Revista Impressões Rebeldes

O POVO: MODOS DE USAR

A face popular dos protestos na colônia é tema que avança, e bem longe da visão de massas instrumentalizadas pela elite

Gefferson Ramos Rodrigues

Gefferson Ramos Rodrigues, é autor da dissertação: No sertão, a revolta: grupos sociais e formas de contestação na América portuguesa, Minas Gerais – 1736. Niterói: UFF, 2009. (Dissertação, Mestrado em História). Desde 2011, realiza doutorado na UFF em estudo dedicado a participação de grupos dos baixos estratos sociais nas rebeliões coloniais, com o Projeto “A ‘arraia miúda’. Índios, negros e homens pobres livres nas rebeliões da América portuguesa: Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo – 1707-1718”

Até a Revolução Francesa de 1789 dificilmente se admitia o povo como ator político. Quando entrava em cena, normalmente era sob a liderança das elites senhoriais, em geral, apontadas como manipuladoras. Uma das explicações por que não se admitia que o povo pudesse desempenhar um papel político relacionava-se à sua própria visão de mundo, e à natureza de suas reivindicações. Mesmo quando se rebelavam, normalmente, as suas demandas se relacionavam à cobrança de impostos, a elevação de preços dos alimentos, aos desmandos de autoridades, entre outras motivações, todas elas consideradas de importância política menor. Além do mais, quando saía às ruas a fidelidade ao Rei era sempre mantida.

Essa foi uma das principais leituras da historiografia sobre as rebeliões da Época Moderna. Embora não seja a única, tal chave de interpretação, com as devidas diferenças, também serviu para explicar as revoltas que se passaram na América portuguesa, já que se constituia de uma sociedade de Antigo Regime. Tratava-se de uma sociedade em que as hierarquias sociais eram rigidamente definidas, baseada no privilégio e a difícil mobilidade social passava pelas mãos do Monarca, através da concessão de honras e benefícios.

Na Europa dos séculos XVII e XVIII vários estudos foram feitos sobre os protestos populares, principalmente para França e Inglaterra. No caso francês, conforme os trabalhos de Yves Marie-Bercé realizados para o século XVII (dentre os quais Histoire des Croquants. Étude des soulèvements populaires au XVII siècle dans le Sud-Ouest de la France. Pariz, 1974), os protestos foram vistos como uma reação aos esforços de centralização do Estado Monárquico. Já do outro lado do canal da Mancha, as revoltas foram resultado do rompimento de costumes tradicionais que regiam o mercado de alimentos, segundo E. P. Thompson (Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, 1998). No velho continente os populares foram identificados como grupos de trabalhadores que viviam no campo ou na cidade e não pertenciam aos estratos privilegiados do Clero ou da Nobreza.

É preciso recuperar a face popular dos protestos na colônia. Mas como?

Na América portuguesa, onde a maioria da população era constituída por índios negros e mestiços, seria possível pensar numa rebelião “popular”? No caso da colônia a questão precisaria ser colocada em outros termos. Isto não apenas porque fossem especialmente raras as ocasiões em que o “povo” – identificando-se este, em princípio, com as pessoas comuns – foi o principal protagonista dos protestos, mas também devido ao próprio significado que o termo assumia para a época. Em geral, o “povo” referia-se a concepção tripartite da sociedade, ou seja, “o Clero, a Nobreza e o Povo”. Havia, portanto, uma tendência a identificar o “povo” como aquele que desempenhava formalmente uma função política. Assim sendo, o “povo” na colônia era aquele que ocupava as instituições prestigiosas como as Câmaras Municipais. Aqueles que se encontravam na escala mais baixa da sociedade, em geral, eram referidos com termos depreciativos como “plebe”, “arraia miúda”, “povo miúdo”, entre outros.

Apesar de terem sido raras as ocasiões em que na colônia as camadas mais baixas da população assumiram a dianteira de sublevações, alguns exemplos poderiam ser citados: as “Guerras Bárbaras”, que se estenderam por um longo período de meados do século XVII às primeiras décadas do XVIII, ocasião em que os índios tapuias de diversas etnias – rotulados genericamente de “bárbaros”, justamente por não se submeterem as ordens da Coroa portuguesa – se sublevaram em reação ao avanço da “fronteira agrícola” sobre as terras que ocupavam nas fronteiras entre Rio Grande do Norte e Ceará. Em outro caso, no final do século XVIII, os escravos do Engenho de Santana, em Ilhéus na Bahia, rebelaram-se violentamente em 1792 e depois de trucidar o proprietário redigiram um termo – através de um intermediário – em que expunham as suas reivindicações. Documentos desses dois movimentos estão disponíveis no site Impressões Rebeldes.

