Revista Impressões Rebeldes

GUERRAS PAIAKU NO JAGUARIBE

Variando entre a imagem de importantes aliados e sérios obstáculos para a colonização, os índios paiaku protagonizaram episódios de conflito com os colonizadores na ribeira do Jaguaribe entre o final do Século XVII e início do XVIII

DANÇA DOS TAPUIAS, POR ALBERT ECKHOUT (SÉC. XVII)

Marcos Felipe Vicente

Marcos Felipe Vicente é Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense e professor da rede pública estadual do Ceará. Autor do livro Entre São Francisco Xavier e a Madre de Deus: a etnia Paiaku nas fronteiras da colonização. Fortaleza: EdUECE, Secretaria da Cultura do Ceará – Museu do Ceará, 2019.

A partir da segunda metade do século XVII, a expansão das fazendas de criação de gado nos sertões das capitanias do Norte ocorreu com mais intensidade. Esse processo impactou diretamente nos conflitos entre os curraleiros e os povos indígenas, referidos na documentação e por parte da historiografia como protagonistas da chamada Guerra dos Bárbaros. Na capitania do Ceará, o processo de conquista do território foi orientado pelo interesse dos curraleiros, criadores de gado, e por isso acompanhou o curso dos principais rios, que ofereciam água em abundâncias para o desenvolvimento da atividade pecuária. Sendo o Jaguaribe o maior rio da Capitania, sua ocupação colocou os colonizadores em contato direto com os povos indígenas Paiaku.

Os Paiaku eram indígenas da família linguística Tarairiú, que ocupavam uma vasta região, compreendida entre os rios Jaguaribe e Açu, apresentados por Carlos Studart Filho (1966) como “estorvo constante ao povoamento da ribeira do Jaguaribe”. No entanto, é preciso esquivar-se do olhar eurocêntrico para compreender a atuação dos Paiaku dentro daquele contexto e as diversas estratégias adotadas frente aos portugueses. A noção de agências indígenas se apresenta, assim, como ações conscientes e intencionais dos índios frente aos novos contextos impostos pela situação colonial.

Os índios viam os seus territórios sendo gradativamente invadidos pelos colonizadores, que introduziam novos animais ao ambiente e, ao mesmo tempo, restringiam o seu acesso ao espaço e aos seus produtos – reconfigurando os territórios de forma alheia aos padrões indígenas. Assim, embora tenham experimentado algumas relações amistosas no início do contato, quando os índios se dirigiam ao litoral e interagiam com os portugueses, nas décadas seguintes, essas relações eram marcadas por conflitos.

Uma das primeiras expedições militares contra os Paiaku foi organizada em 1671, sob a liderança de Francisco Martins e Felipe Coelho de Moraes, os quais deveriam ir ao encontro dos índios nos sertões para destruí-los e cativar seus filhos e mulheres. A ideia era criar condições para o estabelecimento dos currais de gado. Não deveriam, porém, se descuidar das defesas diante do risco de uma possível investida dos índios, o que pode ser observado nas recomendações sobre a necessidade de estabelecimento de arraial, uma espécie de base para as tropas durante a campanha, além da vigilância com as armas e o estabelecimento de rondas, de modo que os índios não pudessem obter novos armamentos, subtraídos da tropa.

Studart Filho (1966) aponta que “a caravana atravessou célere a caatinga, bateu os índios e regressou trazendo numerosos prisioneiros de todas as idades que foram escravizados”. O resultado da empreitada parece ter colocado a aldeia da Parangaba, próxima à fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, em estado de alerta, a ponto de ser conduzida uma peça de artilharia daquela fortaleza até a aldeia. Havia receio de um possível ataque dos Paiaku como resposta.

No entanto, no dia 07 de janeiro de 1672, os Paiaku enviaram uma embaixada para negociar um acordo de paz com o capitão-mor Jorge Correia da Silva. Pediam a libertação dos seus filhos escravizados e, em troca, ofereciam sossego aos viajantes que atravessassem seus territórios. Pelo acordo, os Paiaku ainda ficavam obrigados a fornecer guerreiros para compor tropas contra inimigos dos portugueses. De todo modo, ao celebrar o acordo de paz com os Paiaku, o capitão-mor reconhecia a autonomia dos índios e a sua importância para o projeto colonizador português, trazendo-os para junto de si.

