Revista Impressões Rebeldes

Pororoca de Mágoas

Soldados e indígenas amotinados cruzam fronteiras, pondo em risco os acordos entre Portugal e Espanha para repartir domínios na Amazônia no século XVIII

Prospecto do Quartel da Tropa da Guarnição da Vila de Barcelos, local onde ocorreram diversos movimentos planejados durante o período colonial. Desenho sem identificação de autoria e data. Biblioteca Nacional (Brasil), MAP.I,4,01, nº 016B, Manuscritos.
18 de dezembro 2025 Ano 13, n.2 (jul-dez), 2025

Rafael Ale Rocha

Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (2013) e professor de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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No amanhecer do dia 1 ou 2 de março de 1757, um grupo reunindo 120 soldados saiu do quartel da povoação de Mariuá, localizada no médio Rio Negro, em região estabelecida no atual estado do Amazonas, e iniciou um destacável movimento. Surpreenderam a guarda do mesmo quartel e, organizados em diversas patrulhas, ocuparam e tomaram a casa da pólvora, o armazém real e o quartel do comandante. Administrava a povoação o sargento-mor Gabriel de Souza Filgueiras, que, severamente agredido por um dos rebelados, segundo o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, só não veio a falecer por causa da intervenção do líder da rebelião, o soldado Manuel Correa. Ao invés de morto, o sargento-mor foi preso à mando dos líderes da revolta (FERREIRA, 2007, p. 224).

 Em seguida, enquanto os moradores “brancos” (grupo formado majoritariamente por colonos portugueses e seus descendentes) e os soldados que não aderiram à revolta se esconderam nos matos próximos à povoação, os revoltosos roubavam a munição encontrada no armazém real e entravam ou arrombavam as casas do povoado para a mesma finalidade. Então, aprontaram as canoas e os índios remeiros, desceram o rio Negro até o encontro com o rio Solimões e, a partir deste, rumaram para as terras espanholas. Muitos morreram durante o percurso. O soldado Manuel Correa, por sua vez, viveria ainda por muito tempo em domínios espanhóis, ocupando a função de sacristão-mor do Convento de São Francisco de Quito. 

Antes de chegar ao rio Solimões, contudo, o mesmo soldado Correa, considerando os pagamentos insuficiente, se apropriou das “fazendas” (ou seja, os bens) do “desenhador” italiano Antônio José Landi, que chegou de Belém um dia antes com os soldos (salários) para pagar a tropa. Posteriormente, Correa garantiu a segurança do sargento-mor Souza Filgueiras, diante da possibilidade de seu assassinato pelos rebeldes, instalando-o numa ilha fronteira a Mariuá. Em seguida, enfim, a expedição partiu em direção ao Solimões, após descargas de mosquetaria, enquanto os rebeldes gritavam repetidas vezes: “Viva El Rei, e morra o mau governo” (FERREIRA, 2007, p. 225). O naturalista atribuía o movimento, enfim, às condições de vida dos soldados, ou seja, ao não envio dos soldos e dos víveres, à fome e ao tratamento áspero (castigos e “sevícias”) a mando do sargento-mor comandante.

A situação tornou-se ainda mais preocupante porque três meses depois, em primeiro de junho do mesmo ano de 1757, eclodiu uma rebelião indígena envolvendo os aldeamentos missionários de Dari, Caboquena e Bararoá, localizados rio acima de Mariuá,  no mesmo rio Negro. Os revoltosos contavam com diversos Principais, saquearam a casa do missionário, investiram contra a igreja (derramaram os santos óleos, pisaram nos “vasos sagrados” e “arruinaram” a capela-mor) e tocaram fogo na povoação de Dari. Em setembro, assassinaram um chefe indígena amigo dos portugueses chamado Caboquena, no aldeamento que levava o seu nome, e o mesmo destino deram à outras pessoas e ao missionário da povoação, o frei carmelita Raimundo Barbosa. Os revoltosos também roubaram e queimaram a igreja desta localidade. Aparentemente informados sobre o abandono de Santa Rosa de Bararoá pelo destacamento que ali atuava, 20 soldados comandados por um capitão (ao que parece, refugiados numa ilha próxima), investiram contra essa povoação no mesmo mês de setembro, roubando a igreja, degolando a imagem de Santa Rosa, queimando o seu corpo no altar, colocando sua cabeça na proa de uma canoa rebelde e matando ainda dois soldados. 

No decorrer dos acontecimentos, ao tomarem conhecimento da deserção daqueles 120 soldados, outros índios entraram no movimento, decidindo por “surpreender” Mariuá.  O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, narrando o ocorrido, destacava os danos da empreitada para os projetos portugueses na região. Segundo Rodrigues Ferreira, os rebeldes tramavam “a última ruína, não só desta capital [Mariuá], mas a de todas as colônias portuguesas, estabelecidas nesta capitania” (FERREIRA, 2007, p. 31-32). A tomada de Mariuá só não aconteceu em função do envio do capitão Miguel de Siqueira Chaves com um corpo de infantaria para atacar e desbaratar os rebeldes. A ameaça que representava o movimento, enfim, envolvia o próprio projeto de colonização português na região. 

