Viçosa, lugares estes que têm grande número de índios e outros de iguais sentimentos, […] em cujo lugar já ousam chamar a Raimundo Gomes nosso irmão, e com a maior satisfação dizem que o que se tem praticado no Brejo é justo.” (MIRANDA, J.; MARTINS, M. Piracuruca, 4 de julho de 1839).

Passados mais de 15 anos da presença de cearenses na independência do Piauí, as indignações aumentaram e ultrapassaram as fronteiras provinciais a ponto de se irmanar com o líder balaio Raimundo Gomes e apoiarem o ocorrido na vila do Brejo, antigo lugar de índios do Brejo dos Anapurús em território maranhense. 

A partir de então, as ações armadas a partir da Ibiapaba foram frequentes. Em setembro, um destacamento do exército em Matões (atual Pedro II), no Piauí, foi atacado por 56 rebeldes. Após roubarem munições e queimarem casas, seguiram para Piracuruca, onde foram sitiados e travaram uma batalha de 13 horas. 15 combatentes morreram e os sobreviventes retornaram fugidos à serra. 

No final de 1839 a estrada de Columinquara, nas imediações de Vila Viçosa, foi identificada como rota dos rebeldes da serra, que planejaram atacar Buriti dos Lopes, no Piauí, em 1840. A presença frequente nos balaios da Ibiapaba em território piauiense era motivo de preocupação das autoridades da província, que não conseguiram impedir a criação de um verdadeiro baluarte de revoltosos ao norte. Tratava-se do lugarejo de Frecheiras (hoje um distrito do município de Cocal da Estação), localizado entre Vila Viçosa e Parnaíba. Era um reduto multiétnico da Balaiada, reunindo pessoas de grupos e trajetórias diferentes, mas com o mesmo histórico de sofrimento e revolta e que compartilharam valores e estratégias de combate.

 

Caminho de Vila Viçosa a Parnaíba passando por Frecheiras. Mapa geográfico da capitania do Piauí e partes das do Maranhão e Grão-Pará, 1816.

 

O então presidente do Ceará, Francisco de Souza Martins, esteve nas proximidades de Frecheiras em junho de 1840 e produziu um relato sobre o cotidiano e os costumes dos que lá viviam. Os rebeldes eram indígenas, cabras (mestiços de indígenas com pretos) e escravizados fugidos. Alimentavam-se de gado, da caça, de frutas silvestres, de mandioca e milho que plantavam. Dormiam sobre o topo das árvores, utilizavam-se do fogo contra o frio da noite e construíam cabanas de folhas de palmeiras para se proteger da chuva. A grande maioria era analfabeta, rezavam o terço todas as noites, diziam obedecer ao rei e combater os cabanos que queriam governar no seu lugar. 

Os balaios tinham objetivos políticos claros, que se inseriam no contexto Regencial em que viviam e dialogavam com a própria experiência comum a todos os grupos envolvidos. Ou seja, na ausência do rei – que tradicionalmente representava uma proteção – restava apenas os abusos dos proprietários. Com a formação do Estado nacional, os ricos das diversas províncias foram alçados à elite governativa, oprimindo sem limites a população pobre. 

Um dos dados mais importantes do relato de Martins se refere às táticas de guerrilha dos balaios de Frecheiras. Construíram trincheiras de pedras para se proteger das balas dos soldados, após as quais, depois de forte resistência, fugiam para o mato. Contavam com espias por onde passavam as tropas, pobres da Ibiapaba que, por viverem as mesmas agruras, eram simpáticos à causa balaia. Faziam emboscadas para surpreender as tropas legalistas por meio de trilhos pelas matas ao lado da estrada, principalmente quando sabiam que algum destacamento se encontrava em lugar muito isolado para ser socorrido. A emboscada, o cerco e a consequente rendição eram rápidos e demonstravam o íntimo conhecimento da região e o apoio dos moradores aliados. Nunca faziam ataques em campo raso. A eles bastavam as armas que tinham à disposição, principalmente a clavina fina, com as quais tinham excelente pontaria. Era assim que funcionava a guerrilha dos balaios: atiravam, acertavam, se embrenhavam na mata e dificilmente eram encontrados.

