Revista Impressões Rebeldes

BATIZAR PARA (R)EXISTIR

Em uma sociedade violenta e desigual, de que forma o batismo católico foi utilizado como uma estratégia de resistência cotidiana na luta por melhores condições de vida no cativeiro?

“Jovens negras indo à Igreja para serem batizadas”, aquarela de Jean-Baptiste Debret (1821). Acervo Museu Castro Maya, Rio de Janeiro

Joelma Santos da Silva

Joelma Santos da Silva é Doutora em Ciências Sociais, Professora de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão – Campus Pinheiro e autora de “Os laços de compadrio como estratégia de resistência cotidiana entre os escravos do sertão do Piauí oitocentista” (Fronteiras & Debates. Macapá, v. 3, n. 1, jan./jun. 2016).

Durante décadas a historiografia brasileira cristalizou a ideia do “escravo coisa”, inerte diante da sua realidade; ou da figura do herói único, que se revoltava contra a escravidão organizando quilombos. Mas e os demais, os milhares de homens e mulheres escravizados que não fugiram, aceitaram passivamente as regras de uma sociedade que lhes negava sua liberdade e os via como propriedades de outras pessoas?

Os historiadores começaram a responder essa pergunta nos últimos anos, o que resultou no crescimento dos estudos das experiências dos escravizados na história do Brasil, com destaque para as redes de sociabilidade e solidariedade que foram construídas por estes, e que impuseram, em certa medida, limites à vontade senhorial. Trabalhos como os dos historiadores Silvia Hunold Lara, Sidney Chalhoub, Stuart Schwartz, Robert Slenes, Manuela Carneiro da Cunha, entre outros, demonstram a existência de projetos e ideais próprias desses sujeitos, lutas e conquistas de pequenas e grandes vitórias, mesmo dentro de uma sociedade tão desigual.

O reconhecimento da possibilidade de escravizados influenciarem sua condição de vida no cativeiro, na obtenção de liberdade, formação e manutenção de famílias, e estabelecerem alianças verticais e horizontais, é importante porque evidencia como eram múltiplas as relações que se estabeleceram entre estes e os seus senhores. Imagem bem distante daquela que enfatizava somente as questões econômicas, formulando explicações de um mundo governado exclusivamente por interesses senhoriais, com uma dominação implacável e violenta, que cristalizaram uma versão única de um processo extremamente complexo.

O conceito de “economia moral” do historiador inglês E. P. Thompson foi fundamental para essa mudança nos estudos da escravidão no Brasil, tornando possíveis novas abordagens que foquem no movimento constante de dominantes e dominados enquanto sujeitos históricos. Além disso, perceber as lutas, conflitos, resistências, acomodações, negociações e mesmo as ambiguidades, humaniza os homens e as mulheres que estavam imersos nas lógicas de dominação e exploração construídas por séculos de regime escravagista.

Longe de tentar reabilitar os valores senhorias ou excluir a face mais nefasta da escravidão, o objetivo desse tipo de abordagem é tornar mais complexa a análise, propondo novas teses, problematizando paradigmas e diversificando as fontes de pesquisa. E de que forma a pesquisa histórica pode contemplar essas questões? Considerando a ideia de “economia moral” thompsiana como uma reconstrução seletiva do modelo de dominação paternalista, redefinida a partir de contextos específicos, nos quais o escravizado está presente em diversas dimensões da sua experiência e formas que a resistência pode adquirir cotidianamente.

Nessa perspectiva, a resistência cotidiana, mais frequente do que as grandes rebeliões e fugas, tem grande importância na ressignificação das relações de classe e mudanças sociais pretendidas por esses sujeitos que estão em um lugar de opressão. Isso acontece, pois, as diferentes estratégias de resistência à dominação, praticadas de maneira prosaica e constante, são meios de manobrar a economia moral e defender interesses próprios, ecoando nas relações de poder no dia a dia, como defende o cientista político e antropólogo James C. Scott em seus trabalhos sobre dominação e resistência. Pequenas rebeldias como furtos, jogos, transgressões de comportamento, dissimulação, ignorância fingida, embriaguez e até a formação de famílias e manutenção dos laços de parentesco em um regime que não reconhecia sua humanidade, priorizando não somente a consanguinidade, mas também o compadrio, são exemplos da resistência cotidiana que os escravizados praticaram durante séculos no Brasil e que dão visibilidade a sua condição humana.

Esses arranjos familiares tinham grande importância porque também eram elementos definidores de identidade, criando espaços de afetividade onde os cativos pudessem vivenciar uma autonomia e liberdade relativas. Eles e elas eram filhos, filhas, maridos, mulheres, afilhados, afilhadas, tios e tias, primos, compadres e comadres, identificados como parentes e não somente pela sua condição jurídica de escravo, coisa, propriedade. Para os proprietários, por sua vez, era importante batizar os filhos de suas escravizadas para declararem seu próprio nome nos assentos de batismo, o que garantia a posse daqueles, uma vez que não existia um documento que registrasse a propriedade dessa criança nascida no Brasil. Quando acontecia compra e venda uma matrícula comprovava a posse, mas a criança nascida de uma escravizada não era matriculada, pois não havia nenhuma transação comercial. Assim, o registro de batismo era a única forma de que dispunha o senhor para provar que os nascidos em seus planteis eram de fato sua propriedade

Nesse contexto, o batismo pode ser entendido como uma prática de resistência escrava cotidiana no Brasil, pois, o rito cristão necessário para a manutenção de uma posse e imposto pelos senhores e pela Igreja, era também usado pelos cativos para estabelecer um parentesco espiritual que envolvia os padrinhos, o batizando e seus pais, e que era reconhecido pelo direito canônico e pela sociedade. Por meio do compadrio era possível estreitar relações de natureza parental com homens livres, libertos, forros e outros escravos, formando laços de solidariedade e alianças para proteção própria e de seus filhos. É possível também olhar os assentos de batismo, sem perder de vista o local de produção dessa documentação e a necessidade de historicizar as fontes, como formas desses sujeitos históricos serem oficialmente inseridos em uma comunidade, num universo religioso, social e político específico do passado e, ao mesmo tempo, existirem para o pesquisador que se debruça sobre essa temática no presente.

