Revista Impressões Rebeldes

SOB O SIGNO DO MEDO

Depois de invadida por franceses em 1710 e 1711, os moradores da cidade do Rio de Janeiro entram em atrito com o governador. Francisco de Castro Morais seria denunciado pelo mais grave defeito que uma autoridade podia merecer naquele tempo: covardia. Portugal, temendo inquietações, não demora para trocá-lo.

Plan de La Baye, Ville, Forteresses, et attaques de Rio Janeiro, de autoria de Louis Chancel de La Grange, capitão de fragata da nau L’Aigle. FONTE: BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império – O Rio de Janeiro no século XVIII. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003.

Fernando Pitanga

Fernando Pitanga é professor da rede pública e mestre em História pela Universo. É autor da dissertação: Cair em desgraça ou cair nas graças: D. Vasco Fernandes César de Menezes e a repressão à revolta de soldados de Salvador (1728). Niterói, Universo, 2017.

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A cidade do Rio de Janeiro sofreu duas investidas francesas num espaço de um ano, no contexto da Guerra de Sucessão Espanhola (1700-1713). A primeira, entre agosto e setembro de 1710, quando o corsário Jean François Duclerc, à frente de cinco embarcações e 1200 homens, tentou tomar de assalto a cidade mas foi repelido pelos fortes da entrada da Baía de Guanabara. Desembarcando na região de Guaratiba, esse exército fez por terra o caminho até o perímetro urbano, levando uma semana para atingir a cidade. Extenuados pela marcha forçada e surpreendidos pela encarniçada resistência movida pelos defensores, sobretudo a população, livres e escravos, boa parte da tropa francesa foi dizimada em 19 de setembro. Quem não pereceu, caiu prisioneiro, como foi o exemplo do comandante Duclerc. Fizeram-se festas e luminárias, como o costume da época, louvando-se a conduta do governador Francisco de Castro Morais, do frei Francisco de Menezes e do emboaba Bento do Amaral Coutinho que organizaram a luta contra os invasores. As mesmas louvações se repetiram em Lisboa quando a notícia lá chegou no início do ano seguinte.

Como praxe nos domínios portugueses, as preocupações defensivas só duraram enquanto o perigo estava na ordem do dia. Nem terminavam as celebrações no Rio de Janeiro e em Lisboa, os franceses preparavam já outra expedição, maior e melhor aparelhada, comandada pelo experiente corsário René Duguay-Trouin. Apesar de vários avisos emitidos a respeito da possibilidade de uma nova investida francesa, o governador Castro Morais não se preparou de forma conveniente para outra invasão. Chegou a mobilizar a tropa paga, a milícia e as companhias de ordenanças, contudo como o inimigo não fora avistado, considerou que tudo não passava de um rumor e dispensou todo o aparato montado. Como se fosse um castigo divino, no dia seguinte, 12 de setembro de 1711, aproveitando-se das brumas da manhã, o corsário, misturando arrojo e extrema capacidade, adentrou a Baía de Guanabara. Mesmo sendo algo difícil, até para experimentados pilotos, postou suas dezoito embarcações de frente para a urbe. A frota portuguesa que estava ancorada esperando o ouro de Minas Gerais, embora com poder de fogo para combater o inimigo, foi inoperante, em parte pela surpresa do ataque francês, em parte pela inação de seu comandante, Gaspar da Costa Ataíde. No espaço de uma semana, mais de três mil franceses desceram à terra e foram ocupando os pontos estratégicos da cidade, principalmente os mais altos, sem a resistência das forças locais.

No dia 19 o comandante Duguay-Trouin deu um ultimato para o governador para que este capitulasse e entregasse a cidade sob pena dela ser arrasada pela artilharia invasora. O governador se negou mas quarenta e oito horas depois houve uma debandada geral dos sitiados. Homens, mulheres, crianças, idosos, soldados, comerciantes, religiosos e mesmo Francisco de Castro Morais abandonaram o Rio de Janeiro à mercê dos franceses. O quadro apocalíptico foi coroado com uma tempestade noturna que dificultou ainda mais a fuga. A cidade estava sob o controle do corsário.

