Revista Impressões Rebeldes

A CONJURAÇÃO DOS DEGREDADOS

Degredados para a África, súditos portugueses resolvem tramar contra autoridades coloniais no século XVIII

Luanda, capital de Angola e destino frequente dos degredados portugueses, retratada algumas décadas depois da conjura. Gravura de Alexandre de Bar: São Paulo, Luanda em 1830. Science Photo.

Juliana Abrahão

É doutoranda em História Social da Cultura na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professora na rede particular de educação básica nos municípios da baixada fluminense. É autora de “Degredo e degredados em Angola, século XVIII”. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2018.

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Um grupo de súditos portugueses condenados ao degredo em Angola, por crimes como assassinato, furto, moeda falsa, bigamia, entre outros, promoveram uma conspiração em 1762 que foi organizada por José Álvares, contando com a ajuda de outros desterrados no planejamento. Antes de colocarem os planos em prática, os envolvidos foram denunciados, presos, condenados e, alguns deles, como vamos ver, mortos devido à conjuração. Segundo o próprio José Álvares, líder da conjuração, os conspiradores planejavam assassinar o governador de Angola e demais oficiais subalternos, além de rechaçar o administrador do contrato real, Manoel Cardoso. O contrato real era o sistema de taxação sobre o tráfico de escravos no porto de Luanda, Angola. Os contratadores taxavam os carregamentos de escravos ainda em Angola e enviavam as receitas para a Coroa. Tudo isso nos leva a compreender que esses degredados estavam insatisfeitos com as novas circunstâncias em Angola, como a ausência de alguns privilégios, ou cargos administrativos/militares, que eram proibidos aos degredados pelas Ordenações Filipinas, e de mulheres,  entre outros desprazeres. Os degredados não podiam assumir postos administrativos ou militares. A conjuração foi importantíssima para demonstrar que os condenados eram personagens ativos no interior do Reino de Angola, local para o qual sofreram a pena de degredo. A política do degredo refere-se ao banimento do território português para o Ultramar, de pessoas indesejáveis, ou seja, que cometeram crimes que transgrediam as normas daquela sociedade de Antigo Regime. 

Em 16 de março de 1763, o governador de Angola, Antônio de Vasconcelos (1758-1764), escreveu ao secretário dos negócios ultramarinos, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, informando sobre uma “conjuração de degredados”. Além do governador, o juiz de fora de Luanda e demais camaristas informaram ao secretário ultramarino sobre a mesma insurreição e sobre as “desordens que eles têm cometido”. O governador reforçou o lastimoso “atentado dos degredados”, descreveu as lideranças, as penas aplicadas e rogou para que não se mandassem mais tais condenados de “vil conduta” para Angola, a exemplo do líder do motim, José Álvares de Oliveira, natural de Portalegre. 

Relatos informam que, mesmo antes de “embarcar na Corte de Lisboa, José Álvares pretendeu, com outros, matar os Guardas na Trafaria, para depois fugir pelo Alentejo donde era natural”. Ainda na viagem fez mais, premeditando um levante para fugir em destino a qualquer porto estrangeiro. Logo que o réu chegou a Angola, “passados poucos meses, expedindo o mesmo dito General um destacamento para Encoge na ocasião em que se tomou este Presídio, sendo o Réu [José Álvares de Oliveira] cabo de Esquadra de uma das Companhias”, aproveitou-se da situação e fugiu em um barco com as armas da Companhia (Juízo da Inconfidência – Autos da Devassa, 22 de janeiro de 1763, Angola. AHU, Angola, Avulsos, Cx. 46, D. 8). 

Como seus planos de fuga não alcançaram sucesso, Álvares resolveu estabelecer alianças com os “filhos de mar em fora”, forma como eram chamados os forasteiros ou estrangeiros em Angola. Seus primeiros cúmplices foram Francisco da Guerra e Antônio dos Santos. Sobre este último, algumas testemunhas afirmavam que era como se fosse filho de Álvares. Com eles foi tramada a conspiração. Mas nem mesmo os dois aliados sabiam o verdadeiro motivo do motim: rechaçar Manoel Cardoso, administrador do contrato real. Os demais participantes da conjuração, cujos nomes constavam no rol como pessoas da confiança do líder, eram Jerônimo Rodrigues e João Dantas (AHU, Angola, Avulsos, Cx. 46, D. 8).

Nos planos de José Álvares, a conjuração daria certo principalmente porque ele considerava as revoltas exitosas em outras partes da monarquia lusa, a exemplo dos casos de Pernambuco, Pará e Maranhão. Álvares disse a Francisco Guerra que “nesta terra se podia fazer um Levantamento; asseverando-lhe, que no Pará havia anos se tinha feito um” (AHU, Angola, Avulsos, Cx. 46, D. 8) e que, quando chegaram os desembargadores para realizar a devassa, foram impedidos de entrar. Confiava ainda que teriam sucesso no plano de tomada da guarda e assassinato do governador, pois este gostava de castigar os soldados, inclusive os enviando para a Pedra de Encoge, ao norte do Reino de Angola, da cidade de Luanda. Quais eram os planos dos conspiradores? Segundo as testemunhas do Juízo da Inconfidência, o réu José Álvarestinha determinado surpreender a guarda do Governador, matando depois, e aos seus subalternos, fazendo o mesmo aos Ministros, matando também depois aos mais moradores, que se lhe opusessem(AHU, cx. 46, doc. 8). Após roubarem as casas, os conjurados fugiriam em um navio para Loango, onde “se podiam incorporar com os Franceses, que na ocasião presente lhe não haviam de fazer mal” (AHU, Angola, Avulsos, Cx. 46, D. 8). Na descrição do cronista Elias Alexandre Corrêa, os “facinorosos” degredados planejavam assassinar o general e os oficiais, saquear casas e embarcar para o Brasil, embora alguns réus afirmassem que a fuga seria para Loango. Álvares fugiria para o Recife, em Pernambuco.

