Revista Impressões Rebeldes

GUERRA E PAZ NOS TRÓPICOS

Entre o litoral de São Paulo e o Espírito Santo, a chamada Confederação dos Tamoios envolveu tupinambás e tupiniquins, portugueses e franceses, católicos e calvinistas. Num troca-troca de alianças, a guerra que assegurou no Século XVI a conquista da terra, acabou com um massacre.

Imagem da série “Guerras do Brasil.doc” (2018) dirigida por Luiz Bolognesi.

Danilo José Zioni Ferretti

Danilo José Zioni Ferretti é professor no curso de História e no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de São João del-Rei. Autor de “A Confederação dos Tamoios como escrita da história nacional e da escravidão. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 8, n. 17, 2015, p.171-191.

A chamada Guerra ou “Confederação” dos Tamoios opôs, de um lado, os indígenas tamoios (um subgrupo dos tupinambás) e seus aliados franceses e, de outro, os indígenas tupiniquins e temiminós (também tupinambás) junto aos portugueses. Os ameríndios desempenharam papel de protagonistas, aspecto nem sempre considerado, mas o conflito não se organizou somente com índios de um lado contra europeus de outro. Pautadas pela lógica das guerras intertribais, as alianças foram cruzadas, ou seja, alguns europeus e indígenas eram, ao mesmo tempo, adversários e aliados de outros europeus e indígenas. Ocorrida na região compreendida entre o litoral do atual estado de São Paulo e o do Espírito Santo, ela foi marcada por uma série de combates localizados e incursões de ataque e apresamento de escravos, envolvendo autoridades e colonos portugueses, jesuítas, militares e comerciantes franceses, guerreiros e chefes tupiniquins e tupinambás, que se estendeu de meados dos anos 1540 até pelo menos a década de 1590.

O termo tamoio (ou tamuya), na língua tupi, significa “avós”, “mais velhos” e designava os tupinambás localizados entre o litoral norte do atual estado de São Paulo até Cabo Frio-RJ, adentrando pelo interior ao longo do vale do rio Paraíba do Sul. Viviam de agricultura, coleta e caça, organizavam-se em redes de aldeias de 300 a 2 mil moradores, não tendo outra autoridade política articuladora além dos acordos conjunturais entre os chefes locais. Guerras com outras etnias ameríndias eram constantes e tinham papel fundamental em sua organização social, movida pela vingança contra os inimigos e marcada por ritos de sacrifício e antropofagia. Se os vizinhos tupiniquins eram seus principais adversários, a partir de meados dos anos 1550, os tamoios passaram a se opor a outro grupo tupinambá, os temiminós, “mais novos” ou “netos” em tupi. Sob a liderança do chefe Maracajáguaçu, ou Gato Grande, os temiminós viviam na atual Ilha do Governador e se distinguiram dos tamoios pela aliança que travaram com os portugueses. Esses, em 1555, livraram os índios de Gato Grande do cerco tamoio e os transportaram de navio até o Espírito Santo, abrigando-os em um aldeamento e deles se servindo para a defesa da capitania contra os goitacás.

Quanto à relação dos tamoios com os portugueses, há relatos de que ela foi relativamente amistosa nos primeiros contatos, ainda na década de 1530. Mas isso se alterou com o desdobramento da colonização. Um primeiro motivo estaria no fato dos colonizadores, por seu pequeno número, precisarem se aliar com algum dos grupos indígenas existentes para poderem se estabelecer em terra, o que fazia com que, tendencialmente, se tornassem adversários dos indígenas inimigos dos seus aliados. Dessa forma, os portugueses, em São Vicente, se aliaram com os tupiniquins, antigos inimigos dos tamoios, e esses ligaram-se aos franceses, rivais dos portugueses. Mas o motivo mais relevante da indisposição tem a ver com as violências e traições que os colonos passaram a impor, cada vez mais, aos tupinambás.

Na origem da violência estava a dinâmica da colonização que se enraizava em torno das vilas portuguesas de São Vicente e Santos, no litoral de São Paulo. Essa região concentrava, desde 1532, um dos primeiros núcleos de engenhos de açúcar das colônias de Portugal na América, financiado por capitais holandeses e italianos, movidos a trabalho escravo de indígenas. Em 1548, havia pelo menos seis engenhos com cerca de 3 mil índios cativos e 600 portugueses. Essa crescente demanda por escravos indígenas foi lenha na fogueira dos conflitos, que passaram a ser estimulados pelos lusos visando ter novos escravos graças aos prisioneiros feitos pelos seus aliados tupiniquins, o que, por sua vez, acirrou a lógica da guerra de vingança pelos tamoios.

