Revista Impressões Rebeldes

AO SABOR DO MOMENTO

Derrotados pelas tropas de D. João VI, revolucionários pernambucanos se viram diante de um dilema: eles seriam capazes de se organizar em “classes” nos cárceres da Bahia ou protagonizariam uma verdadeira inversão de hierarquias?

Fragmento do mural externo “Revoluções Pernambucanas (1817, 1824, 1948)” do artista pernambucano José Corbiniano Lins – Praça General Abreu e Lima (Recife), 1967

Gefferson Ramos Rodrigues

Gefferson Ramos Rodrigues é professor adjunto da UFOPA e doutor em História pela UFF, onde defendeu a tese: “Escravos, índios e soldados: povo, política e revolta na América portuguesa do século XVIII (Pernambuco, Minas Gerais e Bahia)” Niterói, 2015

A difusão das ideias liberais no Brasil ganhou terreno fértil em Pernambuco. As elites da província realizaram reuniões, assembleias e jantares onde defendiam o fim dos monopólios, o comércio livre e faziam críticas à Monarquia em favor de um regime republicano. As insatisfações eram alimentadas pelas dificuldades econômicas por que passavam. Com a transferência da família Real para o Brasil em 1808, houve o aumento de impostos a fim de sustentar o fausto da Corte no Rio de Janeiro, sem lhes trazer muito benefício.

Ao tomar conhecimento de encontros promovidos pelas elites pernambucanas, o governador da província lhes deu ordem de prisão. Na ocasião houve a morte de um oficial português, deflagrando o movimento no dia 6 de março de 1817.

Temendo reações, o governador fugiu do palácio abrigando-se no forte do Brum e, acuado, pelos revolucionários aceitou as exigências para que se retirasse de Pernambuco. Os pernambucanos assumiram, então, o controle do Recife e formaram ali uma Junta – inspirada no Diretório Francês de 1795 – composta por integrantes que representavam os setores considerados mais importantes: agricultura, comércio, magistratura, militares e o clero. O desembargador Antonio Carlos de Andrada e Silva, irmão de José Bonifácio, fazia parte de um conselho que assessorava o governo provisório. Este, era regido por uma lei orgânica, possivelmente da autoria de Frei Caneca, e inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França. A fim de ampliar o movimento, buscaram apoio em outras províncias (Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Bahia) e no exterior (Inglaterra e Estados Unidos).

Tão logo ficou sabendo do que se passava em Pernambuco, o governador da Bahia, Conde dos Arcos, deu ordens para a repressão. Mais tarde, as tropas se juntaram a outras que vieram do Rio de Janeiro. Com a cidade cercada, Recife foi bombardeada. Sem condições de oferecer resistência, a revolução chegava ao fim no dia 20 de maio do mesmo ano, interrompendo cerca de três meses de governo revolucionário.

A Revolução Pernambucana de 1817 foi estudada por Carlos Guilherme Mota (1972), Glacyra Nazzari Leite (1989), Evaldo Cabral de Mello (2004) e outros, mas, além desses autores, não despertou tanto o interesse dos estudiosos. A despeito disso, é um movimento muito bem documentado e conta com autores desde o século XIX – alguns deles testemunha ocular dos acontecimentos. É o caso de Francisco Muniz Tavares que escreveu “História da Revolução Pernambucana em 1817”. O livro, surgido em 1840, foi novamente publicado em 1917, centenário da Revolução, acrescido de notas e comentários do historiador e diplomata pernambucano Oliveira Lima. Nesta edição foi inserido um documento intitulado: “Um episódio da História da Revolução Pernambucana de 1817, na Província de Pernambuco, passado entre os presos do Estado na Cadeia da Bahia” (TAVARES, 2017, p. 473-484). O autor não foi identificado e em seu instigante relato, há referência a um acontecimento que, aparentemente, pode parecer mera curiosidade, todavia, uma leitura mais atenta evidencia o que pensavam importantes lideranças pernambucanas acerca das hierarquias sociais do período.