O acordo de paz selado entre os Paiaku e os colonizadores trouxe relativa tranquilidade para a Ribeira do Jaguaribe por aproximadamente uma década, embora pequenas refregas continuassem ocorrendo. No entanto, a partir da década de 1680, com a intensificação do estabelecimento de fazendas na região, os conflitos ganharam novas dimensões, inserindo-se no contexto mais amplo da Guerra dos Bárbaros.

O acaloramento dos conflitos entre colonizadores e nativos levou os capitães-mores do Ceará e Rio Grande do Norte a solicitarem apoio dos sertanistas paulistas, conhecidos por sua habilidade e violência no combate aos nativos. Sua entrada na guerra foi marcada pelo recrudescimento dos combates na região. Em meados da década de 1690, após anos de conflitos, os chefes indígenas da etnia Paiaku, Genipapoaçu e Matias Peca, procuraram o capitão-mor do Ceará, Pedro Lelou, a fim de estabelecer um novo acordo de paz. Esse novo acordo, celebrado no ano de 1695, incluía a pacificação da Ribeira do Jaguaribe, com o fim dos ataques dos índios às fazendas, e a participação dos indígenas nas tropas coloniais, o que se efetivou em diversas situações nos anos posteriores. Além disso, o acordo previa a construção de uma fortificação no lugar: o forte de São Francisco Xavier.

 

Forte Real de São Francisco Xavier da Ribeira do Jaguaribe – Site: Prefeitura de Russas

 

A construção do forte deve ser compreendida dentro da estratégia colonial de conquista do território, através da instalação de fortificações militares e de aldeias missionárias para a conversão dos nativos. Dessa maneira, em 1696, o padre João Leite de Aguiar esteve reunido com os índios Paiaku do Jaguaribe por cerca de um mês para discutir uma proposta de aldeamento. Segundo o padre, os indígenas ficaram satisfeitos com sua proposta e convieram em se aldear com o missionário – para sua quietação e segurança de seus inimigos. Além disso, os índios teriam pedido que avisasse aos moradores que levassem os seus gados e povoassem a dita ribeira (Arquivo Histório Ultramarino_ACL_CU_006, Cx. 01, D. 34).

Nota-se nas palavras do padre João Leite de Aguiar que a aliança com os Paiaku era um acordo interessante para ambos os lados. Para os moradores, significava o fim dos ataques dos índios às suas fazendas e rebanhos. Para os índios, o aldeamento indicava uma possibilidade de refúgio frente à violência do homem branco, haja vista a condição jurídica que o índio aldeado ocupava dentro do Antigo Regime português. Nesse sentido, é importante destacar que os índios aldeados não poderiam ser escravizados e nem alvo de guerras justas, conforme os critérios definidos pelo Direito ibérico.

Em 1697, o padre oratoriano João da Costa reuniu-se com os Paiaku no Jaguaribe para iniciar a missão religiosa, levando consigo diversas ferramentas como enxadas e machados para presentear os índios. Porém, mesmo após o aldeamento, os índios continuaram agindo conforme seus interesses e tradições e a documentação aponta as dificuldades encontradas pelo padre em mantê-los dentro da aldeia, sendo comuns as fugas para as matas. Também eram frequentes os ataques aos rebanhos de gado e até mesmo ao forte de São Francisco Xavier.

Nesse contexto conflituoso, o mestre de campo do terço de paulistas engajado na Campanha do Açu, Manoel Álvares de Moraes Navarro, organizou um ataque à aldeia dos Paiaku no ano de 1699. O mestre de campo enviou um mensageiro para avisar que ele pretendia discutir o apoio daqueles índios em uma campanha contra os índios Karatiú e Icó. Os índios Paiaku estavam obrigados pelo acordo de paz a colaborar nas guerras dos colonizadores contra outros povos nativos. Para celebrar o acordo, convidaram os soldados e os índios que os acompanhavam para realizar uma dança, importante elemento da cultura guerreira dos Tarairiú.