O líder ou cabeça do motim, José Álvares, acabou preso e condenado à morte por enforcamento, tendo sido posteriormente esquartejado, mesmo revelando todo o plano do “levantamento”. Ele próprio pediu por sua condenação e para que fossem inocentados os demais envolvidos, o que não aconteceu, já que os demais participantes também foram mortos. Os desejos do líder dos degredados não foram atendidos, mas ele e os demais tiveram acesso a um julgamento na justiça real. Portanto, não houve contestação da punição, até mesmo pela gravidade da acusação, qual seja, a tentativa de assassinato de um preposto do rei, crime considerado de lesa-majestade.

Muitos dos degredados que moravam em Angola foram acusados de participar da conjuração, mas os participantes efetivos foram José Álvares, Francisco da Guerra e Antônio dos Santos. Suas naturalidades remetem a cidades e vilas de Portugal e da América portuguesa, como Portalegre, Setúbal, Évora, Torres Novas, Coimbra e Lamego, Ilha da Madeira, Rio de Janeiro, Ceará e Bahia. A explicação para degredar homens oriundos da Ilha da Madeira, por exemplo, pode estar relacionada à política de povoamento empreendida pelo Marquês de Pombal. Segundo Catarina Madeira Santos, os casais da Ilha da Madeira e Açores “eram os que se davam melhor naquele clima [Angola], sobreviviam e poderiam garantir continuidade e reprodução do povoamento branco” (SANTOS, 2005, p. 170-171). 

Os conjurados também reivindicavam o aumento da imigração de mulheres brancas, situação reveladora de certa ambivalência. Por um lado, esta reivindicação confirmava a necessidade de povoamento branco, sobretudo os saídos do reino, que iam junto com suas esposas ou na maior parte, eram solteiros. De qualquer modo, a conjuração punha em xeque a política de povoamento branco, pois revelava sua dificuldade em enviar pessoas para Luanda. Por outro lado, ao reivindicarem “mulheres brancas”, os degredados agiam em prol do próprio projeto de colonização branca. A pena aplicada reordenou essa política de povoamento, da qual os degredados deveriam ser o meio de implementação, mas não dirigentes do processo.

A posição de Álvares na hierarquia social também pode ter influenciado sua condenação, apesar do crime de lesa-majestade prever a pena de morte. Ele era sapateiro, cabo de esquadra e degredado, mesmo assim possuía a honra de ser vassalo do rei e reconhecido como português. Foi por esse reconhecimento que se tornou digno de punição. Os principais conspiradores sofreram a pena máxima, ou a pena de morte prevista nas Ordenações Filipinas pelo crime de lesa-majestade. Os demais foram perdoados pelo governador, pois não eram as principais cabeças do motim. No saldo geral, a Conjuração de Degredados resultou em mais gente condenada à morte do que na Inconfidência Mineira de 1789, o que é silenciado pela historiografia sobre revoltas. 

Mesmo passados 20 anos, o cronista militar Elias Alexandre da Silva Corrêa mencionou que o governador Antônio de Vasconcelos condenara vários dos que participaram da conjuração, cujo plano objetivava atentar contra a sua vida. Por isso, foi considerado como um governante de gênio circunspecto que se inclinava à justiça: era mais Juiz; que Orador: o suplício seguia-se imediatamente ao delito” (CORRÊA, 1937, p. 25).  

A partir dessas análises podemos concluir que os degredados, em Angola ou Benguela, possuíam interesses não somente em estabelecer novas relações políticas e sociais, mas em fazer parte da principal atividade econômica desenvolvida no Reino de Angola. A circulação dos degredados não estava limitada ao litoral e, por isso, adentravam o sertão para realizar o comércio e estabelecer relações com chefes africanos, garantindo, de certa forma, a manutenção da monarquia portuguesa no Atlântico Sul, assentada no comércio interno de cativos na África, no tráfico atlântico de escravos e nas escravidões de ambas as margens.

Os degredados não eram meros instrumentos nas mãos das autoridades, o que notamos ao observar o desenrolar da conjuração. Esses sujeitos foram personagens ativos na história de Luanda e defendiam seus próprios interesses, de acordo com a sua condição. Sua inserção social tornou-se fundamental para o desenvolvimento de novas relações, mas, quando isso não ocorria, o degredado tornava-se excluído e buscava, de diferentes maneiras como se viu no caso da Conjuração de Degredados, uma forma de solucionar a situação. 

Bibliografia Básica

CASTRO, João Henrique Ferreira de. “Castigar sempre foi razão de Estado”? Os debates e a política de punição às revoltas ocorridas no Brasil (1660-1732). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, UFF, Niterói, 2016.

MAXWELL, Kenneth R. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil-Portugal, 1750-1808. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 

SANTOS, Catarina Madeira. Um governo “polido” para Angola. Reconfigurar dispositivos de domínio. (1750 – c.1800). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2005.

Fontes Primárias

Juízo da Inconfidência – Autos da Devassa, 22 de janeiro de 1763, Angola. AHU, Angola, Avulsos, Cx. 46, D. 8.

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