Revista Impressões Rebeldes

A BÁRBARA GUERRA DO AÇU

Longe de ter sido uma guerra de destruição completa, os conflitos entre colonos e "gentios bravos" - que resistiam à conquista de suas terras no nordeste do Brasil - envolviam complexas negociações temperadas com pesada violência das forças portuguesas

Dança dos tapuias, por Albert Eckhout (séc. XVII)

Patrícia de Oliveira Dias

Patrícia de Oliveira Dias é doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense e autora da Dissertação “Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira do Apodi-Mossoró (1676-1725)” (UFRN, 2015).

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A entrada de homens a serviço da Coroa portuguesa nos sertões do Estado do Brasil resultou em diversos conflitos entre os indígenas e os conquistadores. Apesar da peculiaridade de cada confronto, as autoridades régias passaram a chamar os constantes levantes indígenas no sertão de Guerra dos Bárbaros. Segundo o historiador Pedro Puntoni, em sua obra A guerra dos bárbaros, os primeiros destes confrontos ocorreram no Recôncavo Baiano, na capitania da Bahia, entre os anos de 1651 e 1679. O segundo maior conflito desta conflagração foi a Guerra do Açu, travada nos sertões das capitanias do Rio Grande, Paraíba e Ceará, entre os anos de 1687 e 1720. Apesar de essas duas áreas serem consideradas o palco de sangrentos acontecimentos, esses conflitos se espalharam pelos sertões do Maranhão, Piauí e Pernambuco.

Os índios que se levantaram contra aqueles que tomavam suas terras eram considerados, pelos homens da Coroa portuguesa, como “gentios bravos”. Com base nas informações obtidas por aliados Tupi, muitos conquistadores, cronistas e escritores do período colonial construíram um imaginário sobre os grupos que habitavam o sertão. A denominação generalista que surgiu dessa construção foi “Tapuia”, sinônimo de bárbaro, inimigo, indomável. Esta designação não poderia ser compreendida como um etnômio, mas sim como noção historicamente construída.

Vários grupos étnicos recebiam o nome de Tapuias. Dois grupos com uma população significativa no sertão podem ser citados: os Cariri, habitantes do sertão de dentro – atuais estados da Bahia, de Pernambuco e do Piauí; e os Tarairiús, que viviam no sertão de fora – área que abrange os atuais estados do Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba.

 

No infográfico acima é possível visualizar as áreas de intensa caça aos índios e os principais conflitos entre os nativos e os colonos – Acesse esse infográfico interativo no link: http://atlas.fgv.br/marcos/trabalho-e-escravidao/mapas/escravidao-vermelha

 

Os Trarairiús, divididos em vários grupos (Janduí, Airu, Pega, Canindé, Genipapo, Jenipapoaçu Capela, Icó, Caboré, Paiacu, Panati, Caratiú e Corema) não possuíam casas ou aldeias fixas devido à necessidade constante deslocamento, sempre em busca de áreas com melhores condições de caça, plantio e pesca entre os rios Jaguaribe, Apodi-Mossoró e Piranhas-Açu. A exemplo dos Cariri, estes foram aliados dos holandeses e incumbidos de defender o território ocupado por este povo europeu.

Com a saída dos holandeses do norte do Estado do Brasil, em 1654, as ações de incentivo à povoação dos sertões da Paraíba e do Rio Grande se intensificaram por parte de seus capitães-mores. O objetivo era ocupar o espaço, prevenindo a volta dos holandeses, bem articulados com os habitantes daquelas áreas, e possível invasão de outros povos europeus, além de torna-lo rentável para a Fazenda Real, neste caso com a implementação da pecuária. Este encontro entre duas formas tão distintas de práticas dentro de um espaço resultou em um dos mais longos e sangrentos conflitos, que ficou conhecido como Guerra do Açu, dentro do conjunto denominado por Guerra dos Bárbaros.

Em 1661, o então capitão-mor da Paraíba, João Fernandes Vieira, enviou ao rei dois filhos do principal dos Janduí, como exemplar daqueles que ocupavam os sertões. Em resposta a esse ato, o principal declarou-se inimigo dos moradores dessas capitanias. Possuidores de cavalos, os Janduí atacavam viajantes em estradas, invadiam aldeias de índios aliados aos moradores, capturaram e mataram o gado das fazendas e vaqueiros. Para evitar que uma guerra fosse declarada, várias tentativas de acordos foram feitas. No entanto, a rainha regente D. Luísa de Gusmão, ordenou que o governo do Rio Grande, auxiliado por Pernambuco e Bahia, iniciasse uma guerra contra o gentio levantado, extinguindo-o e evitando um prejuízo maior.