Esse artigo explora, desse modo, o episódio em que os revolucionários pernambucanos, presos na cadeia de Salvador, são instados a se organizar “em classe” a fim de receber comida nos cárceres. Se havia esperança de que pudessem se organizar de um modo mais horizontal, mais condizente, portanto, com o mundo que pretendiam transformar, o que se viu foi o reforço de tradicionais hierarquias típicas do Antigo Regime. O evento ainda contou com algumas nuances que valem ser apresentadas e o que se passa a debater a seguir vale-se deste valioso relato.

Com a derrota dos revolucionários pernambucanos, rapidamente iniciaram-se as prisões e punições. As condenações mais severas só foram suspensas quando do Rio de Janeiro foi enviado um grupo de desembargadores para realizar uma devassa compreendendo as cinco províncias envolvidas. Sob a presidência do desembargador Bernardo Teixeira, a comissão prendeu diversas pessoas, soltando as menos importantes, mandando as demais para prisão na Bahia.

Nos cárceres foram maltratados, saqueados e roubados. Isso porque quando enviados para as masmorras, eram despidos para evitar que se enforcassem com as próprias roupas e entre uma veste e outra sempre se achava algum dinheiro ou jóia, o que era rapidamente surrupiado pelo carcereiro. Este, era chamado de Corrêa, por alcunha, “mãos grandes” – notável pelos maus tratos e corrupção que dispensava aos presos.

Assim viveram 103 presos pernambucanos, entre 1817 e 1821, mantidos incomunicáveis de suas famílias, alvo de boatos e insultos dos guardas, em constante exasperação. Para eles nada era pior, no entanto, que a comida que recebiam. Quando alguém se recusava a comer, era logo repreendido com violência. Isso porque o carcereiro embolsava boa parte do dinheiro reservado ao sustento dos detentos.

Diante da situação, os presos enviaram vários requerimentos – escritos notadamente pelo desembargador Antonio Carlos – ao governador da Bahia, Conde dos Arcos, queixando-se do guarda dos presos, mas, sem sucesso. O Conde confiava em seus subordinados, que, por sua vez, estavam em conluio com o carcereiro. Eles informavam que os pedidos partiam de “negros e alguns escravos”, motivo por que eram sempre recusados.

Essa situação permaneceu inalterável até que, mais uma vez, do Rio de Janeiro veio o ajudante de ordens do Conde, Major do Estado Maior do Exército, Ignacio Gabriel Monteiro de Barros, “jovem honesto e circunspecto, ainda virgem no manejo da perversidade” (TAVARES, 2017, p. 478.), segundo o autor anônimo. Com a chegada do Major, os presos fizeram novo requerimento, levado mais uma vez ao Conde. Este retrucou com o mesmo argumento de sempre – o de que a queixa partia de negros escravizados – ao que o Major ponderou dizendo ter vindo do desembargador Antonio Carlos, o Morgado do Cabo. O Conde pediu então que o próprio Major fosse pessoalmente averiguar a situação.

Ao chegar aos cárceres o Major ficou horrorizado com o que presenciara, “vendo aqueles grupos de cinco e seis homens distintos, assentados no chão, tendo sobre esteiras ou bancos, um prato de pirão, e outro sem carne, sem mais nada.” (TAVARES, 2017, p. 479.) A partir daí eles mesmos puderam expor a condição em que realmente se encontravam. Depois de se dar conta da situação, o major partiu rapidamente para comunicar ao Conde, que de imediato mandou melhorar a comida dos detentos.

A tarefa foi encarregada ao capitão do Regimento de Artilharia Boaventura Ferraz, homem recomendado no assunto e de “natural bondade”. Tendo aceito a missão, o capitão escreveu um bilhete aos presos, o que deu origem a acalorada discussão: “Fui encarregado pelo Excelentíssimo Senhor General de mandar preparar e distribuir, aos presos de Estado de Pernambuco a comida diária” e, na sequência do documento, “Para facilitar pois a distribuição queiram os senhores dividirem-se em classes e me enviarem uma lista com as necessárias declarações.” ( TAVARES, 2017, p. 481.)

O papel passou pelos presos até chegar aos membros da família Cavalcante que convocaram um Conselho presidido pelo Morgado do Cabo, composto também por um padre e outros a fim de saber o que se entendia pela palavra “classe”. Após acirrados debates, chegaram à conclusão de que era o correspondente à “Hierarquia”, ao que o autor anônimo, admirado, acrescentou em nota, “À guisa das Cortes de Lamego – Clero Nobreza e Povo!”.

