Revista Impressões Rebeldes

UM BRINDE À BELA LIBERDADE

A liderança da Conjuração Baiana de 1798 foi atribuída ao mestre alfaiate João de Deus do nascimento. Nos autos de devassa, a embriaguez foi muito utilizada: como ataque para os acusadores e como resistência para réus

João de Deus do Nascimento” retrata um dos principais líderes da Conjuração Baiana no óleo sobre tela de Dalton Paula – Museu de Arte de São Paulo (MASP)

Flávio Márcio Cerqueira do Sacramento

Flávio Márcio Cerqueira do Sacramento é professor efetivo da Rede Municipal de Salvador e da Rede Estadual da Bahia, doutorando em História Social pela UFBA e autor da dissertação “De Pardo Infame a Herói Negro: o mestre alfaiate João de Deus do Nascimento”. Cachoeira, UFRB, 2016.

João de Deus do Nascimento era um requisitado mestre alfaiate que vivia na capital baiana, provavelmente desde 1790, onde possuía uma tenda na Rua Direita do Palácio – atual Rua Chile. Filho legítimo do branco José de Araújo e da parda forra Francisca Maria da Conceição, nasceu na Vila de Cachoeira por volta de 1771, sendo descrito como um pardo claro, oriundo de um ventre que já havia passado pelas garras da infame escravidão. Casado com a também parda Luiza Francisca de Araújo, tinha cinco filhos pequenos e um deles se chamava Antônio Joaquim, possivelmente o que “aprendia a ler na escola de Fulano da Motta detrás da Capela de Nossa Senhora da Ajuda” (Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates, 1998, p.401).

O mestre alfaiate trabalhador, esposo, pai de família e responsável pela educação dos filhos era no fundo um rebelde. Foi o primeiro preso da devassa do desembargador Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto – responsável por apurar as ações que estavam sendo desenvolvidas, após as prisões dos acusados de autoria dos boletins manuscritos colados nas paredes de importantes prédios no centro de Salvador, em 12 de agosto de 1798, revelando em seus conteúdos uma série de reivindicações com duras críticas à monarquia portuguesa, fazendo alusão à França e à República, à liberdade de comércio, ao aumento do soldo dos soldados e à convocação do “Povo Bahinense” para o tempo feliz da liberdade, “o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais” (ADCA, 1998, p. 33-38).

Dias antes da prisão do mestre alfaiate, o governador da Bahia, D. Fernando José de Portugal e Castro tomou a atitude imediata de abrir uma primeira devassa para apurar os tais acontecimentos dos boletins manuscritos, sob o comando do desembargador Manoel de Magalhães Pinto Avelar de Barbedo, que de maneira rápida prendeu o requerente de causas Domingos da Silva Lisboa, acusado de autoria de tais papéis sediciosos. Porém, em 22 de agosto de 1798, novos boletins foram encontrados na Igreja da Lapa e no Convento dos Carmelitas Descalços, levando a prisão no dia seguinte do soldado Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, pressionando os rebeldes a convocar uma reunião para discutir os rumos do movimento.

A prisão de João de Deus do Nascimento ocorreu na manhã de domingo, 26 de agosto de 1798, dentro de seu local de trabalho, que era também a sua moradia. Sem chances, nem condições financeiras para fugir foi levado para a cadeia do Tribunal da Relação, onde permaneceu preso por um ano, dois meses e treze dias. Saiu do cárcere para a morte, num episódio de suplício, onde foi enforcado e esquartejado, sendo os seus restos mortais espalhados pelas ruas públicas da Cidade da Bahia e a cabeça fincada em frente à sua tenda de alfaiate, permanecendo ali por cinco dias, somado à sua eterna condenação de “infame para sempre a sua memória, seus filhos e netos” (ADCA,1998, p.1196).

Mas o que fez João de Deus do Nascimento para ter um fim tão triste, visto naquela terrível sexta feira, 8 de novembro de 1799, na Praça da Piedade? Ele ousou fazer política, ousou enfrentar a “gente de consideração”, questionou a sua condição social, questionou aspectos da escravidão nas ruas de Salvador relativos aos carregadores das cadeiras de arruar (meio de transporte utilizado principalmente por senhoras para se locomover) e propôs “extinta a diferença de cor” na ascensão social.