Em uma confusão no Açu, o filho de um dos principais foi morto, o que causou a ira dos indígenas e endossou o levante contra os moradores. No dia 15 de janeiro de 1687, os Janduí mataram cerca de 46 vaqueiros e os gados das fazendas que tomavam conta. O mesmo acontecia na Paraíba e no Ceará. Como resposta, o capitão-mor do Rio Grande, Pascoal Gonçalves de Carvalho, enviou algumas tropas ao sertão, que lutaram contra os indígenas, resultando na morte de muitos deles. Havia começado a Guerra do Açu. Em fevereiro de 1687, os oficiais da câmara de Natal solicitaram ajuda ao governador de Pernambuco, João da Cunha Souto Maior, e ao capitão-mor da Paraíba, Antônio da Silva Barbosa. Em resposta a estas súplicas, uma tropa foi enviada ao sertão sob o comando de Manuel de Abreu Soares com principal objetivo de combater os indígenas. O saldo do primeiro ano da guerra: mais de cem pessoas e mais de 30 mil cabeças de gado mortas.

A câmara do Natal enviou à Bahia um representante com as súplicas de ajuda. Matias da Cunha, então governador geral, resolveu despachar duas companhias do terço dos Henriques e dos Camarões, mais de 300 homens comandados pelo coronel Antônio de Albuquerque da Câmara. Lutaram contra aproximadamente 3000 arcos e fracassaram, resultando em tropas feridas, desertores e armas tomadas pelos indígenas. Dessa forma, o governador geral viu-se pressionado a encontrar uma nova saída. Primeiramente, considerou os confrontos como guerra justa, o que permitia o aprisionamento de índios sobreviventes dos combates por parte dos soldados. Reorganizou a estratégia de guerra, na qual objetivava encurralar os indígenas com as tropas de pernambucanos ao norte, comandadas por Antônio de Albuquerque Câmara e Manuel de Abreu Soares, e pelo sul com as duas tropas paulistas que já estavam prontas para seguir para Palmares, comandadas por Domingos Jorge Velho e Matias da Cunha, que vinha do São Francisco.

Manoel de Abreu Soares ganhou uma patente de capitão-mor de entrada, o que lhe dava autonomia jurisdicional. Partiu de Pernambuco com 154 homens, passando por Itamaracá e Paraíba recrutando mais 25 soldados de cada capitania. Para apoiar essa tropa, foram enviados 100 soldados dos Henriques comandados por seu governador, e 400 índios das aldeias de Diogo Camarão. Antônio de Albuquerque da Câmara recebeu mais armas, munição, homens pardos, criminosos e degredados. O paulista Matias Cardoso, que estava estacionando no São Francisco, deveria marchar para o sertão do Rio Grande com os seus 300 homens. Domingos Jorge Velho suspenderia a ida a Palmares e seguiria para Açu, com seus mais de 600 homens. Além desses, da capitania de Pernambuco deveriam marchar 80 homens para a fortaleza dos Reis Magos, que se encontrava devastada, 50 destes oitenta homens seriam enviados ao sertão para compor as tropas de Antônio de Albuquerque, e 30 seriam enviados à fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, no Ceará.

A estratégia pensada por Cunha não surtiu o efeito esperado. As tropas enviadas pelo governo de Pernambuco não estavam alcançando sucesso, ao contrário do que acontecia com as tropas de Domingos Jorge Velho. Mas os indígenas continuavam a frente. Muitos foram os moradores que fugiram dos sertões e nas tropas o número de desertores aumentava. Os homens comandados por Manoel de Abreu Soares passaram a saquear as fazendas do Açu em busca de alimento, o que aumentava o terror da população e a sensação de insegurança.