A reunião das Cortes de Lamego, ocorrida em 1143, quando Clero, Nobreza e Povo elegeram D. Afonso Henriques, foi documentada nas chamadas “Atas das Cortes de Lamego ” que eram, na realidade, um documento falso, forjado para que o reino português não fosse governado por estrangeiros. O surpreendente, até mesmo espantoso, é que setores importantes das elites pernambucanas envolvidas na Revolução Pernambucana de 1817 mantinham, em pleno século XIX, um ideal de hierarquia social baseado na Idade Média. Os debates não se encerraram aí.

Como resultado da discussão foi elaborada uma lista dos presos sendo divididos em três classes:

-1a Classe: desembargadores, magistrados, letrados, cônegos, vigários e os de patente de major para cima;
-2a Classe: magistrados não letrados, oficiais régios e “clérigos simples”;
-3a Classe: “todo bicho careta que não cabia nas duas primeiras”

Não deixa de ser surpreendente os de terceira classe serem enquadrados simplesmente como “bicho careta”, ou seja, uma expressão depreciativa para se referir àqueles que estavam nas camadas mais baixas da escala social. A partir daí abriu-se um problema, posto que, dois cunhados do Morgado do Cabo – Thomaz Linz Caldas e Francisco da Rocha Paes Barreto – ficaram sem colocação, uma vez que, nunca exerceram posto na milícia tampouco se ocuparam de algum ofício. Para contornar a situação, o conselho determinou, ali mesmo, que os dois fossem elevados ao posto de major.

Nas palavras do próprio narrador, testemunha ocular do episódio, este foi “Um procedimento insólito”. A manobra, desconfiava o autor, era porque guardava-se a expectativa de que “a primeira classe seria aquinhoada com guisados mais abundantes e delicados”. O mais instigante ainda estava por vir.

“Mas o que revoltou, e que nunca se lhes perdoou, foi a incoerência com que observaram os princípios, por eles mesmos adotados, porquanto tendo resolvido que entrassem, na primeira classe os militares, de major para cima, classificaram na terceira classe, com exclusão da primeira, a dois oficiais superiores do Regimento de Henrique Dias.”

O Regimento de Henrique Dias, formado por homens negros, mestiços, ex-escravos, criado durante as guerras de expulsão dos holandeses de Pernambuco em meados do século XVII, com extensa folha de serviços prestados à Coroa portuguesa, não tiveram sequer o reconhecimento, mesmo que momentâneo, dos revolucionários pernambucanos, ainda que, naquele momento, estivessem lutando lado a lado num movimento que chegou a firmar uma lei inspirada na Declaração nos Direitos do Homem e do Cidadão. “Que incoerência! Fizeram a lei, e logo em seguida as exceções; isto é a dois paisanos fizeram oficiais superiores; a dois oficiais superiores deram baixa para soldado” (TAVARES, 2017, p. 483.), escreveu o autor não identificado.

A forma com que importantes lideranças revolucionárias de Pernambuco se portaram dentro dos cárceres da Bahia mostram como as hierarquias sociais na América eram flutuantes. Os parâmetros fixados pelas elites para definir as hierarquias eram simplesmente solapados, quando uma situação lhes era desfavorável. O casuísmo e a circunstância eram a tônica que regia esses critérios, a fim de que a ordem tradicional não fosse alterada. Isso demonstra, de maneira evidente, como os critérios empregados para definir as hierarquias sociais na América, mesmo que para receber um bom prato de comida, variavam ao sabor do momento.

Bibliografia Básica

CABRAL, Flavio José Gomes. A República de Pernambuco. Revista de História. Rio de Janeiro, v. 21, p. 34-39, 2007.
LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco 1817. Recife: Fundaj/Massangana, 1989.
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. Rio de Janeiro: 34, 2004.
MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972.

Fontes Impressas

Um episódio da História da Revolução Pernambucana de 1817, na Província de Pernambuco, passado entre os presos do Estado na Cadeia da Bahia. In: TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução Pernambucana em 1817. Notas de Manuel de Oliveira Lima. 5 ed. Recife: Cepe, 2017, p. 473-484.

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