Esses documentos também cumpriam e cumprem importante papel pois informam para além da sua natureza religiosa. Os párocos registravam, em muitos casos, desde a idade e filiação do batizandos, se eram filhos naturais ou legítimos, quem eram seus pais e padrinhos, até as suas condições legais (escravo, forro, liberto, livre), onde moravam, estado civil, e muitas vezes as origens e cor. Os laços formados dentro da Igreja não só transpunham seus muros, como seus registros nos possibilitam traçar as redes de relações que existiram fora deles.

Estudos como o de Gudeman e Schwartz (1988) e o de Roberto Guedes Ferreira (2000) sobre batismo, família e compadrio, discutem o parentesco espiritual, firmado pelo sacramento católico do batismo, entre escravos, libertos e homens livres, não só como uma das estratégias utilizada pelos cativos em busca de proteção, mas também objetivando uma certa mobilidade social. Estar ligado espiritualmente a alguém juridicamente livre, naquele período, era uma das poucas possibilidades de aliança vertical e inserção numa intrincada rede onde o ter (no sentido econômico) e o ser de determinada família se ligavam diretamente ao local que o sujeito ocupava ou poderia ocupar na sociedade, dentro das fronteiras estabelecidas pelo regime escravista.

Diferentes trabalhos como o de Silva (2013) e Andrade (2020) apontam um aumento do número de registros de batismos de filhos de mães escravizadas após 1871, ano em que foi aprovada a Lei do Ventre Livre, determinando que a partir daquela data todos os filhos e filhas de escravizadas nasceriam livres. Essa medida, somada às leis anteriores (1831/1850) que proibiram o tráfico internacional e fomentaram o desenvolvimento do tráfico interno, provocaram mudanças significativas nas dinâmicas de relacionamento entre cativos, libertos e livres.

 

Livro de Registro de Batismo da Freguesia de São Pedro de Alcântara e Pastos Bons – MA, 1884-1886. Foto de Antônia de Castro Andrade

 

Era preciso proteger a frágil integridade da família escrava estendendo os laços de parentesco para além da unidade residencial e do meio social dos genitores. O senhor podia estar reforçando uma relação paternalista com sua escravizada, mas quando Sebastiana deu sua filha Petrolina para que seu proprietário a apadrinhasse, em 1875, no interior do Maranhão, certamente criou expectativas particulares de amparo e proteção para si e sua filha, por parte do seu agora “compadre de alma” (ANDRADE, 2020).

Sendo a Lei do Ventre Livre amplamente descumprida no Brasil, o apadrinhamento pelos proprietários da fazenda, e sua parentela, poderia minimizar a exposição da criança aos trabalhos mais exaustivos e castigos físicos, em respeito às obrigações adquiridas na pia batismal, sendo vantajosa não somente para aqueles que queriam garantir a permanência dos filhos (livres) das suas escravizadas na propriedade. Em outra perspectiva, essas relações de dependência estabelecidas entre classes distintas, “laços rituais que turvam as águas das classes em virtualmente qualquer pequena comunidade” (SCOTT, 2002, p. 18), eram um verdadeiro obstáculo à ação coletiva e operavam em favor da classe proprietária e da comunidade de homens livres, pois restringiriam as ações dos homens e mulheres em pequenas escravarias.

É errôneo afirmar, porém, que os subalternos simplesmente aceitam a ideologia dominante ao optar por formas de resistência que não desafiam, mas manipulam as transcrições públicas – interações em situações de poder desigual. Esse tipo de ação é uma decisão estratégica dos grupos subalternos perante a força de coerção dos dominadores.

Isso nos leva ao problema da intenção. É possível inferir esse olhar voluntarista, o cálculo consciente da resistência nas ações dos escravizados? Em oposição, é possível ignorar essas adaptações pragmáticas e forçadas às realidades locais, frente à falta de possibilidades concretas de transformar de forma direta e coletiva o regime escravista? Encarar esses pontos como uma oposição entre uma resistência “real”, coletiva, e uma resistência “egoísta”, individual, ignora a complexidade das relações escravistas no Brasil. Contudo, ao analisar essas questões, o pesquisador não pode “romantizar” as relações de dominação e subordinação entre escravizados e senhores. Afinal de contas, mesmo com todas as ambiguidades oriundas desse convívio cotidiano, os cativos continuavam sendo propriedades suscetíveis a vontade e violência senhorial.

Diante das inúmeras abordagens e possibilidades de análise sobre a escravidão no Brasil, as práticas de resistência cotidiana, como o estabelecimento de laços de compadrio, não devem ser desprezadas, pois ao problematizarmos e assumirmos a existência de diferentes formas de resistência, suscitamos novas questões e recolocamos os escravizados como sujeitos de sua própria história.

Bibliografia Básica

ANDRADE. Antônia de Castro. Laços de compadrio entre escravizados/as no Sul do Maranhão (1854-1888). São Luís: Café & Lápis; EDUFMA, 2020.
LARA, Silvia Hunold. Blowin’in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Proj. História, São Paulo, v. 12, p. 43-56, 1995.
SCHWARTZ, Stuart. Escravos roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001.
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa. Raízes, Campina Grande, v. 21, n. 01, p. 10-31, 2002.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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