Por quase dois meses Duguay-Trouin e seus comandados foram senhores do Rio de Janeiro. As propriedades e os pertences largados durante a deserção coletiva foram pouco a pouco sendo negociados pelos antigos donos com os franceses. Sim, estabeleceu-se um verdadeiro comércio entre invasores e os que tinham ainda algo de valor para negociar com os franceses. O comandante corsário pretendia com isso maximizar seus lucros pois era sabedor que uma expedição vinha descendo de Minas Gerais, comandada pelo afamado Antônio de Albuquerque, com o intuito de retomar a praça. Após muitas conversações entre Duguay-Trouin e o governador, chegou-se a um valor para o resgate da cidade: 610 mil cruzados, 100 caixas de açúcar e 200 bois. Para o corsário, não eram os reluzentes lingotes de ouro que imaginava encontrar na cidade, mas era um belo butim. O montante foi pago e em 13 de novembro a frota francesa zarpava da Guanabara. Três dias depois as tropas vindas de Minas adentravam o Rio de Janeiro.

Um ano antes, ao derrotar Duclerc, o governador Francisco de Castro Morais tinha sua bravura e atilamento louvados em impressos elogiosos. Mas a movediça política ultramarina tinha das suas. Agora Castro Morais, administrador experiente do império, que já governara o próprio Rio de Janeiro (1697-1699) e Pernambuco (1703-1707), convertera-se em um poltrão, um covarde, um precipitado que quis logo negociar com o inimigo mesmo sabendo que havia uma força expedicionária poderosa se encaminhando para a cidade. Por que não resistiu? Havia os terços da infantaria, as milícias, as ordenanças, a escravaria, os índios “frecheiros”. Essas perguntas foram feitas pela população e estimuladas pelos membros do Senado da Câmara. Dentre várias acusações imputadas a Castro Morais, a que ganhou corpo entre os oficiais da Câmara, representantes das melhores famílias da cidade, foi a de que o governador decidiu tudo sozinho quando deveria, segundo as regras do bom governo, estabelecer um Junta e decidir coletivamente. Parte do montante pago pela Fazenda Real, que foi dividido pelos moradores, era também um ponto de discórdia grave pois considerava-se que o governador deveria arcar com esse prejuízo, tendo em vista que a decisão foi sua. Essa e outras severas críticas a Castro Morais, como não podia deixar de ser, foram enviadas por correspondência ao reino. Em tais cartas os membros da Câmara capitalizaram muito bem a seu favor a sensação de insegurança daqueles primeiros anos do século XVIII. Segundo eles, era impossível que uma praça tão importante quanto a do Rio de Janeiro, porta de entrada para as valiosas minas e detentora de um alentado comércio com as mais variadas localidades do Império Português, fosse governada por um covarde, incapaz de lidar com uma tropa invasora, mesmo dispondo de forças para isso. Alertavam ainda a D. João V que seria muito difícil que a população ficasse sossegada, sem sobressaltos, mantendo no posto quem eles consideravam a causa de todos os seus infortúnios. Que se substituísse logo esse mau governador e se enviasse outro que, acima de tudo, valorizasse o escrutínio e experiência dos seus moradores desde os primeiros anos.

A argumentação concelhia calou fundo em Lisboa, sobretudo pelo perigo de que houvesse uma rebelião dos moradores do Rio de Janeiro. Governadores ruins poderiam ser substituídos, uma população desgostosa não. Francisco de Castro Morais foi remetido ao reino e condenado ao degredo na Índia, onde permaneceu por duas décadas. Antônio de Albuquerque assumiu o posto interinamente até a chegada de um novo governador, Francisco Xavier de Távora, em 1713.

Bibliografia Básica

BICALHO, Maria Fernanda B. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BOXER, Charles Ralph. A Idade de Ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial (1695-1750). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

DUGUAY-TROUIN, René. O corsário: uma invasão francesa no Rio de Janeiro. Diário de Bordo. Trad. Carlos Ancêde Nouguè. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2002.

SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria Fernanda. Virando séculos (1680 – 1720): o império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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