Revista Impressões Rebeldes

PALMARES: UM REINO AFRICANO NO BRASIL?

A historiografia sobre palmares é revisitada para avaliar a presença de tradições africanas na organização política dos mocambos que se formaram nas matas de Pernambuco.

Detlhe da carta topográfica de Pernambuco com a região dos Palmares circundada em vermelho, de José Gonçalves da Fonseca, 1766 (Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar do Exército Português)

Silvia Hunold Lara

Silvia Hunold Lara é professora colaboradora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É autora de Campos da Violência. Escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808 (1988) e Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa (2007). Juntamente com Joseli M. Nunes Mendonça, organizou a coletânea Direitos e Justiças no Brasil (2006) e, com Gustavo Pacheco, Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein. Vassouras, 1949 (2007).

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A história das fugas de escravos e dos quilombos no Brasil é geralmente narrada de modo a valorizar a luta pela liberdade empreendida pelos fugitivos. No caso de Palmares, essa perspectiva nasceu ligada ao movimento abolicionista e cresceu a partir de meados do século XX, predominando até os dias atuais, com abordagens que salientam as características heroicas das lideranças palmaristas e servem de inspiração para os que combatem as desigualdades sociais e o racismo. Há, porém, outra vertente analítica, que valoriza as raízes africanas de Palmares.

O primeiro autor a tratar do tema foi Nina Rodrigues, que considerou ser Palmares “uma criação exclusivamente bantu”. A tese foi desenvolvida depois por Arthur Ramos, que observou que as tradições africanas haviam se adaptado à realidade da escravidão no Novo Mundo. Foi, entretanto, a partir da obra de Edison Carneiro, O Quilombo dos Palmares, publicada em 1946 no México e em 1947 no Brasil, que este ponto de vista ganhou força. Para ele, Palmares era “um pedaço da África transplantado para o Nordeste do Brasil” – e a cultura africana oferecia aos escravos um repertório para a resistência, fazendo parte de um processo que ele chamou de “contra-aculturativo”. Assim, a “reafirmação da cultura e do estilo de vida africanos” nos quilombos constituía a base para a luta “contra os padrões de vida impostos pela sociedade oficial”.

Apesar de alguns autores, como Mário Martins Filho (em Reino negro de Palmares, de 1954), continuarem a enfatizar as características africanas de Palmares, a historiografia brasileira abandonou aos poucos essa perspectiva analítica, para valorizar o “protesto escravo” e a resistência dos cativos diante da escravidão. Os significados políticos da história dos mocambos tornaram-se cada vez mais importantes e a liderança tenaz de Zumbi no Outeiro do Barriga concentrou essa força simbólica. A obra de Décio Freitas consolidou e deu corpo a essa leitura da história de Palmares. Seu livro, Palmares. A Guerra dos Escravos, publicado em 1971 no Uruguai e em 1973 no Brasil, depois revisto e aumentado diversas vezes até 1984, se constrói como um esforço para afirmar “o conteúdo político e revolucionário das revoltas escravas”.

Enquanto isso, a partir dos anos 1960, com o desenvolvimento da historiografia africanista nos Estados Unidos, os estudos internacionais sobre o negro ganharam novas dimensões, tanto acadêmicas quanto políticas. Palmares chamava a atenção dos pesquisadores, pois abria possibilidades interessantes para investigar o modo como as culturas africanas haviam se desenvolvido fora da África. Nas décadas seguintes, autores como Raymond Kent, Stuart B. Schwartz e Robert Anderson retomaram o debate sobre as origens africanas de Palmares, trazendo contribuições relevantes tanto para a história dos mocambos e seus habitantes quanto para a discussão mais ampla acerca do nascimento de uma cultura afro-americana.

