Revista Impressões Rebeldes

PENA CAPITAL AOS ALFAIATES

Em pleno iluminismo, autoridades do Brasil e de Portugal não têm dúvida sobre o que fazer com os rebeldes que, na Bahia, ousaram sonhar com a liberdade.

Montagem ilustra como seriam os rostos dos principais líderes da Conjuração Baiana

Gabriel Gaspar

Gabriel de Abreu M. Gaspar é graduando em História na Universidade Federal Fluminense e bolsista de iniciação científica (PIBIC). Pesquisa a Conjuração Baiana de 1798 e a trajetória administrativa de Fernando José de Portugal e Castro (1752-1817).

Em agosto de 1798, ocorreu o acontecimento mais notável da capitania da Bahia. Na manhã do dia 12 foram encontrados afixados em alguns pontos da cidade de Salvador onze papéis manuscritos que continham palavras como “povo”, “liberdade”, “deputados”, “liberdade popular”, “republicanos” e ordenava ao “povo baiense” que realizasse uma “memorável revolução”. Um dos pasquins afirmava “que está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais”. Outro, o Aviso de n. 9, declarava a existência de 676 “partidários da liberdade, 513 militares, dos quais 287 eram das tropas milicianas. Além disso, nos papéis se encontravam repetidas frases sobre a situação política na Europa, a condição da capitania, as discriminações por causa da cor de pele e, sobretudo, as ideias de liberdade, igualdade e república. Estes boletins podem ser consultados nos documentos da Inconfidência Baiana deste site.

Menos de dez anos depois da Revolução Francesa (1789), tais ideias não podiam deixar de ser consideradas antimonárquicas e contrárias à ordem estabelecida. Certo do caráter sedicioso de tais palavras, Fernando José de Portugal, o governador da capitania da Bahia, mandou investigar a autoria dos papéis. Além disso, como eram poucos os que dominavam a escrita na cidade, ele próprio decidiu comparar as letras dos pasquins com a de petições arquivadas na secretaria do governo. Foram encontradas semelhanças em duas petições do mulato Domingo da Silva Lisboa, que foi preso em 16 de agosto.

Dias depois, dois outros boletins apareceram na Igreja do Convento do Carmo e se dirigiam ao Governador e ao Prior do Carmo. Mesmo assim, estando o suposto autor dos primeiros preso, o aparecimento dos novos papéis não serviu para inocentá-lo. Um novo exame de verificação de letras foi feito e em 23 de agosto se efetuou a prisão de Luís Gonzaga das Virgens, homem pardo e soldado. Na casa deste soldado foram encontrados diversos papéis pessoais e, principalmente, cópias traduzidas do Orador do Estados Gerais em 1789 e um discurso do deputado francês Boissy d’Anglas, textos escritos na França e constituídos de elementos ideológicos da Revolução Francesa.

A prisão de Luiz Gonzaga motivou, por parte dos conspiradores, um encontro na casa do ourives Luís Pires, onde se decidiu uma reunião no Campo do Dique do Desterro em 25 de agosto. Convites foram feitos às mais diversas pessoas e algumas delas delataram a organização de uma reunião sediciosa à oficiais militares. No dia seguinte, d. Fernando designou o desembargador Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto a instalar um processo criminal para investigar os acontecimentos. Seguiram-se prisões, fugas, testemunhos e acareações.

Os acontecimentos acima só foram relatados a Lisboa alguns meses depois em extensa carta do governador ao Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho, datada de 20 de outubro de 1798. Contudo, por outras vias, d. Rodrigo já havia sido informado sobre a situação na Bahia, onde “as pessoas principais desta cidade […] se acham infectadas dos abomináveis princípios franceses e com grande afeição à […] Constituição francesa” segundo ofício de 04 de outubro de 1798. Pior, afirmava que a razão disso era a “frouxidão do governo e a corrupção da Relação [Tribunal da Relação]”. Em ofício de 28 de setembro do mesmo ano, d. Rodrigo expôs novamente suas preocupações, pedindo que d. Fernando mantivesse sempre “os olhos abertos para impedir que de modo algum se espalhem e tome consciência opiniões contrárias à Religião e ao Estado”. O ministro prosseguia afirmando ser necessário que o governador se mostrasse “disposto para usar da maior severidade contra toda e qualquer pessoa que se mostrar infecta de tais princípios, muito particularmente se for magistrado, militar ou comerciante”. Além disso, complementava que era desejável que d. Fernando estivesse mais propenso a corrigir os erros que, “por benignidade de coração”, perdoava em demasia, pois a “bondade de seu coração lhe encobre o vício dos outros”. Ora, d. Rodrigo insinuava claramente a frouxidão com que o governador conduzia a administração régia na Bahia e responsabilizava, em alguma medida, esta falta de rigor pela tentativa de sedição de 1798.

Em 1799, as devassas concluíram que houve a organização de uma conspiração cujo objetivo era instigar a população à sublevação para a instauração de um governo democrático independente. Quanto à punição dos envolvidos na conspiração, d. Rodrigo e d. Fernando concordavam. Ao tratar mais amplamente dos “abomináveis princípios franceses”, d. Rodrigo, defendia, em ofício de 4 de outubro, o uso da “maior severidade” contra todos que se mostrassem infectados por tais princípios e enfatizava que o “castigo de todos os réus seja verdadeiramente exemplar e contenha semelhantes criminosos”. Era opinião de d. Fernando que o delito de sedição pedia “pronto e imediato castigo”, mas que era acertado aguardar a resolução de Sua Majestade. Entretanto, era necessário considerar que constavam no processo várias classes de réus, as quais ele dividia em: os cabeças da sedição; os que concordaram e convidaram outras pessoas; os que aceitaram tais convites e presenciaram as conversas sediciosas; os que não denunciaram após receberem convites; e aqueles que, cientes da sedição, não denunciaram, pois faltaram à “primeira e mais essencial obrigação de um vassalo”. As penas impostas aos réus deviam respeitar tais “classes”: uns mereciam a pena ordinária e capital; outros, degredo, por um número maior ou menor de anos, conforme sua participação; e outros, graus menores de castigo.

Assim, a partir do estudo da documentação mencionada e da bibliografia consultada sobre a Conjuração Baiana, foi possível concluir que, apesar do Iluminismo reconhecer que o direito penal deveria respeitar os princípios da justiça e dos direitos dos homens, d. Rodrigo e d. Fernando, ilustrados portugueses, concordavam que os envolvidos na sedição deviam receber um “pronto e imediato castigo”, que se fizesse, também, exemplar, para que fossem contidos os dotados de ideias semelhantes. Afinal, segundo o secretário, no ofício de 04 de outubro de 1798, “prêmio e castigo são os dois polos sobre o que estriba toda a máquina política” e, naquele momento, “toda a vigilância contra os maus [era] indispensável e absolutamente necessária”.
Foram os quatro homens pardos executados em 7 de novembro de 1799 que sentiram, verdadeiramente, na carne o que significavam tais palavras.

Bibliografia Básica

JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império. História do ensaio da Sedição de 1798. São Paulo, Hucitec; Salvador, EDUFBA, 1996.
MATTOSO, Kátia de Queirós. Presença francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798. Salvador, Itapuã, 1969.
SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1932, v. 3.
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Sedição Intentada na Bahia em 1798. São Paulo, Pioneira; Brasília, INL, 1975.
VALIM, Patrícia. Corporação dos enteados: tensão, contestação, e negociação política de 1798. Tese (Doutorado em História Econômica). São Paulo, Universidade de São Paulo, 2012.

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