Os paulistas comandados por Matias Cardoso não haviam sequer saído do São Francisco, pois esperavam o abastecimento de pólvora e alimentos prometido pelo governador geral, bem como o pagamento de seus soldos, que deveriam ter sido entregues desde o primeiro dia do contrato. Em 1689, Cardoso solicitou postos militares de maiores patentes, soldado e capitães brancos, fardamento e pagamento de soldos para seus homens. Os reforços esperados por Cardoso chegaram em agosto deste ano, com o sargento-mor Manoel Alvares de Morais Navarro na companhia de mais 23 soldados, mas sem nenhum mantimento ou munição.

Enquanto Cardoso aguardava maiores incentivos para mover sua tropa para Açu, Domingos Jorge Velho conseguia importantes vitórias no campo de batalha. Em outubro de 1689, o sargento-mor do terço deste paulista, Cristóvão Mendes Arrais, capturou o principal dos Janduís, chamado de Canindé. Este principal possuía o comando de 22 aldeias que viviam nos sertões das capitanias do Rio Grande, Paraíba e Itamaracá.

Os rumos que a guerra estava tomando embasavam o argumento do governo geral, baseado na experiência das Guerras do Recôncavo, de que as tropas de paulistas eram menos dispendiosos, assim como as tropas de Camarões, conhecedoras dos costumes de guerra dos indígenas, portanto, mais indicadas para esta guerra. Assim, o governo da Bahia, em 1690, desmobilizou as tropas de ordenanças, as regulares, as milícias e a dos Henriques, nomeou Matias Cardoso mestre de campo e governador da guerra, Manuel Alvares de Morais Navarro continuou sendo seu sargento-mor, e criou sete companhias.

Parcialmente satisfeitos com os novos acordos, os paulistas foram para o posto do Açu. Durante o ano de 1690, os ataques nessa localidade não eram tão frequentes, pois além de haver índios aliados, havia um número de moradores que ajudavam na não aproximação dos índios tapuias. Resolveram então montar um ponto mais ao sertão, no rio Jaguaribe, para combater os índios que lá viviam. O ano de 1691 não foi dos melhores para essa tropa. Além das constantes investidas indígenas, uma peste de sarampo e a falta de mantimentos quase aniquilaram os soldados, o que levou a Matias Cardoso recuar para Açu em 1692, deixando um pequeno grupo no arraial do Jaguaribe. Devido às péssimas condições e a insustentabilidade desse posto avançado, receberam ondem do mestre de campo para voltarem para Açu. Além das condições em que encontravam seus soldados, Cardoso se viu desmotivado quando a legalidade da guerra justa foi posta em cheque. Com reais possibilidades de perder todos os cativos que havia conseguido durante os combates, os paulistas desanimaram em continuar na guerra.

Neste mesmo ano de 1692, Canindé foi libertado por Domingos Jorge Velho com a promessa de ajudar a encontrar uma mina de prata no rio Jacu e outra de esmeralda no rio dos Camarões. As minas não foram encontradas, mas uma importante decisão foi tomada por Canindé: oferecer um tratado de paz o então governador geral Antônio Luís da Câmara Coutinho. Nesse tratado, Canindé reconhecia que: todo o território ocupado por suas 22 aldeias eram do rei de Portugal; todos seriam batizados; em caso de invasão à América portuguesa oferecia cinco mil homens para a defesa; lutariam contra os indígenas considerados inimigos; prometeram não mais saquear o gado dos moradores do sertão do Rio Grande; os moradores poderiam voltar as suas terras, mas os rios e as terras para cultivo dos indígenas deveriam ser mantidos e respeitados; os moradores não os podiam cativar e os paulistas não poderiam mais provocá-los. Os termos do tratado foram aceitos.

Tal aceitação esteve longe de significar o encerramento dos conflitos.

Bibliografia Básica

ALVEAL, Carmen. SILVA, Tyego Franklim da. Na ribeira da discórdia: povoamento, políticas de defesa e conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de história militar na idade moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012.

LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande do Norte. Edição especial para o Projeto Acervo Digital Oswaldo Lamartine de Faria. Coleção Mossoroense.

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte: História e mestiçagens. Natal: EDUFRN, 2011.

PIRES, Maria Idalina Cruz. “Guerra dos Bárbaros”: resistência indígena e conflitos no nordeste colonial. Recife: FUNDARPE, 1990.

PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora Hucitec, 2002.

SILVA, Tyego Franklim da. Na ribeira da discórdia: terras homens e armas na territorialização do Assú. Dissertação (Mestrado em história) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte: 2015.

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