O debate girava em torno de dois aspectos básicos. O primeiro dizia respeito à homogeneidade ou heterogeneidade dos habitantes de Palmares. Escrevendo em 1965, Kent recorreu a análises linguísticas para mostrar que a maioria dos habitantes dos Palmares era falante do quimbundo e teria vindo “do perímetro Congo-Angola”, embora sem pertencer a um sub-grupo específico. Anderson e Schwartz insistiram na diversidade cultural dos escravizados e na incorporação de elementos europeus e locais. O segundo aspecto referia-se à presença e à importância das formas tradicionais africanas na organização social e política dos Palmares. Kent considerava os quilombos uma “recriação de sociedades africanas num novo meio”. Palmares teria se inspirado em vários modelos africanos de governo e de vida, construindo um estado centralizado capaz de governar “não apenas indivíduos de vários grupos étnicos africanos mas também os nascidos no Brasil”. Schwartz retomou o tema num artigo que foi reescrito várias vezes entre 1970 e 1992. Ele também considerou que os mocambos ecoavam formas políticas e sociais africanas, mas sugeriu que a inspiração estava nos kilombo Imbangala – nome dado a sociedades rituais que congregavam guerreiros centro-africanos que haviam invadido a região de Angola ao longo do século XVII. Com rituais próprios, o kilombo reunia homens que não estavam integrados por laços de parentesco nem por deuses ancestrais e viviam em acampamentos nômades, voltados para guerras e conquistas, dando-lhes coesão social, religiosa, política e militar. Adaptando esse modelo ao Novo Mundo, Palmares formava uma comunidade na qual “escravos de várias origens, africanos e crioulos, uniram-se em sua oposição comum à escravidão”.

Posição semelhante foi defendida por Robert Anderson que, entretanto, acentuou o caráter fortemente “crioulizado” da cultura palmarista, considerando difícil que os mocambos pudessem ter constituído um reino centralizado conforme algum modelo centro-africano. Essa interpretação foi posteriormente reforçada pelos resultados das escavações arqueológicas realizadas na Serra da Barriga nos anos 1990 que localizaram grande quantidade de artefatos indígenas e algumas faianças portuguesas e holandesas. Ainda que os arqueólogos tenham interpretações um pouco diferentes entre si, todos tendem a salientar a interação de elementos indígenas, europeus e africanos na formação dos Palmares, ressaltando seu caráter “multiétnico”, “pluralista” ou “afro-brasileiro”.

O debate sobre as origens africanas de Palmares foi retomado mais recentemente, com a publicação de artigos de John Thornton, no final dos anos 2000. Apoiado nas reavaliações acerca das características e do volume do tráfico de escravos no século XVII e em um estudo minucioso das guerras na região de Angola, este autor observou que a população escrava em Pernambuco era constituída por mais de 80% de pessoas provenientes da região angolana. Poucos seriam Imbangala, temidos entre os habitantes da região por seus costumes e, especialmente, pelo papel que ali desempenhavam na escravização de pessoas. Recusando a tese da inspiração Imbangala, Thornton retomou análise de Kent e afirmou que Palmares era um estado centralizado, em que o poder estava nas mãos de uma oligarquia capaz de organizar a população e mobilizá-la para a guerra, presidindo provavelmente uma distribuição desigual do trabalho e da riqueza. Para ele, a organização política de Palmares teria se inspirado nos exércitos centro-africanos, já que muitos de seus habitantes deviam ter sido soldados em Angola, em algum momento de suas vidas.

Ainda que Schwartz, Anderson e Thornton considerem ter havido diferentes fases na história de Palmares, a avaliação que fazem sobre suas características africanas não leva em conta mudanças ao longo do tempo. Este é, todavia, um aspecto importante, que merece atenção. As fontes indicam que as autoridades coloniais em Pernambuco não trataram os habitantes dos mocambos sempre do mesmo modo.

No início dos anos 1660, ao tentar um acordo de paz com os palmaristas, o governador da capitania negociou com um “principal”, “maior”, “maioral” ou “rei”. No final da década de 1670, o rei dos Palmares não apenas governava os mocambos, seus “cabos” e habitantes, mas também liderava uma rede de parentes que, por sua vez, ocupavam os principais postos políticos e militares dos mocambos. Depois do fracasso do acordo de 1678, da morte de Gana Zumba e da destruição da aldeia de Cucaú, em 1680, esta linhagem deixou de existir. Zumbi, sobrinho de Gana Zumba, havia se retirado para o “mais oculto destes Palmares”, levando “consigo a melhor gente de guerra”, e resistia às investidas das tropas enviadas pelo governo de Pernambuco. A correspondência administrativa dos anos 1680 e 1690, embora mencionando a família do “negro” Zumbi, refere-se a ele como “capitão” e “corsário”, ressaltando mais suas qualidades militares que políticas. Essa mudança na forma de tratar as lideranças de Palmares acompanha o desaparecimento da parentela governante e da rede de mocambos. Nesse período, havia um núcleo fortificado no outeiro do Barriga e alguns assentamentos menores esparsos – e a documentação registra “correrias” praticadas pelos palmaristas, que se estendem por largos espaços da capitania.

