Revista Impressões Rebeldes

CIZÂNIAS ORIENTAIS

Em nome da liberdade e contra a tirania, religiosos agostinhos de Goa, na Índia portuguesa, pegaram em armas no Século XVII.

“Ruínas do Collegio do Pópulo”, local em que os agostinhos saíram para iniciar a rebelião. Ilustração do livro A Índia Portugueza: Breve descripção das possessões portuguezas na Ásia. Lisboa, Imprensa Nacional, 1886.

Margareth de Almeida Gonçalves

Margareth de Almeida Gonçalves é professora titular de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, autora de “Religiosos em armas: o motim dos agostinhos da Congregação da Índia Oriental” (Goa, 1638). TOPOI (ONLINE): REVISTA DE HISTORIA, v. 21, p. 122-146, 2020.

Junho de 1638. Uma movimentação incomum ocupou o Convento de Nossa Senhora da Graça, na subida da antiga calçada da Nossa Senhora do Rosário, em uma das colinas de Goa, capital do Estado da Índia Português, cidade também conhecida como “Roma do Oriente”. Respondiam pela conjuntura de tensões, os padres “filhos da Índia” que incendiavam o Monte Santo — uma designação estimada para a colina nas crônicas agostinhas da Índia Oriental, em metáfora ao Monte Sião em Jerusalém. Na manhã de 17 de junho, no crescimento da atmosfera de conflitos, um grupo insurreto de frades agostinhos deslocou-se do Colégio de Nossa Senhora do Pópulo, conectado ao convento Nossa Senhora da Graça por um arco sobreposto à rua dos Judeus que separava as duas edificações. No acesso ao convento, os rebeldes derrubaram com machados e paus de ferro o muro protetor da porta de separação, erigido poucos dias antes para bloquear a sana de jovens religiosos tomados pelo “fogo da ira e da paixão”.

Em clima de exaltação, tocaram os sinos e, em capítulo, aclamaram um novo provincial, o então reitor do Colégio de Nossa Senhora do Pópulo, frei Antão de Jesus, o mais velho dos “filhos da Índia”, nascido em Baçaim, na Província do Norte da Índia portuguesa, em substituição a Frei João de Mesquita, clérigo de origem no Reino. Portando armas, clamavam por liberdade, direito de autonomia e autogoverno. Não gratuitamente, foram acusados de parecerem mais soldados do que eclesiásticos, na reiteração de denúncia da deserção da soldadesca vinda da metrópole para os conventos em Goa, preocupação que irradiava na correspondência entre vice-reis e o centro da monarquia em Madri. Os amotinados urdiam a elevação da Congregação da Índia Oriental a uma posição de província independente, com a separação dos confrades agostinianos de Portugal.

“Documentos religiosos relacionados com a Ordem de Santo Agostinho” integram um códice da Biblioteca Nacional de Portugal, particularmente importante, uma vez que reúne manuscritos variados dos agostinianos, em italiano e latim, nos eixos de atuação na Ásia portuguesa e América espanhola. Nesse conjunto, localiza-se uma preciosa documentação de 115 fólios sobre o levantamento que abrange escritos dos próprios amotinados e reivindicações de autonomia da Congregação da Índia Oriental, como também amplas e variadas peças do processo que correu em Roma nos anos finais da dinastia Habsburgo (1580-1640) e primeiros da nova dinastia da Casa de Bragança, reinante em Portugal a partir da independência de Espanha, em dezembro de 1640. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, “Memórias da Congregação de Santo Agostinho no Oriente” é um extenso códice que parte comporta documentação em português sobre o motim de 1638 de separação dos agostinhos da Índia de seus confrades do Reino.

Registre-se que os primeiros religiosos da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho da Província de Portugal chegaram ao Índico seis décadas antes da rebelião, em 1572, no reinado de D. Sebastião I. Já ao final do século XVI, um breve do papa Clemente VIII, de 31 de janeiro de 1596, constituiu a Congregação da Índia Oriental subordinada ao convento-mãe da Província de Portugal, em Lisboa. O topo da estrutura de governo da Congregação da Índia Oriental corresponde ao lugar de vigário provincial, eleito pela Província de Portugal em capítulo reunido no convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa. Escolhidos pelo definitório de Lisboa acrescem-se os cargos superiores dos agostinhos no Oriente: prior do Convento de Nossa Senhora da Graça de Goa, reitor do Colégio de Nossa Senhora do Pópulo, além de quatro definidores, no papel de conselheiros do provincial, de mais de 30 anos, e dois visitadores para o Índico. A mediação com um ministro geral do centro romano da ordem dos eremitas de Santo Agostinho era efetivada pela Província de Portugal.

Em 2 de junho de 1638, quinze dias antes do ato de insubordinação, 77 frades da Congregação assinaram um termo de juramento de rompimento com a Província de Portugal, acusando-a pelo governo intruso e tirânico. Alegaram ter se esgotado o prazo do tempo de governo da Província de Portugal. Elencaram argumentos derivados das tópicas do direito natural e de liberdade, forjadas no entendimento da concepção estamental de sociedade. O levantamento expôs a fratura entre dois grupos de religiosos na Congregação da Índia Oriental: os de profissão no Reino e os de profissão em Goa. Entre os signatários do termo do manifesto, somente 23% eram procedentes de partes do Estado da Índia, entre os quais frei Antão de Jesus, o provincial eleito pelos levantados. Portanto, a pergunta: um movimento de confronto e disputa entre religiosos portugueses? A conspiração partiu do agrupamento de frades com profissão no Convnto de Nossa Senhora da Graça, em Goa, a maioria com nascimento no Reino

Complexo agostiniano na “Velha Goa”. Fotografia tirada pela própria autora em janeiro de 2015.