De acordo com o presidente, os combatentes tinham “… por únicos vestidos camisas e ceroulas de algodão, que tingem de cor avermelhada com infusão de entrecasca de árvores. Essa cor, bem asquerosa, os confunde com os troncos das árvores, com as pedras e com os matos, atrás dos quais se escondem para dispararem os tiros de emboscada. Muitos agora estão quase nus, apenas cobertos de andrajos; não têm calçado algum e usam chapéus de palha; fazem exercícios de armas que tem aprendido de alguns soldados desertores ou prisioneiros; mas quase nenhuma disciplina e subordinação conservam aos chefe.”  (MARTINS, F.; COELHO F.. Vila Viçosa, 20 de junho de 1840).

As técnicas de camuflagem e a habilidade com as armas são exemplos dos encontros multiétnicos que a revolta proporcionou ao ultrapassar as fronteiras. Indígenas e outros habitantes das matas se aliaram com soldados desertores em torno de objetivos políticos comuns e formas próprias de organização. Tudo isso tornava a Balaiada um movimento quase indestrutível, mesmo com a repressão dos governos Imperial e das províncias. Frecheiras se transformou em uma base poderosa de ataque dos balaios, que se dirigiram à Ibiapaba em meados de 1840. Invadiram Ibiapina, Ipu, São Benedito – onde enfrentaram a tropa do líder indígena Luís José de Miranda, aliado das forças legais – e os lugares Buriti e Japitaraca. Travaram batalhas com mortes de inimigos, promoveram saques e queimaram casas. Construíram armadilhas de fossos nas estradas com espinhos por dentro e cobertos com palha e terra, mais um exemplo de suas técnicas de guerrilha. 

As tensões só arrefeceram com o “Golpe da Maioridade”, quando o então príncipe regente foi coroado como D. Pedro II aos 14 anos de idade. Foi a solução encontrada pela elite dirigente do Império para solucionar a ebulição generalizada que se encontrava em boa parte do país. Mas foi também uma vitória para boa parte dos combatentes da Balaiada, que se perceberam como vencedores ao verem o rei ocupar o trono como resultado de suas pressões. Depois disso, muitos largaram as armas e poucas referências aos combates nas fronteiras do Ceará com o Piauí aparecem na documentação da segunda metade de 1840.

Apenas no ano seguinte o tema volta a ser destacado. Domingos Ferreira Veras, proprietário de Frecheiras, e o preto maranhense Antônio de Souza Cabral, também liderança do reduto, foram recebidos pelo então presidente do Ceará, José Martiniano de Alencar. Declararam amor ao soberano e adesão ao seu governo, tendo sido esses os objetivos de suas campanhas militares, e desejavam estar pessoalmente com o imperador, por quem arriscaram suas vidas. 

O caminho para a ansiada paz na província, no entanto, seria traçado não somente com relações amistosas. Apesar da rendição da maioria dos combatentes, uma parte não se rendeu, recebendo ataques brutais das forças legalistas. Na virada de 1841 para 1842, os últimos balaios da Ibiapaba fizeram suas incursões. Foram identificados inicialmente como “magotes” vindos do Maranhão e do Piauí, e depois como os indígenas do Buriti. Fizeram ações em Mumbaba e Tapera Acima, ameaçaram Vila Nova (atual Guaraciaba do Norte) e finalmente foram presos. O chefe do grupo, Antônio Marques da Costa, e seus liderados foram enviados para a Armada Imperial no Rio de Janeiro, em um processo que pareceu uma ironia. Remetidos para o serviço militar após uma revolta contra os recrutamentos forçados, o destino dos últimos balaios do Ceará representava os limites do exercício da cidadania no contexto de formação do Estado nacional brasileiro.

Bibliografia Básica

ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841). In: ZARTH, Márcio. MOTTA, Márcia. (Org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história. Concepções de justiça e resistência nos Brasis. Volume 1. São Paulo: Editora UNESP, 2008, pp. 171-198.

ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”. Liberalismo popular e o ideário da Balaiada no Maranhão. In: DANTAS, Mônica Duarte (Org.). Revoltas, motins e revoluções: homens livres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, pp. 295-327.

COSTA, João Paulo Peixoto Costa. Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845). Teresina: EDUFPI, 2018.

MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Fortaleza: Imprensa da Universidade Federal do Ceará, 2018.

Fontes Impressas

MARTINS, F.; COELHO F.. Vila Viçosa, 20 de junho de 1840. Apud: NOGUEIRA, Paulino. Presidentes do Ceará: período regencial. 10º presidente, bacharel Francisco de Souza Martins. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XV, 1901, pp. 31-33.

MIRANDA, J.; MARTINS, M. Piracuruca, 4 de julho de 1839. Arquivo Público do Estado do Piauí, Série Balaiada, livro 6.

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