Assim, até o início da década de 1680, não há indícios documentais que possam aproximar Palmares dos kilombo Imbangala. Ao contrário. O que as fontes sugerem é que Palmares foi tratado pelas autoridades coloniais como um estado linhageiro, diante do qual adotaram procedimentos políticos semelhantes aos praticados com os reinos e sobados centro-africanos. Havia uma estrutura militar em Palmares, mas o governo era exercido pelos membros de uma linhagem, que foi reconhecida como tal pelo governo de Pernambuco. Quando a linhagem governante dos Palmares foi destruída, entre 1677 e 1680, as autoridades pernambucanas passaram a perseguir Zumbi e as lideranças remanescentes de Palmares para impedir a formação de um novo reino – do mesmo modo que fizeram na África Central com o rei “rebelde” do Ndongo, finalmente derrotado em 1671. Foi neste contexto, em meados dos anos 1680, que a palavra “quilombo” começou a aparecer na documentação referente a Palmares.

Como bem observou Schwartz, neste termo “está codificada uma história não escrita” que é preciso decifrar. Baseado na obra de Joseph Miller, Schwartz pensou sobretudo nos kilombo Imbangala, mas não deu muita importância ao fato de que, ao longo do século XVII¸ houve algumas mudanças importantes na África Central. Alguns grupos Imbangala se aliaram aos povos Ambundo, adotaram parte de seus costumes e formaram reinos que resistiam ao avanço colonial português; suas capitais eram chamadas também de “quilombo”. Mais que o acampamento guerreiro dos Imbangala, é esse significado mais alargado e político do termo “quilombo”, tal como registrado na documentação referente à África Central da segunda metade do século XVII, que foi empregado para designar as cercas que se formaram nos Palmares depois da destruição da linhagem palmarista. Ele ajudava a sublinhar a resistência dos assentamentos mais militarizados que se espalhavam pelas matas de Pernambuco. Depois, com os regimentos dos capitães do mato a partir das primeiras décadas do século XVIII, o termo foi se tornando mais usual, ganhando definições mais específicas.

Angola e Pernambuco eram mundos conectados em termos econômicos, militares e políticos. Prestar atenção na circulação de palavras e significados entre as duas margens do Atlântico permite levantar uma nova hipótese para entender a presença das tradições africanas em Palmares. Como bem afirmaram Kent e Thornton, os habitantes dos mocambos não eram simplesmente “africanos”, mas centro-africanos; não simplesmente “bantu” mas falantes de quimbundo e provenientes do entorno de Luanda, provavelmente aprisionados nas muitas guerras que devassavam a região. Os costumes e a cultura política que trouxeram consigo, ao serem escravizados nos sertões angolanos e traficados através do Atlântico, inspiraram o modo como organizaram suas vidas na escravidão das fazendas açucareiras de Pernambuco e nos assentamentos que formaram quando fugiram para os matos. Ao longo do século XVII, essa maneira de ver o mundo e nele viver serviu de guia para suas ações e reações diante das diferentes conjunturas, estando na base da formação de um reino linhageiro ou de quilombos mais militarizados. Assim, pode-se concluir que, de certo modo, Kent, Anderson, Schwartz e Thornton têm todos razão – mas não todo o tempo.

Bibliografia Básica

CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares, 1630-1695. São Paulo: Brasiliense, 1947.

LARA, Silvia. Quem eram os “‘negros do Palmar”? in: RIBEIRO, Gladys Sabina; FREIRE, Jonis; ABREU, Martha Campos; e CHALHOUB, Sidney (orgs.). Escravidão e cultura afro-brasileira: temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes. Campinas, Editora da Unicamp, 2016, pp. 57-85.

RODRIGUES, Nina. As sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX. Palmares. Os africanos no Brasil. [1932]. 5ª ed., São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977, pp. 71-93.

SCHWARTZ, Stuart B. Repensando Palmares: resistência escrava na colônia. In: Escravos, roceiros e rebeldes. (Trad.) Bauru: Edusc, 2001, pp. 219-261.

THORNTON, John K. Angola e as origens de Palmares. In: Gomes, Flávio. Mocambos de Palmares. Histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010, pp. 48-60.

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