A situação se complicou quando, em 1555, os franceses, há décadas comerciando pau brasil com seus aliados tamoios, se estabeleceram no forte Coligny, construído numa ilha no meio da baía da Guanabara, quando ainda não havia a cidade do Rio de Janeiro. Iniciava, assim, a breve experiência da França Antártica. Experiência plural e conflituosa. Sem deixar de negociar pau brasil, ela abrigava tanto um projeto católico e monárquico de exploração agrícola escravista, localizada no núcleo de Henriville, no continente, quanto um projeto calvinista, também estabelecido no continente, mas separado tanto dos católicos quanto dos indígenas, com quem, no entanto, estabeleciam uma pedagogia da conversação, marcada por uma convivência sem mescla. Para fazer frente a todas essas ameaças, a Coroa portuguesa enviou uma frota sob comando do terceiro governador-geral, Mem de Sá, para destruir a fortaleza francesa. Contando com a participação de tupiniquins, temiminós, colonos vicentinos e baianos, a expedição de Mem de Sá tomou e arrasou, em 1560, o forte Coligny, anulando a base francesa na Guanabara, que, no entanto, continuava sem ocupação definitiva portuguesa.

A destruição do forte francês era uma das iniciativas de um conjunto articulado de campanhas levadas a efeito por Mem de Sá, governador-geral de 1557 até 1572, empenhado em efetivar os objetivos definidos, em 1548, na instalação do Governo Geral. Ou seja, ele fazia de tudo para suprimir as ameaças ao domínio lusitano na América: os franceses, sem dúvida, mas acima de tudo as diversas etnias de indígenas indóceis, infinitamente mais numerosas. Caetés em Pernambuco, tupiniquins de Ilhéus e Espírito Santo, tupinambás do recôncavo baiano e da Guanabara. Contra todos eles, Mem de Sá combateu, destruiu aldeias, escravizou e encheu as praias de corpos. Em carta de 1559 à rainha regente, o próprio Mem de Sá relatou que “na noite que entrei nos Ilhéus fui a pé dar em uma aldeia que estava a sete léguas da vila. (…) Antes da manhã, às duas horas ataquei a aldeia e a destruí e matei todos os que quiseram resistir. Na vinda vim queimando e destruindo todas as aldeias que ficaram atrás. O gentio reunido seguia-me ao longo da praia. Fiz algumas emboscadas contra eles (…). Eles lutaram no mar de tal forma que nenhum tupiniquim ficou vivo. E os trouxeram todos para terra e os colocaram ao longo da praia em ordem e seus corpos ocuparam quase uma légua” (Nóbrega, 1559 apud Almeida, 2000, p.45)

A guerra de resistência dos tamoios tornava-se, a partir de então, a porção meridional da grande guerra colonial orquestrada pela coroa portuguesa e que era parte de um plano maior de imposição de pleno domínio sobre os indígenas americanos. Para tanto, desde 1548, o regimento do Governo Geral estabelecia a primeira política da monarquia do que deveria ser feito com os índios do Brasil. Ela era pautada pela submissão, que poderia se dar por dois caminhos: o “pacífico”, do aldeamento gerido pelos jesuítas, e aquele efetivado pelo uso direto da força contra os resistentes, a guerra justa, que tornava legítima, pelas leis do reino, a escravização dos sobreviventes. Desse último caminho cuidava melhor que ninguém a espada de Mem de Sá e, para tanto, tinha o apoio incondicional dos jesuítas.

Chegados em 1549, com a implantação do Governo Geral, depois de tentarem a missionação baseada somente no convencimento, os jesuítas logo perceberam que era difícil retirar os hábitos tradicionais indígenas, principalmente aqueles que consideravam mais atentatórios ao seu modelo de vida cristã: a antropofagia, a poligamia, o reconhecimento dos pajés, as bebedeiras de cauim. Os padres Nóbrega e Anchieta passaram a defender que o único modo de introduzir os gentios ao cristianismo era mediante o uso da força, “obrigando-os a entrar” (compelle eos intrare) pelo medo. Sem índios aterrorizados não haveria disciplina e a possibilidade de sucesso da “via pacífica” do aldeamento. Nesta, mantinha-se a condição jurídica livre do indígena, mas sob a tutela dos padres, sendo vista como uma alternativa de sobrevivência e adaptação por certos grupos ameríndios diante da violenta expansão do colonialismo, como parece ter sido a percepção dos temiminós.

Por isso, no contexto da guerra aqui tratada, os jesuítas sempre estiveram ao lado das iniciativas bélicas da coroa contra os tamoios e outros indígenas indóceis. E esses só cresciam, com o alastramento das doenças trazidas pelos europeus – que foram o maior fator de extermínio – e com o aprofundamento das práticas de exploração e escravização pelos colonos portugueses. De tão intensas, essas práticas corroeram alianças até com muitos dos antigos aliados tupiniquins, como ocorreu na passagem para a década de 1560. Houve, então, um racha entre os tupiniquins, havendo uma parte que partiu para o ataque aos portugueses, cercando a vila de São Paulo em 1561. Esse é o contexto da tão falada embaixada dos padres Nóbrega e Anchieta junto aos tamoios da aldeia de Iperoig (atual Ubatuba-SP), que pode ser entendida como uma tentativa dos padres tirarem vantagem da adversidade, mobilizando a seu favor a lógica tradicional de alianças das guerras intertribais.