Para o historiador Luís Henrique Dias Tavares, “homens livres, mas socialmente discriminados, mulatos, soldados, artesãos, ex-escravos e descendentes de escravos, conceberam a ideia de uma república que garantisse a igualdade” (TAVARES, 1975, p.95-96). E essa garantia de igualdade era uma ameaça, não só a monarquia portuguesa, mas a toda elite baiana, que não enxergou com bons olhos esse rumo que a rebeldia estava tomando. João de Deus do Nascimento representou essa luta das camadas baixas do “povo bahinense” e exalou toda a rebeldia possível nos seus hábitos de vida, pois incomodou muito sendo um bon vivant, assíduo frequentador dos botequins, gostava das noites de luar, frequentava “huma casa de dança, junto a Ordem terceira de São Francisco”, gostava de uma “função de raparigas na fonte das pedras” ou como ele mesmo disse, uma “função de crioilas” e tinha uma jovem amante chamada Ana Romana Lopes do Nascimento (ADCA, 1998, p. 312, 455, 802).

Dentre os botecos frequentados por João de Deus do Nascimento, destacamos o de José Antônio dos Santos, onde o mestre alfaiate costumava se reunir com os companheiros para conversar, jantar e beber ponche, como foi relatado no depoimento do proprietário dado em 29 de outubro de 1798, revelando que “em huma noite haverão três meses pouco mais ou menos, o dito João de Deus, em companhia do tenente José Gomes, entraram no botequim e beberam ponche, que o dito João de Deus mandou fazer, e não pagou” (ADCA, 1998, p. 348). Ao que parece, o mestre alfaiate era assíduo frequentador do botequim de José Antônio dos Santos, pois bebia o que queria e não pagava na hora, demonstrando certa confiança que se conquista com uma boa frequência do consumidor no estabelecimento e certo grau de afabilidade com o comerciante de bebidas, que sabia preparar o ponche do jeito que ele gostava.

Na noite relatada, entre julho e agosto de 1798, provavelmente antes do episódio do aparecimento dos boletins manuscritos, o depoente revelou a presença do capitão do Regimento de Milícia dos Homens Pretos, Joaquim José de Santana no seu botequim, onde este jantou com João de Deus do Nascimento, mas pouco tempo depois seria um dos responsáveis pelas primeiras e principais delações públicas, incriminando o mestre alfaiate com riqueza de detalhes sobre os planos rebeldes, que só poderia conhecer quem estava envolvido ou em constantes conversas sobre a revolução sonhada, numa amostra de possibilidades desses botequins como espaços de planejamento entre os adeptos do “partido da liberdade”. Para Tavares, o mestre alfaiate havia convidado Joaquim José de Santana junto com o seu Regimento dos Henriques, como também era conhecido, pois “com ele estavam guardadas as armas dos milicianos”, além deste capitão ter demonstrado insatisfação por uma notícia que circulava sobre a “indicação de sargento branco para o comando do seu Regimento” (TAVARES, 1975, 52-53).

Três dias antes de ser preso, João de Deus do Nascimento chegou ao botequim de José Antônio dos Santos, por volta de dez para onze horas da noite, mandou fazer um copo de ponche e na ação de brindar disse: “Viva a bella liberdade”. O brinde rebelde gerou uma imediata repreensão do proprietário que “não queria ouvir semelhantes palavras”, deixando João de Deus zangado, pois passou no dia seguinte na porta do botequim e não o “cortejou, como costumava”, apesar de dever “oitocentos reis”, alegado por José Antônio. Pelo visto, o mestre alfaiate mostrou uma tripla rebeldia: brindou a liberdade, deixou de falar com quem o repreendeu e deixou a conta pendurada, que deduzimos jamais ter sido paga (ADCA, 1998, p. 348).

O mestre alfaiate foi bastante citado por testemunhas que mencionam sua participação intensa na convocação de aliados para uma reunião que aconteceria no início da noite de 25 de agosto de 1798, marcada para o campo do Dique do Desterro, na atual proximidade do Estádio da Fonte Nova em Salvador, tido como um lugar ermo que servia para encontro de casais e, neste contexto, para o encontro dos rebeldes. Ali, seriam discutidos os rumos do movimento e a soltura de Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, preso por conta da acusação de autoria dos boletins manuscritos dias antes. João de Deus do Nascimento convocou pessoas que ele pensou confiar, como foi o caso do ferrador e militar, Joaquim José da Veiga, outro delator do movimento rebelde de 1798. Uma leitura menos atenta desta documentação, induz a pensarmos que o mestre alfaiate foi o principal líder do movimento da conspiração, quando na verdade, a liderança na conclusão da devassa foi atribuída ao soldado e marceneiro Lucas Dantas de Amorim Torres – também preso e morto no desfecho trágico do episódio.