Alguns anos antes, em 1750, as coroas de Portugal e Espanha assinaram, em Madri, um tratado que visava demarcar definitivamente as fronteiras das colônias das duas coroas na América. É importante pontuar que a região atlântica se tornava cada vez mais importante frente ao Oriente para o império português, assim como a coesão continental dos domínios portugueses na América por via da Amazônia e da região centro-sul do Brasil. Além das demarcações no extremo sul e na região central do Brasil, o tratado previa a reunião de duas comissões na Amazônia, as “Partidas” portuguesa e espanhola, para estabelecer os marcos delimitadores, visto que colonos de ambas as monarquias já entravam em contato por meio do rio Solimões desde o século XVII. Segundo o tratado de 1750, a demarcação ocorreria por expedições realizadas pelas duas comissões, que implantaram em comum acordo os marcos com base em dois princípios bem definidos: os limites naturais (rios e montes) e a ocupação das regiões por portugueses ou espanhóis. A reunião das duas comissões, para iniciar o empreendimento, deveria acontecer, justamente, no aldeamento de Mariuá, criado por volta de 1728 e localizado no médio rio Negro.

Dada a incapacidade de enviar colonos portugueses para ocupar a vasta região amazônica, a monarquia investiu na “transformação” dos indígenas considerados vassalos do rei português em lusitanos de fato e promoveu esforços para tornar a região interessante economicamente, ou seja, desenvolver a agricultura e a produção de bens extrativos voltados também para a exportação. Para isso, adotou uma séria de leis: o incentivo ao casamento entre portugueses e índias (1755); a proibição da escravidão dos indígenas por quaisquer meios (1755); a retirada dos missionários do seu antigo comando sobre as povoações indígenas conhecidas como aldeamentos (1755), posteriormente, transformadas em vilas (municípios com câmaras, vereadores e juízes) ou lugares; a criação de uma companhia de comércio monopolista (1755), que facilitaria o tráfico de escravos africanos; e a legislação conhecida como Diretório dos Índios (1757/1758), que, dentre outras questões, buscava a transformações dos costumes propriamente indígenas, num processo chamado de “civilização”, e visava incentivar a agricultura e a extração dos produtos conhecidos como “drogas do sertão”. Instalou-se, também, o Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751), com sede em Belém, e foi determinada a criação da capitania de São José do Javari (1755), posteriormente São José do Rio Negro (porção do atual estado do Amazonas).

Deveria implementar todas essas reformas o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo – futuramente, Marquês de Pombal. Governando entre 1751 e 1759, em 1753 Mendonça Furtado foi nomeado 1º Comissário das demarcações pela parte portuguesa e, em fins de 1754, chegou em Mariuá com uma considerável expedição – partiu de Belém com 796 pessoas, somados a estas 205 soldados. Enquanto eclodia um motim de soldados em Belém no ano de 1755, em Mariuá o governador empreendeu reformas urbanas para instalar as comissões demarcadoras, tentou descer índios (resultando em conflitos contra indígenas no alto rio Negro) e, finalmente, retornou à Belém, em 1756, deixando o sargento-mor Gabriel de Souza Filgueiras no comando. Em 1758, após elevar em vilas e lugares diversos aldeamentos no Pará, retornou a Mariuá, quando, em maio do mesmo ano de 1758, elevou este aldeamento na vila de Barcelos, instalando assim a capital da nova capitania de São José do Rio Negro. Portanto, foi justamente durante a curta ausência de Mendonça Furtado de Mariuá que os levantes dos soldados e dos indígenas ocorreram, ameaçando a futura capital da nova capitania do Rio Negro e sede das demarcações dos limites entre Espanha e Portugal na Amazônia. No rio Negro, as desordens continuariam a acontecer nos anos vindouros.

Assim, por volta de 1766, 12 soldados do forte de Marabitanas, erigido em 1762 próximo à fronteira no alto rio Negro, desertaram para o lado espanhol, deixando o posto esvaziado e levando consigo as armas que encontraram no armazém real, além de pólvoras, balas, ferramentas e “fazendas”. Nesse momento, o mesmo fizeram os índios das povoações próximas, permanecendo somente cinco indígenas e algumas mulheres (AHU Rio Negro, cx. 2, doc. 126). No mesmo forte, em 1769, alguns soldados levantaram-se contra o comandante, libertaram um soldado preso, tentaram entrar no armazém real, no que foram impedidos pelo comandante Barnabé Pereira Malheiros, e depois fugiram para as “cachoeiras” (FERREIRA, 2007, p. 466 e 467).