Moraes Navarro aproveitou-se da situação e enviou os Janduí, índios do Açu que o acompanhavam, para dançar junto com os Paiaku. No entanto, seus soldados foram orientados a atacar os Paiaku ao seu sinal, o que ocorreu durante a dança. O saldo desse episódio foi terrível para os índios: cerca de quatrocentos mortos e outros duzentos e cinquenta feridos. O massacre dos Paiaku foi levado às instâncias administrativas da colônia após as denúncias do Padre João da Costa e do Bispo de Pernambuco contra o mestre de campo Moraes Navarro e evidencia os conflitos de interesses existentes mesmo entre os agentes coloniais.

Em sua defesa, o sertanista alegava que índios agiam de forma traiçoeira e utilizavam o aldeamento como refúgio, para escapar da aplicação das leis e das punições da Coroa. A devassa movida contra Moraes Navarro resultou na excomunhão do mestre de campo por violar a legislação indigenista, ao atacar uma aldeia de índios amigos que estava sob orientações de um missionário, e determinou a libertação de todos os índios aprisionados no ataque

No ano seguinte, o padre jesuíta João Guedes (ou Joan Gincel) que fazia parte do terço de Moraes Navarro foi encarregado de reunir novamente os Paiaku em uma aldeia no Jaguaribe. Os anos seguintes foram turbulentos para o jesuíta, bem como para os nativos, que continuavam sofrendo oposição direta dos moradores daquela ribeira. De acordo com Studart Filho (1966), no ano de 1703, houve um novo conflito envolvendo os índios Paiaku e os curraleiros do Jaguaribe.

Os índios Paiaku já haviam solicitado ao Capitão-mor a transferência da aldeia para a ribeira do Choró, conforme previsão do Alvará Régio de 23 de novembro de 1700 que determinava que os índios fossem consultados quanto ao lugar do estabelecimento das suas aldeias. A solicitação, no entanto, foi negada a pedido dos moradores da vila de Aquiraz, que temiam problemas com a proximidade dos indígenas. Segundo as denúncias, os índios furtaram gado, feriram e mataram “com horrendas crueldades” muitos moradores do Jaguaribe, queimando alguns vivos. Para averiguar os supostos crimes cometidos, o Capitão-mor enviou uma diligência para a região.

A diligência organizada para apurar os supostos ataques realizados pelos Paiaku contou com a participação de índios Jaguaribara e outros caboclos. Como resultado, alguns jovens Paiaku foram capturados e feitos prisioneiros. Além disso, a sua aldeia foi incendiada, o que gerou novos problemas para o Capitão-mor, frente ao Governador-Geral do Brasil. Em virtude dos excessos cometidos na devassa tirada contra os índios, o Capitão-mor Jorge de Barros Leite teve que se explicar repetidas vezes aos seus superiores. Para minimizar os efeitos da desastrosa diligência, ordenou-se que todos aqueles que tivessem índios Paiaku em sua posse os restituíssem de volta para a sua aldeia.

No ano de 1704, o padre João Guedes organizou a mudança da aldeia dos Paiaku para a Paraíba, passando antes algum tempo no Rio Grande do Norte. No entanto, os efeitos dessa mudança parecem não ter sido permanentes. Embora a aldeia tenha sido removida do Jaguaribe, foi extinta poucos anos depois no seu lugar de destino. Por outro lado, em 1707, os índios Paiaku foram aldeados na Ribeira do Choró, próximo da vila de Aquiraz, justamente no lugar para onde pediram a transferência anos antes. Esse fato torna evidente que os índios negociavam constantemente com as autoridades coloniais, adaptando-se e resistindo aos planos dos colonizadores, de modo que a sua incorporação à sociedade colonial também era um elemento indispensável ao projeto colonial português.

Bibliografia Básica

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992. p. 115-132.
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: HUCITEC, EDUSP, FAPESP, 2002.
STUDART FILHO, Carlos. Páginas de História e Pré-História. Fortaleza: Ed. do Instituto do Ceará, 1966.

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