Após ter sido convidado por João de Deus para participar da reunião no Desterro, Joaquim José da Veiga contou a situação ao coronel do Regimento de Artilharia, D. Carlos Balthazar da Silveira, que o aconselhou ir ao tal encontro e ouvir tudo, colhendo mais elementos dos planos sediciosos e de seus seguidores. No cair da noite do dia marcado, o governador D. Fernando José de Portugal e Castro enviou o tenente coronel Alexandre Teotônio de Souza para surpreender e prender os envolvidos, porém ele foi visto nas redondezas do local, levando os rebeldes a abortarem a reunião e se dispersarem da área, onde os poucos que foram como o escravo Antônio José e o soldado Lucas Dantas, “resolveram a passar ao botequim […] e ahi se mandou servir um copo de agoa ardente” (ADCA,1998, p. 286).

Preso por conta de todas as citações das denúncias públicas, o mestre alfaiate teve a sua situação agravada com as testemunhas denunciando seus hábitos de vida. Porém, continuou usando a rebeldia como estratégia para ludibriar as autoridades régias, primeiro se fingindo de louco e depois dizendo, por exemplo, que Lucas Dantas de Amorim Torres, “não tinha dinheiro, e lhe parecia o particular, que lhe expunha huma bebedeira, e assim se não se metia nisso, nem de tal se importava, e nem queria saber”, mostrando para o desembargador que tudo não passava de bebedeira, “pois sempre conheceo ser isto função de bêbados, e de pessoas taes”. Na sustentação do seu argumento, João de Deus do Nascimento voltou a falar que “por estar persuadido, que Semelhantes projectos, eram inconsiderados, e mais proprios de bêbados, lhe mostrou toda a repugnância de concorrer neles”. O alfaiate José do Sacramento, disse que João de Deus havia lhe convidado para aderir à causa rebelde e ele não aceitou, pois eram “cousas de bêbados e loucos”, reforçando a estratégia do mestre alfaiate, que levou a sua rebeldia até os momentos finais de sua vida (ADCA, 1998, p. 453, 456, 464, 718).

O advogado dos réus, José Barbosa de Oliveira usou a tese da “função de bêbados”, mostrando a desqualificação como argumento. Afirmava que aqueles homens não teriam a mínima condição de encabeçar um movimento revolucionário e não deveriam ser levados a sério, pois como descreveu Luís dos Santos Vilhena, estes eram “malvados revoltosos que perfidamente havião projctado a insubsistente sublevação e cruel massacre, producçoens tudo da ociozidade, ignorancia e embriaguez” (VILHENA, 1921, p. 445). Para Luciano Figueiredo, “a referência à cachaça se converte em mecanismos para estigmatizar e reprovar socialmente grupos populares que entraram na cena política colonial” (FIGUEIREDO, 2017, p.5).

Como fez o cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, em 1860, descarregando toda a sua escrita depreciativa sobre os partícipes das camadas baixas do movimento baiano de 1798, pejorativamente intitulado de “A Conjuração de João de Deus”, aqui resumida nesta frase: “eis photographada a physionomia desses conciliábulos, composto das fezes da população bahiana, sem bases determinadas, reunidos em lugar publico e terminado em um botequim!” (PINHEIRO, 1860, p.221). Para a historiadora Patrícia Valim, o cônego caracterizou o mestre alfaiate “como um bêbado inconsequente” sem nenhum paralelo com a documentação (VALIM, 2007, p.153).

Apesar do trágico fim, a rebeldia de João de Deus não foi em vão, pois inspira novas rebeldias organizadas para enfrentarmos nosso presente sombrio. Portanto, propomos um brinde aos afrodescendentes que protagonizaram a história e ousaram fazer política na Bahia rebelde: Viva a bela liberdade, pois as “vidas negras importam”!

Bibliografia Básica

FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. A Linguagem da Embriaguez: cachaça e álcool no vocabulário político das rebeliões na América Portuguesa. Rev. Hist. (São Paulo), nº 176, 2017.
PINHEIRO, J. C. Fernandes. A Conjuração de João de Deus: narrativa dos tempos coloniais. In: Revista Popular (tomo oitavo, ano segundo), out-dez, Rio de Janeiro, B.L. Garnier, editor- proprietário, 1860.
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Sedição Intentada na Bahia em 1798: a conspiração dos alfaiates. Pioneira Editora, 1975.
VALIM, Patrícia. Da Sedição dos Mulatos à Conjuração Baiana de 1798: a construção de uma memória histórica. Dissertação de Mestrado, São Paulo, USP, 2007.
VILHENA, Luís dos Santos. Recopilações de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas. (Livro II, anno 1802). Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1921.

Fontes Impressas

FLEXOR, Maria Helena O. (Org.). Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates (ADCA). Salvador, APEB/ Secretaria de Cultura e Turismo, 1998.

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