Revista Impressões Rebeldes

LIBERDADE PARA O PRÍNCIPE ENCOBERTO

Sob a acusação de liderar uma sublevação de africanos escravizados, o português Antônio da Silva foi preso na região do distrito diamantino em meados do século XVIII. O julgamento do forasteiro se estendeu por anos e ganhou rumos inesperados, incluindo a organização de um movimento profético entre os cativos

“Revista de escravo”, aquarela do artista Carlos Julião, retrata a opressão a que eram submetidos os escravizados no Distrito Diamantino. Fonte: Riscos Iluminados de Figurinhos Negros e Brancos dos Uzos do Rio de Janeiro e Serro Frio – Acervo Biblioteca Nacional

Ana Margarida Santos Pereira

Ana Margarida Santos Pereira é doutoranda em Humanidades na Universiteit van Amsterdam e professora da Universidade Federal de Alagoas (Campus do Sertão, Delmiro Gouveia). Autora de “Milenarismo e revolta na vivência dos escravos. Pregações e andanças do Príncipe Encoberto na região do ouro (Minas Gerais, séc. XVIII)” In: O espaço atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, 2008, Lisboa.

Antônio da Silva era um homem branco de origem portuguesa que, em meados do século XVIII, foi preso na Vila do Príncipe – atual Serro, em Minas Gerais. Teria sido um evento banal, não fosse a acusação formalizada pela justiça que lhe atribuía a liderança de uma sublevação na qual participariam diversos indivíduos de origem africana, parte do contingente de cativos que assegurava o funcionamento da economia da região. O caso se estendeu por vários anos, transitando do âmbito civil para o da Inquisição, com as apurações a revelarem elementos surpreendentes. Antônio da Silva seria, afinal, um príncipe, cuja presença na região mineira obedecia a um plano secreto, com objetivos ambiciosos. Independentemente de sua identidade, a investigação da qual foi alvo e os fatos nela apurados testemunham a ocorrência de um movimento profético, de carácter milenarista, em plena região mineira, no século do ouro. Por outro lado, tais evidências desafiam a ideia, geralmente aceita, de que o milenarismo – isto é, a crença judaico-cristã no fim da ordem em vigor, tida como iníqua e decadente, pela ocorrência de eventos catastróficos que anunciariam o regresso de Jesus Cristo para instituir uma era de justiça e felicidade com a duração de mil anos, até o Juízo Final – não teria tido penetração entre os africanos e seus descendentes no Brasil.

Por volta de 1742, chegou à Vila do Príncipe um homem barbado, de aparência humilde, que dizia se chamar Antônio da Silva. Para garantir o seu alimento diário, mendigava de casa em casa implorando pelas almas do Purgatório. Mais tarde, ele passou a exercer a função de mestre de meninos se instalando na casa de um morador local, onde recebia seus alunos. Uma atividade que seria bruscamente interrompida pela prisão do forasteiro, ocorrida após a divulgação de notícias segundo as quais Antônio da Silva deveria encabeçar uma “sublevação de negros”, com preparativos em andamento, que teria lugar na região.

A iminência de uma revolta de cativos naturalmente preocupava os proprietários locais, que teriam procurado neutralizar o perigo, exigindo a intervenção das autoridades para garantir a preservação dos interesses do grupo dominante e a manutenção da ordem instituída. Na ação, foram presos Antônio da Silva e Mariana da Assunção, preta escravizada de nação Xambá – sobre a qual recaía a acusação de ser sua cúmplice.

A partir de então, a história – cujos contornos eram, à partida, curiosos – tomou um rumo inesperado, revelando pormenores que fazem deste um caso único, sem paralelo no Brasil, durante o período de dominação portuguesa.

Até o momento, não foi possível localizar a devassa realizada pela justiça civil, a cargo do juiz ordinário. Porém sabemos que, no decurso dos interrogatórios, António da Silva foi acusado de heresia, com uma ou mais testemunhas a afirmarem que teria proferido “muitas palavras malsoantes, e contrárias à nossa santa Fé” como consta no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Maços, 58, doc. não num., fl. 271r;)

Uma tal acusação exigia que dela fosse notificado o Tribunal do Santo Ofício, sob cuja alçada recaíam os casos de heresia. O Brasil pertencia à jurisdição do Tribunal de Lisboa, cuja presença no território era assegurada por uma rede de funcionários – comissário, familiares e outros – que cresceu exponencialmente durante o século XVIII. Ainda assim, a Vila do Príncipe e sua região não eram abrangidas pela malha inquisitorial. Na ausência de um representante local que pudesse acolher a denúncia e encaminhá-la para Lisboa, o caso de Antônio da Silva transitou para a justiça eclesiástica que, na sequência, abriu um inquérito próprio, destinado a garantir o apuramento dos fatos. Estava-se, então, em 1744, com o ano prestes a terminar.

As informações apuradas pelo padre Miguel Carvalho de Almeida e Matos, vigário da vara do Serro do Frio, corroboraram a denúncia, patenteando a gravidade do caso. Seguindo os procedimentos que estava obrigado a cumprir, o vigário da vara informou os inquisidores, a quem enviou o auto de testemunhas e uma carta, na qual lhes comunicava sua intenção de manter presos os acusados até a chegada de notícias da metrópole. De resto, havia já solicitado o apoio das autoridades civis para assegurá-lo.

O inquérito subsequente, realizado por ordem do Tribunal de Lisboa, esteve mais uma vez a cargo do vigário da vara que, entre setembro e outubro de 1746, interrogou 15 testemunhas. A maioria pertencia à elite local: eram mineiros e proprietários de terras, alguns dos quais tinham contribuído, de forma direta, para a prisão de Antônio da Silva. Além destes, foram ouvidas Mariana da Assunção – a sua alegada cúmplice – e Clara, preta escravizada de nação Courá.

As audiências terminaram com o interrogatório do denunciado, que negou peremptoriamente todas as acusações que lhe haviam sido imputadas. As explicações por ele prestadas não seriam, porém, suficientes para persuadir o responsável pelo inquérito que, antes pelo contrário, viu nelas a confirmação de suas suspeitas. Em nova carta enviada aos inquisidores, o padre Miguel Carvalho afirmava, mesmo, que Antônio da Silva era “bastantemente sagaz e prospectivo” (ANTT, TSO, IL, Maços, 58, doc. não num., fl. 325v), o que lhe permitiria adaptar seu discurso conforme o interlocutor. Além disso, julgava que o forasteiro sofria “alucinações do Demônio”, em virtude das quais teria cometido os “absurdos” dos quais fora acusado.

Mas em que consistiam, afinal, esses “absurdos”? Ou seja, quais os fatos apurados no decurso dos dois autos de testemunhas? E o que teria justificado a mobilização das autoridades locais, tanto civis como religiosas, para neutralizarem um indivíduo que, de início, parecera totalmente inofensivo?

Bibliografia Básica

DELUMEAU, Jean (Org.). Injures et blasphemes. 1. ed. Paris: Imago, 1989.QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Dominus, 1965.

ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
VILLALTA, Luiz Carlos. O Encoberto da Vila do Príncipe (1744-1756): Milenarismo-messianismo e ensaio de revolta contra brancos em Minas Gerais. In: Fênix. Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 4, a. IV, n. 4, 30 p., out.-dez. 2007.
Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/PDF13/DOSSIE_%20ARTIGO_04-Luiz_Carlos_Villalta.pdf. Acesso em: 28 mai. 2020.

Leia também

    Imprimir página

Compartilhe