Mais ameaçador, contudo, foi o movimento planejado, em 1777, na capital Barcelos. Antes da preparação deste movimento, agitações diversas ocorreram em Barcelos. Em 1760, por exemplo, a memória das desordens de 1757 ainda era presente, quando o primeiro governador da capitania, Joaquim de Melo e Póvoas, temeu “outro levante” após uma desavença que tivera contra o então tenente-coronel Gabriel de Souza Filgueiras, visto que, assim como os oficiais, os soldados passaram a criticar o governador (AHU Rio Negro, cx. doc. 76). No mesmo ano, soldados de Barcelos e de diversos destacamentos desertaram em direção ao Pará (AHU Rio Negro, cx. 1 doc. 77). Já em 1766, o governador interceptou cartas de soldados contendo calunias contra si e, no ano seguinte, um princípio de tumulto iniciado entre os soldados de Barcelos foi atribuído ao excesso de álcool (AHU Rio Negro, cx. 2, doc. 130; e AHU Rio Negro, cx. 2, doc. 140). Finalmente, em 1777, a ameaça de uma rebelião organizada pelos soldados da capital voltou a escandalizar as autoridades. 

Planejada pelo soldado Jacó Pascoal, o movimento iniciaria na madrugada do dia 5 de janeiro de 1777, quando em diversas patrulhas os soldados prenderiam os moradores, os oficiais, o ouvidor e provedor da fazenda (oficial de justiça e fazenda) e o governador. Quem resistisse seria morto, assim como o diretor de índios da vila. De posse das chaves do cofre da fazenda real e do armazém, pegariam pólvora, cartuchos, víveres e dinheiro. Assim, pagariam os oficiais rebeldes em conformidade com as hierarquias que estabeleceriam, marcadas pelo fardamento que tomariam dos oficiais. Enfim, prenderiam os índios remeiros necessários para a expedição e rumariam em canoas, destruindo as não utilizadas, para os domínios de Espanha. O principal cabeça do motim, delatado e reprimido em seu princípio, era o soldado Jacó Pascoal, que, segundo a investigação realizada pelo ouvidor, possuía o apoio de mais de cinquenta pessoas. Pascoal atraia os rebeldes por via de pagamentos que desejava fazer, destacando os ásperos castigos aos quais os soldados estavam sujeitos e, sobre a questão, “dizendo-lhes que os índios eram mais atendidos do que eles soldados” (AHU Rio Negro, cx. 3, doc. 187; FERREIRA, 2007, p. 468-469).

Portanto, os movimentos de 1757 não só ameaçaram o estabelecimento da colonização em uma região que crescia em importância para as políticas da monarquia portuguesa, mas apresentavam características próprias de levantes e deserções, planejados ou executados por soldados, que se seguiram a partir de então. Dentre essas características, num plano mais amplo, mencionamos a atração exercida pela fronteira espanhola, a revisão de hierarquias estabelecidas e a atuação dos indígenas como um agravante. Enquanto aspectos mais cotidianos, problemas com o pagamento de soldos e os maus tratos eclodiam os movimentos que, enfim, dificultavam as políticas imperiais da coroa e preocupavam as autoridades coloniais.

Bibliografia Básica

DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: CNCDP. 2000.

REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira. A Fronteira com as colônias espanholas. Belém: SECULT, 1993.

SAMPAIO, Patrícia Melo. “Aleivosos Rebeldes”: lideranças indígenas no rio Negro (século XVIII). Trabalho apresentado no XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH, São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011.

SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da conquista: Guerras e rebeliões indígenas na Amazônia Pombalina. 2ª Ed. Manaus: EDUA, 2002. 

SILVA, Leonardo Augusto Ramos. Na “Pátria das Sublevações”. Descontentamento e revoltas da gente de guerra no Rio Negro (1754-1777). Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, UFPA, Belém, 2023.

Fontes Impressas

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica ao Rio Negro. Manaus: EDUA, 2007.

Fontes Primárias

Ofício do governador do Rio Negro Joaquim de Melo e Póvoas, 08 de setembro de 1760. Barcelos, Rio Negro. AHU, Rio Negro, Avulsos, cx. doc. 76.

Ofício do governador do Rio Negro Joaquim de Melo e Póvoas, 16 de setembro de 1760. Barcelos, Rio Negro. AHU, Rio Negro, Avulsos, cx. 1 doc. 77.

Ofício do governador do Rio Negro Joaquim Tinoco Valente, 20 de fevereiro de 1766. Barcelos, Rio Negro. AHU, Rio Negro, Avulsos, cx. 2, doc. 126.

Ofício do governador do Rio Negro Joaquim Tinoco Valente, 22 de julho de 1766. Barcelos, Rio Negro. AHU, Rio Negro, Avulsos, cx. 2, doc. 130. 

Ofício do governador do Rio Negro Joaquim Tinoco Valente, 10 de agosto de 1767. Barcelos, Rio Negro. AHU, Rio Negro, Avulsos, cx. 2, doc. 140.

Ofício do ouvidor e intendente geral do Rio Negro Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, 12 de janeiro de 1777. AHU Rio Negro, cx. 3, doc. 187.

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Como Citar

Rafael Ale Rocha, "Pororoca de Mágoas". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/pororoca-de-magoas/. Publicado em: 18 de dezembro de 2025. ISSN 2764-7404

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