Mesmo com os poucos exemplos, essa escassez de movimentos exclusivamente compostos por gente da plebe pode ser compensada com a marcante presença destes menos favorecidos na maior parte dos protestos que grassaram na colônia. Um dos exemplos mais emblemáticos da participação de índios e negros em protestos talvez tenha sido quando da Insurreição Pernambucana (1645-1654), ocasião em que foram constituídos os terços de Filipe Camarão e Henrique Dias. Novamente, em Pernambuco, no contexto da “Guerra dos Mascates” (1710-1711), muitos escravos foram armados para reprimir os mercadores de Recife. Em Minas Gerais, durante a revolta de Vila Rica em 1720, os mineradores também armaram seus escravos quando o Governador, o Conde Assumar, foi cercado em seu palácio. Os exemplos poderiam se multiplicar.

Várias pesquisas têm dado conta da presença de índios, negros, e homens pobres livres nas rebeliões da América portuguesa. Os trabalhos realizados por Adriana Romeiro e John Manuel Monteiro para Minas Gerais e São Paulo, além dos estudos de Evaldo Cabral de Mello para Pernambuco, são alguns deles.

Os populares poderiam atuar tanto por parte dos rebeldes,
quanto da parte daqueles que o reprimiam

A partir dessa importante constatação é preciso recuperar a face popular dos protestos na colônia. Mas como? Um primeiro questionamento a ser feito, seria interrogar sobre o que levava os populares a participarem das rebeliões e, muitas vezes, ao lado das elites senhoriais. Será que eles estariam movidos simplesmente por uma relação de mando e obediência? Embora isso pudesse ocorrer, somente esse tipo de relação certamente não explicaria tudo.

O esforço de reconstituição de papel de grupos subalternos nos protestos deve se ater ainda aos diversos objetivos que uma mesma revolta por ventura abrigaria. Para alguns a participação na revolta poderia ter um sentido; para outros um significado completamente diferente. Outra observação necessária é que os populares poderiam atuar tanto por parte dos rebeldes, quanto da parte daqueles que o reprimiam. Todavia, para eles, seja de um lado, seja de outro, seria possível obter compensações pelos serviços que prestavam. Isso porque, a Coroa portuguesa estava sempre disposta a premiar aqueles que se destacavam na prestação de serviços, principalmente quando colaboravam na repressão a tumultos. Isso era um aspecto importante já que, como foi referido anteriormente, tratava-se de uma sociedade fortemente hierarquizada, e que a mobilidade social passava pelas mãos do Rei. Não eram apenas os setores da elite que se identificavam com os valores do Antigo Regime, mas eles tenderam a ser assimilados por toda a sociedade, mesmo entre os mais humildes.

Foi com o intuito de conseguir a adesão dos escravos que durante a Insurreição Pernambucana as autoridades resolveram conceder cartas de alforria àqueles que colaborassem na expulsão dos holandeses. Para muitos negros, portanto, a expulsão dos batavos poderia significar uma luta pela liberdade. Esse mesmo princípio presidiu a ação da Coroa ao recomendar a concessão de um Hábito da Ordem de Santiago – uma prestigiosa honraria – a certo Manuel Gonçalves por ter reunido um grande número de homens para colaborar na repressão aos senhores de engenho de Olinda, durante a chamada “Guerra dos Mascates”. Em Minas Gerais, durante a Revolta de Vila Rica em 1720, Luis Soares de Meireles foi apontado pelo Conde de Assumar, para receber um Hábito da Ordem de Cristo, em razão da prisão que fez a Filipe dos Santos, apontado como “cabeça” da sublevação. Tanto em Minas Gerais, quanto em Pernambuco, tratava-se de homens que eram vistos como pessoas simples “do povo”.

À guisa de conclusão, ainda que parcial, valendo-se dos avanços realizados pela historiografia nos últimos anos, de uma leitura atenta às fontes, e de novos questionamentos, é possível avançar um pouco mais na compreensão dos protestos coloniais. Mesmo que lutando ao lado das elites senhoriais, não há como deixar de reconhecer que os grupos populares pudessem expressar suas próprias vontades e alcançar relativo grau de autonomia nas rebeliões da colônia.

O debate está aberto, as tradições historiográficas na mesa, os documentos na mão. O que dizem?

Bibliografia Básica

HUARD, Raymond. Existirá uma “política popular”?. In: DIAS, Bruno Peixe; NEVES, José. A Política dos Muitos. Povo, Classes e Multidão. Lisboa: Tinta da China, 2011, p. 73-89.

MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos Mazombos. Nobres contra Mascates, 1666-1715. 2ª ed. revista. São Paulo: 34, 2003.

MONTEIRO, John Manuel. Tupi, Tapuia e Historiadores. Estudos de Historia Indígena e do Indigenismo. Campinas: Unicamp, 2001. (Tese, Livre Docência em Antropologia).

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no Coração das Minas. Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

SOUZA, Laura de Mello e; REIS, João José. Popular Movements in Colonial Brazil. In: Nicholas Canny; Philip Morgan. (Org.). The Oxford Handbook of The Atlantic World (1450-1850). 1ªed.Oxford: Oxford University Press, 2011, v. I, p. 550-566.

Leia também

    Imprimir página

Compartilhe