Aldeia jesuítica de Reritiba, sul da capitania do Espírito Santo. Aos vinte e nove de setembro de 1742 uma multidão de fiéis vinda das comunidades vizinhas se acomodava em frente a igreja de Nossa Senhora da Assunção após o fim da procissão em honra a São Miguel. De repente, com ciúmes da índia casada Sebastiana, com quem “tinha tratos ilícitos”, o minorista Manoel Alvares, que estava na aldeia estudando a língua tupi-guarani, fere gravemente com um porrete o índio Fernando Silva, um dos músicos da banda que acompanhava o ritual. Ao ver o companheiro ferido, uma parte dos indígenas se revolta.
Percebendo a gravidade da situação, a direção da Companhia de Jesus no Espírito Santo, recolheu o minorista e um mês depois substituiu os padres que estavam em Reritiba. No entanto, ao chegarem à aldeia, os novos religiosos foram expulsos por um grupo de aldeados.
O arcediago da localidade de Guarapari, Antônio Siqueira de Quental, atendendo à solicitação dos padres expulsos, encontrou-se com os indígenas e conseguiu convencê-los a reintegrar os jesuítas à aldeia. Em troca do retorno dos religiosos, os indígenas exigiram: escolher as pessoas que cuidariam da administração da aldeia sem a interferência dos padres, anistiar os envolvidos no levante e mudar profundamente as condições de trabalho às quais eram submetidos.
Naquela época, a Companhia de Jesus dominava importantes setores da economia do sul capixaba como a pesca, a pecuária, o corte de pau-brasil, a exploração de madeira para a construção naval, o plantio e beneficiamento do algodão e a produção de aguardente. Em Reritiba todo o trabalho que sustentava aquelas atividades era exercido pelos indígenas que ficavam apenas com o suficiente para subsistirem. E a lista de arbitrariedades não parava por aí. Em Ubú e em outras comunidades litorâneas, por exemplo, os pescadores podiam trabalhar para seu sustento em apenas dois dias da semana; nos demais dias, tudo que pescavam era entregue aos padres. Em Reritiba e outras aldeias próximas, os jesuítas controlavam todo o comércio de pólvora, chumbo, anzóis, facas, ferramentas, feijão, farinha e panos de algodão, vendendo aos índios até mesmo itens produzidos por eles próprios.
Os indígenas acusavam os padres ainda de assediar sexualmente as mulheres das aldeias. Exemplo disso é o depoimento prestado a uma devassa organizada pelo Santo Ofício para apurar as irregularidades cometidas pelos inacianos durante sua permanência no Espírito Santo no ano de 1761, na qual se relatava que o antigo capitão-mor, Manoel Lopes, fora destituído do cargo quando se recusou a entregar uma de suas sobrinhas ao padre Francisco Correa.

Detalhe do quadro “Gesti Mendi de Saa” (1996) de Ronaldo Moreira – Casa da Cultura de Anchieta, ES
Todos esses abusos deixavam o clima tenso não só entre os padres e os aldeados, mas também entre os diferentes grupos indígenas que viviam em Reritiba. A situação chegou ao limite quando os padres Francisco de Lima e Pedro Reigozo, que retornaram à aldeia após a negociação com o arcediago Antônio Siqueira de Quental, não cumpriram o que fora acordado. Para vingar-se dos indígenas, os dois jesuítas prepararam uma emboscada no interior da igreja na qual prenderam os líderes da revolta e assassinaram dois filhos do capitão-mor Manoel Lopes.
Revoltado, o grupo ligado a Manoel Lopes saqueou a aldeia e se retirou para o vale do Orobó (palavra que na língua Tupi significa “a nós com a exclusão de vós”), interior do atual município de Piúma, fundando uma nova aldeia que, até um período que a documentação não nos permitiu precisar, se constituiu em um contraponto ao projeto colonizador português na região.
As notícias sobre a revolta espalharam-se rapidamente repercutindo em aldeias distantes como Reis Magos, na capitania do Espírito Santo, e Cabo Frio, na capitania do Rio de janeiro, atraindo para o Orobó indivíduos insatisfeitos tanto com os jesuítas, quanto irritados com as autoridades coloniais. Temendo que a região se transformasse em um novo Palmares, os governantes promoveram nas décadas de 1750 e 1760 devassas e outras ações para tentar dispersar os índios do Orobó, mas sem sucesso.
Além do caráter anti-jesuítico, essa revolta também ressaltou a disputa entre os diferentes grupos indígenas que viviam aldeados em Reritiba pelos cargos de administração da aldeia. Confirma-se assim que, em um território de circulação instável e permeável – nos quais grupos e indivíduos de diferentes origens estabeleciam relações de aliança e de inimizade – prevaleceram os acordos de interesses.