Revista Impressões Rebeldes

PRÓXIMO DESTINO: OROBÓ

Em 1742, uma briga passional expõe a instabilidade nas relações entre diferentes grupos indígenas e os jesuítas na aldeia de Reritiba, detonando a maior revolta da história da capitania do Espírito Santo

Aldeia de Iriritiba – ou Reritiba – em detalhe no mapa do sul da capitania do Espírito Santo – Fonte: AHU.CARTm.007.D.1050

Leonardo Nascimento Bourguignon

Leonardo Nascimento Bourguignon é doutor em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor da rede pública, autor do livro “De Muribeca a Guaraparim: retalhos da história litoral do sul do Espírito Santo” Ed. São Paulo: Opção, 2018, e da tese “Assumindo novas identidades: resistência indígena no litoral sul do Espírito Santo (Século XVIII)” – UFES, 2018

Aldeia jesuítica de Reritiba, sul da capitania do Espírito Santo. Aos vinte e nove de setembro de 1742 uma multidão de fiéis vinda das comunidades vizinhas se acomodava em frente a igreja de Nossa Senhora da Assunção após o fim da procissão em honra a São Miguel. De repente, com ciúmes da índia casada Sebastiana, com quem “tinha tratos ilícitos”, o minorista Manoel Alvares, que estava na aldeia estudando a língua tupi-guarani, fere gravemente com um porrete o índio Fernando Silva, um dos músicos da banda que acompanhava o ritual. Ao ver o companheiro ferido, uma parte dos indígenas se revolta.

Percebendo a gravidade da situação, a direção da Companhia de Jesus no Espírito Santo, recolheu o minorista e um mês depois substituiu os padres que estavam em Reritiba. No entanto, ao chegarem à aldeia, os novos religiosos foram expulsos por um grupo de aldeados.

O arcediago da localidade de Guarapari, Antônio Siqueira de Quental, atendendo à solicitação dos padres expulsos, encontrou-se com os indígenas e conseguiu convencê-los a reintegrar os jesuítas à aldeia. Em troca do retorno dos religiosos, os indígenas exigiram: escolher as pessoas que cuidariam da administração da aldeia sem a interferência dos padres, anistiar os envolvidos no levante e mudar profundamente as condições de trabalho às quais eram submetidos.

Naquela época, a Companhia de Jesus dominava importantes setores da economia do sul capixaba como a pesca, a pecuária, o corte de pau-brasil, a exploração de madeira para a construção naval, o plantio e beneficiamento do algodão e a produção de aguardente. Em Reritiba todo o trabalho que sustentava aquelas atividades era exercido pelos indígenas que ficavam apenas com o suficiente para subsistirem. E a lista de arbitrariedades não parava por aí. Em Ubú e em outras comunidades litorâneas, por exemplo, os pescadores podiam trabalhar para seu sustento em apenas dois dias da semana; nos demais dias, tudo que pescavam era entregue aos padres. Em Reritiba e outras aldeias próximas, os jesuítas controlavam todo o comércio de pólvora, chumbo, anzóis, facas, ferramentas, feijão, farinha e panos de algodão, vendendo aos índios até mesmo itens produzidos por eles próprios.

Os indígenas acusavam os padres ainda de assediar sexualmente as mulheres das aldeias. Exemplo disso é o depoimento prestado a uma devassa organizada pelo Santo Ofício para apurar as irregularidades cometidas pelos inacianos durante sua permanência no Espírito Santo no ano de 1761, na qual se relatava que o antigo capitão-mor, Manoel Lopes, fora destituído do cargo quando se recusou a entregar uma de suas sobrinhas ao padre Francisco Correa.

 

Detalhe do quadro “Gesti Mendi de Saa” (1996) de Ronaldo Moreira – Casa da Cultura de Anchieta, ES

 

Todos esses abusos deixavam o clima tenso não só entre os padres e os aldeados, mas também entre os diferentes grupos indígenas que viviam em Reritiba. A situação chegou ao limite quando os padres Francisco de Lima e Pedro Reigozo, que retornaram à aldeia após a negociação com o arcediago Antônio Siqueira de Quental, não cumpriram o que fora acordado. Para vingar-se dos indígenas, os dois jesuítas prepararam uma emboscada no interior da igreja na qual prenderam os líderes da revolta e assassinaram dois filhos do capitão-mor Manoel Lopes.

Revoltado, o grupo ligado a Manoel Lopes saqueou a aldeia e se retirou para o vale do Orobó (palavra que na língua Tupi significa “a nós com a exclusão de vós”), interior do atual município de Piúma, fundando uma nova aldeia que, até um período que a documentação não nos permitiu precisar, se constituiu em um contraponto ao projeto colonizador português na região.

As notícias sobre a revolta espalharam-se rapidamente repercutindo em aldeias distantes como Reis Magos, na capitania do Espírito Santo, e Cabo Frio, na capitania do Rio de janeiro, atraindo para o Orobó indivíduos insatisfeitos tanto com os jesuítas, quanto irritados com as autoridades coloniais. Temendo que a região se transformasse em um novo Palmares, os governantes promoveram nas décadas de 1750 e 1760 devassas e outras ações para tentar dispersar os índios do Orobó, mas sem sucesso.

Além do caráter anti-jesuítico, essa revolta também ressaltou a disputa entre os diferentes grupos indígenas que viviam aldeados em Reritiba pelos cargos de administração da aldeia. Confirma-se assim que, em um território de circulação instável e permeável – nos quais grupos e indivíduos de diferentes origens estabeleciam relações de aliança e de inimizade – prevaleceram os acordos de interesses.

Bibliografia Básica

CUNHA, Maria José dos Santos. Os Jesuítas no Espírito Santo 1549-1759: contactos, confrontos e encontros. 2015. 331 f. Tese (Doutorado em Teoria Jurídico Política e Relações Internacionais). Universidade de Évora, Portugal, 2015.

MATTOS, Sonia Missagia. A Aldeia de Iriritiba: atual cidade de Anchieta no Espírito Santo. Cadernos de História (UFU. Impresso), v. 07, p. 05-39, 2009.

RIBEIRO. Luiz Cláudio M. (org.). Devassa da reforma da religião da Companhia de Jesus nesta comarca do Espírito Santo. EDUFES: Vitória, 2018.
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Uma devassa contra os jesuítas do Espírito Santo (1761). Vila Velha: Edição do autor, 2014.

Leia também

    Imprimir página

Compartilhe