 

Alguns dados quantitativos da Congregação da Índia Oriental, desde a chegada dos primeiros religiosos ao Índico, oferecem um perfil singular e complexo da composição social dos religiosos professos. Os registros de matrículas de religiosos, no período entre 1572 e 1638, embora computados em bases imprecisas segundo os parâmetros estatísticos atuais, indicam cerca de 712 nomes. Desse contingente, 18% vestiram o hábito no convento de Nossa Senhora da Graça em Lisboa e uma maioria de 82% no seu congênere de Goa. Entre os que entraram através da casa conventual goesa, uma minoria, em torno de 20% corresponde a frades com procedência de partes do Estado da Índia, em maior número da cidade capital da banda oriental do Império.

Logo, não surpreende que dois dos líderes sejam procedentes de Portugal, frei Manoel da Purificação e frei Simão da Graça. Ambos vestiram o hábito com idade inferior a 20 anos. Eles teriam chegado à Índia na condição de soldados, como alguns dos religiosos que adentraram o claustro agostiniano em Goa? Permanece, entretanto, a dúvida, uma documentação anterior à entrada dos religiosos no convento agostiniano goês permanece desconhecida.

O motim contra o provincial frei João Mesquita foi tratado pelo Conselho de Estado da Índia, no qual vice-rei, arcebispo primaz e dois inquisidores zelaram pelo equilíbrio entre os súditos desobedientes, no intento da boa paz e da concórdia da República. De pronto, nessa fase da peleja, os conspiradores conquistaram junto ao Conselho da Índia a vitória de lutarem pela pretensão de construção de uma província autônoma junto a instâncias superiores em Roma. Foram escolhidos quatro procuradores, dentre os quais, frei Manuel da Purificação, líder da conspiração que iria circular como Procurador dos levantados pelos corredores da Congregação de Propaganda Fide em Roma. Logo, em 25 setembro, uma carta do vice-rei relata a morte do vicário provincial, alvo da conspiração, Frei João de Mesquita. Nos termos da missiva, embora a morte sucedesse “apressada, e em breves dias”, fora de doença e natural. Fato que não impediu o “escândalo” pela brevidade com que os filhos da Congregação partiram por terra em direção à Roma sem aguardar o prelado sucessor por direito que se encontrava em Cochim – cidade de relativa distância, localizada no Kerala, ao sul na costa ocidental da Índia.

Na sucessão das negociações na Cúria Romana, no momento da conjuntura política da Restauração Brigantina da década de 1640, a construção discursiva da burocracia tendeu a reduzir o movimento à participação de número diminuto de religiosos. Portanto, não foi anunciada aos agostinhos da Índia uma resposta conclusiva da notável congregação cardinalícia aos rogos independentistas.

O insucesso dos agostinhos da Índia em prol da independência em Roma não impediu que novos episódios de conflagrações assolassem o Monte Santo. Passada uma década, os ecos de 1638 ainda se faziam presente já que um ataque contra o prelado em exercício, frei Alexandre de Noronha, culminou no seu assassinato em janeiro de 1648. Os insurretos arrombaram a porta da cela do provincial, mataram-no por afogamento e, em seguida, jogaram-no por uma janela. Um “caso atroz”, na expressão de D. João IV na missiva ao vice-rei do início do ano seguinte, em que ordena de imediato o embarque dos culpados ao Reino antes de escaparem para a “terra de mouros”, metáfora ao extenso território que ultrapassava as fronteiras de Goa.

Atualmente, na Velha Goa, os dois edifícios do enredo da rebelião dos agostinianos de 1638 no Monte Santo não sobrevivem mais que ruínas. Parte do convento desabou ainda no oitocentos, em 1842, após a extinção das ordens religiosas em Portugal e seus domínios (1834). Hoje, o terreiro ocupado pelo Convento de Nossa Senhora da Graça e o Colégio de Nossa Senhora do Pópulo conforma um sítio arqueológico em que se destaca o esqueleto de parte da estrutura da outrora soberba torre sineira da Igreja conventual.

Bibliografia Básica

ALONSO, Carlos. Los Mandeos y las misiones católicas en la primera mitad del siglo XVII (= Orientalia Christiana Analecta, 179). Roma: Pontificium Institutum Orientalium Studiorum, 1967.
FARIA, Patricia Souza de. Mais soldados e menos padres: remédios para a preservação do Estado da Índia (1629-1636). História Unisinos, v. 16, n. 3, set./dez. 2012, p. 357-368.
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XAVIER, Ângela Barreto. Fr. Miguel da Purificação, entre Madrid y Roma. Relato del viaje a Europa de un franciscano portugués nacido en la India. Cuadernos de Historia Moderna, 2014, Anejo XIII, 87-110.

Fontes Impressas

BOCARRO, António. Livro das Plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do estado da Índia Oriental. In: PEREIRA, A. B. Bragança (ed.) Arquivo Português Oriental (Nova Série). Goa: Tipografia Rangel, Tomo IV, v. II, 1600-1699, parte I, p. 59-60.
REGO, António da Silva. Documentação para a história das Missões do Padroado Português do Oriente. Índia. V. XI. Lisboa: Arquivo Geral do Ultramar, 1955.

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