Revista Impressões Rebeldes

CALABAR: O ELOGIO DA TRADIÇÃO

De traidor a herói, os ecos do nome Calabar atravessam os séculos. Qual o papel da história na mitificação do mameluco de Porto Calvo?

Escultura do artista plástico Manoel Claudino da Silva localizada em Porto Calvo, Alagoas, que representa o momento da execução de Domingos Fernandes Calabar por garrote (foto: Maurício Silva/cortesia)

Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

Regina de Carvalho Ribeiro da Costa faz estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora da obra Calabar: a História do Mito e o Mito na História – Rio de Janeiro, Editora Telha, 2020.

Quem nunca ouviu falar de Domingos Fernandes Calabar? Em muitos livros didáticos, a pecha de traidor ainda prevalece. Em meio à ditadura militar brasileira, Calabar virou conto, romance e até peça teatral. Independentemente da polêmica centralidade do personagem no século XVII, a verdade é que Calabar foi um sujeito histórico sobre o qual muito se produziu nos séculos seguintes. Da historiografia à literatura, a vida dele foi apropriada de diferentes modos por distintos gêneros de escrita da História. Investigar as versões construídas sobre o mesmo personagem foi o intento das pesquisas publicadas em meu livro Calabar: a História do Mito e o Mito na História – Rio de Janeiro, Editora Telha, 2020.

Mas afinal, quem foi Calabar? No período histórico no qual viveu (1609-1635), Calabar foi mesmo um mameluco, natural de Porto Calvo, que lutou nas “guerras pernambucanas do açúcar”, para usar os termos de Evaldo Cabral de Mello em Olinda Restaurada (2007), inicialmente ao lado da resistência luso-brasileira e, após 1632, se tornou valioso aliado das tropas neerlandesas. Uma traição que ganhou muitas versões! À sua época, os testemunhos dos cronistas narraram de formas diferentes aquela que pode ser descrita como a rebeldia do mameluco.

Para quem só considera o início da historiografia brasileira a partir do nascimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), datado de 1838, foi no seio dessa instituição que a história do período de dominação neerlandesa nas capitanias do Norte foi revisitada e moldada. Das publicações na Revista do Instituto ao longo do século XIX às obras escritas por seus membros, a controversa história de uma “invasão holandesa” foi constantemente recuperada. Nesse exato momento em que a História da pátria estava sendo usada como parte do projeto de construção nacional, como afirmou Manoel Luiz Salgado Guimarães em Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional (1988), a polêmica traição de Calabar foi pinçada e transformada em uma espécie de anti-exemplo do Império.

Deste modo, foi mesmo através da pena de Francisco Adolfo de Varnhagen, primeiro-secretário do IHGB, que Calabar foi imortalizado como Traidor da Pátria. O reconhecido historiador oitocentista dedicou uma obra particular ao período, a História das Lutas com os Holandeses no Brasil (2002), na qual Calabar adentra à galeria histórica nacional como traidor. Uma deslealdade aos portugueses, quiçá aos espanhóis, para sermos mais honestos com o tempo de União Dinástica (1580-1640), foi transformada em uma traição à recém nascida Pátria Brasil.

Porém, se o trabalho do historiador requer uma clara distinção entre as fontes históricas enquanto testemunhos de época e a historiografia que se produziu a partir de tais fontes, somente as publicações dos membros do IHGB, reconhecidamente historiadores por ofício, contam como discurso autorizado sobre o passado nacional? Afinal, quantas fontes são necessárias para mitificar um personagem? Ou, ainda, uma mitificação de tal grandeza pode ser obra de um único historiador?

As perguntas nos levam a muitas reflexões, sobretudo no que concerne aos usos da história, da forma como a História é construída e do estatuto das fontes. Se a pesquisa nos discursos produzidos acerca de um personagem histórico revela que muito se narrou a respeito de sua rebeldia – a ponto de construir uma memória quase regional de Calabar – devemos desacreditar os escritos do século XVIII por não pertencerem à chamada historiografia oficial, isto é, não serem produzidos dentro de uma academia, por vozes autorizadas pelo discurso da História? Se não podem ser chamados “História”, qual estatuto recebem os registros que pretenderam descrever uma proto-história da colônia, a começar pelo clássico História do Brasil (1627), de Frei Vicente de Salvador, escrito ainda no século XVII?

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que as crônicas, em tese, referem-se a um registro específico, por vezes oficial produzido pela corte, definida por Antônio de Moraes Silva no Diccionario da Lingua Portugueza de 1789 como “uma história escrita conforme a ordem dos tempos referindo a eles as coisas que se narram”. Se as crônicas funcionam como testemunhas oculares, entrando na categoria de fontes, poderiam ser enquadrados como crônicas os relatos contemporâneos às guerras luso-holandesas do século XVII.