O “tratado de Paz de Iperoig” conseguido pelos jesuítas, em 1563, e há séculos incensado por relatos religiosos e de história como exemplo de bondade conciliatória cristã, foi, no entanto, a redefinição das alianças entre os grupos para dar novo encaminhamento à guerra. Os jesuítas aproveitaram o levante de tupiniquins para estabelecer um acordo entre os velhos inimigos deles, os tamoios, com os portugueses. Não foi paz no sentido de fim definitivo do conflito, mas paz momentânea com os portugueses e nova aliança destes com alguns tamoios para guerrear contra a parte dos tupiniquins que se haviam rebelado. E, mesmo assim, foi uma paz limitada à aldeia de Iperoig, não respeitada pela grande maioria dos tamoios, que viviam na baía da Guanabara e continuaram com seus ataques de esquadrões de canoas e chuvas de flechas.

Junto a colonos de São Vicente, Nóbrega e Anchieta escreveram a autoridades solicitando a fundação de um núcleo definitivo de povoamento português na Guanabara, foco maior de contestação. Com esse fim, duas armadas foram organizadas. A primeira, enviada em finais de 1563, comandada por Estácio de Sá, sobrinho do governador Mem de Sá, juntou colonos, os temiminós do Espírito Santo, agora sob comando do chefe Arariboia, e tupiniquins organizados pelos jesuítas de São Vicente e partiu para a Guanabara. Em 1565, aí lutou e fundou um primeiro arraial português, no continente, aos pés do Pão de Açúcar, considerado, não sem controvérsias, o primeiro núcleo da atual cidade do Rio de Janeiro. Nesse momento, foram distribuídas as primeiras terras pelo sistema de sesmarias, sendo as maiores doadas à câmara e aos jesuítas, que assim iniciavam a acumulação de seu grande patrimônio fundiário, base material de sustentação de seu trabalho de catequese.

A segunda armada, de 1567, foi liderada por Mem de Sá e veio reforçar a ocupação iniciada por seu sobrinho. Ela mudou o núcleo urbano para área com mais capacidade de expansão, mas ainda assim defensável, como era o Morro do Castelo. Mais importante, ela se empenhou na destruição das principais aldeias de tamoios da Guanabara. Em acirrado embate, tomaram a aldeia de Uruçumirim e também atacaram o reduto tamoio de Paranapecu, escravizando os tamoios rendidos. Consolidaram, assim, a cidade do Rio de Janeiro, logo transformada na mais importante de toda a parte sul da América portuguesa. Em recompensa, os combatentes temiminós receberam terras em sesmaria onde hoje é a cidade de Niterói, constituindo aí o aldeamento de São Lourenço, que também deveria servir como baluarte de defesa contra ataques de eventuais inimigos.

Milhares de tamoios sobreviventes encontraram-se com os do Cabo Frio, mais ao norte. Aí eles foram atacados, em 1575, pela expedição do governador Antônio de Salema, formada por colonos do Rio de Janeiro, de São Vicente e índios aliados. Ocorreu violento confronto, conforme correspondência do jesuíta Luiz da Fonseca, em que portugueses teriam matado 2 mil índios e escravizaram outros 4 mil, que foram distribuídos entre os colonos das capitanias do sul. Os sobreviventes dispersaram-se para o interior ou o norte. Um núcleo deles permaneceu no vale do Paraíba. Deles são as últimas notícias que se têm dos tamoios, por meio do aventureiro inglês Antony Knivet que, por volta de 1597, viveu entre eles por mais de um ano, seguindo milhares de tamoios para o litoral, até cerca de Peruíbe, onde foram combatidos e escravizados por nova expedição de Martim Correia de Sá. Como não é fácil identificar um início para a guerra também não é fácil precisar o seu fim. As notícias sobre conflitos com tamoios rarearam a partir do início do séc XVII.

Bibliografia Básica

ALENCAR, Agnes. “A silenciosa construção de uma guerra: uma França Antártica indígena”. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n 12, 2017.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas. Identidade e Cultura nas Aldeias Coloniais. 2a Edição Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013.
HEMMING, John. Ouro Vermelho: a conquista dos índios brasileiros. São Paulo: Edusp, 2007.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. Das Letras, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz e SZTUTMAN, Renato. “Notícias de uma certa confederação tamoio”. Maná, Rio de Janeiro, vol. 16, n. 2, 2010.

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