E os relatos regionais do século XVIII? Varnhagen em História das lutas com os holandeses no Brasil desde 1624 até 1654 (2002) nem sonhava em condenar Calabar como “desertor e traidor por todos os séculos dos séculos” quando Domingos de Loreto Couto considerou que a rebeldia de Calabar o fez o único infame entre tantos naturais daquela capitania que foram leais. Para o franciscano, autor de Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, obra concluída em 1757 – apenas para citar um exemplo de (re)escrita dessa história no século XVIII – Calabar, retratado como mulato, foi a único ponto fora da curva no céu estrelado das lealdades pernambucanas.

Na polêmica dos estatutos da escrita da História, será que os Desagravos do Brasil não passariam de uma crônica? Será que esse alargamento do conceito para englobar todo aquele “discurso histórico pré-historiográfico” não deturparia o próprio significado de crônica? Ou seria melhor enquadrar tais produções sob o grande chapéu da memória? Afinal, sobre a problemática dos lugares, já dizia Pierre Nora (1984) que, entre Memória e História, a História é una, proposta para ser ou se tornar oficial, enquanto a memória é “múltipla, coletiva, plural e individualizada”.

No entanto, se “a memória constitui, ao mesmo tempo, o material e o objeto da história”, como concluiu certa vez Jacques Le Goff em Memória e História (2003), os discursos assim chamados de memória, no lugar de fontes, não poderiam ser questionados como relatos que se propunham a construir uma história? Uma afirmação desse calibre conduziria a consideração de que as obras do século XVIII não podem ser avaliadas como discursos historiográficos pelo simples fato de não terem sido escritas por historiadores, com tal reconhecimento, quando, na verdade, a questão é muito mais complexa.

Na Máquina de gêneros (2001), segundo Alcir Pécora, enquanto memórias e crônicas são consideradas textos históricos, ao texto poético é reservado o lugar ficcional. O que dizer, portanto, das publicações literárias da virada do século XIX para o século XX, principalmente as produzidas neste último século, especialmente dos anos 1950 em diante, quando é possível identificar um verdadeiro boom de obras sobre Calabar? Exemplo mais conhecido talvez seja Calabar, o elogio à traição, de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra, publicada originalmente em 1975.

É bem verdade que tais “Calabares literários” recuperam a mudança de lado, mas não sob o signo da traição. A retirada do contexto original, isto é, fora do século XVII, abre espaço para uma série de novas narrativas – inclusive a do herói. A isto damos o nome de apropriação, cujo conceito de Roger Chartier em A história cultural: entre práticas e representações (1990) enfatizou as transformações e adaptações realizadas. Por serem textos ficcionais que não se desprendem de eventos reais, a discussão caminha para os limites entre História e Literatura enquanto formas de contar e representar o passado.

Textos literários, poesia, peça, romance ou conto são enquadrados como fontes, ainda sim sob a ressalva de não serem históricas, devido às distorções propriamente ficcionais, as quais cabem análise não só o conteúdo intrínseco, como o conteúdo extrínseco, como ensinou Antônio Cândido na obra Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária (1985). Apesar de não serem fontes históricas, Carlo Ginzburg no título O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício (2007) apontou que: “A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão histórica, ou ficcional, e assim por diante”.

Deste modo, o que não permite que os Calabares narrados na literatura sejam textos propriamente historiográficos seria, além do fato de não serem escritos por historiadores, a falta de compromisso com certos elementos factíveis do passado. Porém, se pensarmos que tais elementos são também eles representações da História, poderíamos ao menos encontrar uma linha tênue entre os processos de escrita e reescritura produzidos, respectivamente, pela História e pela Literatura.

Em todos os casos, vê-se que a história de um personagem não considera apenas os fatos ocorridos durante sua vida (a qual poderíamos considerar como uma biografia, tema riquíssimo que abriria nova vertente de discussão). De maneira veemente, a mitificação de um personagem, além de ser resultado de trabalho coletivo, isto é, não ser produzido por apenas um autor – seja ele historiador ou não – é feita por meio do intercâmbio de campos historiográficos, memorialísticos e literários.

Seja pelas fontes, seja pelos discursos construídos sobre o passado que atravessam os séculos, o popular nome de Cabalar ecoa em um vasto material que o fez ora como traidor, ora como herói, em uma multiplicidade que denuncia que os lugares da História, da Memória e da Literatura não estão tão bem definidos quanto nós historiadores pensamos à primeira vista.

Essa dúvida abre lugar à identificação de fronteiras tênues, as quais levam ao questionamento se a História é mesmo o discurso único e oficial, como difundiram os historiadores oitocentistas – crença ainda hoje persistente. A análise da construção mitificada de Calabar nos mostra a contribuição de cada gênero de escrita da história da sua própria perspectiva. E esse movimento, ao mesmo tempo que ilumina a porosidade do discurso histórico, o caracteriza tão múltiplo quanto vulnerável.

Bibliografia Básica

COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. (Original de 1757). Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1981.
HERMANN, Jacqueline; AZEVEDO, Francisca Nogueira de; CATROGA, Fernando. (orgs.) Memória, escrita da história e cultura política no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
HOLANDA, Chico Buarque de; GUERRA, Ruy. Calabar: O elogio da traição. 3. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
MELLO, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês. (1630-1654). São Paulo: Penguin Classics, 2010.
PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

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