Revista Impressões Rebeldes

CONSPIRAÇÃO POR CONVENIÊNCIA

O vice-rei da Bahia em 1665 acusa e prende opositores por prepararem "capítulos" reclamando de seu governo e acaba desautorizado. Os conselheiros do rei acharam que era justo e aceitável escrever contra as autoridades

“Os Conjurados de 1640 / quadro de M. Gustavo”. Em Portugal uma conspiração conduziria a nobreza a organizar uma revolta contra a Espanha e ao fim da União Ibérica.

Luis Henrique Souza dos Santos

Luis Henrique Souza dos Santos é mestrando no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ).

Acessar Lattes

A cidade de Salvador após a primeira investida e domínio dos holandeses durante curto período em 1624, passou por constantes modificações no que se refere aos assuntos militares e administrativos. Foram diversos os ofícios administrativos criados durante os anos 1630 e 1640 para dar conta das demandas dos moradores da região, assim como para melhor enfrentar os desafios no Estado do Brasil – naqueles anos Salvador era a cabeça do Estado. O domínio batavo sobre Pernambuco, ainda que à léguas de distância do recôncavo baiano, despertou então intensas preocupações nas gentes portuguesas que habitavam e geriam a região.

Apesar de o inimigo holandês ter sido expulso de Pernambuco na década de 1650, as praças militares de Salvador depois disso continuavam a necessitar da atenção da Coroa da mesma forma que aconteceu trinta anos antes, quando da invasão de 1624. A impossibilidade de envio de reforços econômicos à Bahia não significava, contudo, que aquelas terras não recebiam atenção da monarquia. A década de 1660 avança com poderosas vitórias para a jovem monarquia restaurada dos Bragança à frente de Portugal, e garantir suas possessões na América era fundamental — ainda mais se levarmos em conta a perda dos importantes mercados asiáticos, uma vez que ali os holandeses tiveram sucesso em dominar as praças lusitanas.

D. Vasco de Mascarenhas, 1º Conde de Óbidos, foi um célebre militar português que parecia agregar em sua atuação diferentes necessidades dos Bragança diante da guerra contra Castela, que ainda resistia à independência de Portugal: manutenção de suas possessões no ultramar e a fidelidade dos nobres portugueses. Segundo a tese de doutorado de Érica Lôpo de Araújo, sua carreira inclui ofícios como mestre-de-campo em Salvador entre os anos de 1626 e 1634; capitão general da artilharia na mesma cidade de 1638 a 1639; e posteriormente governador interino do Estado do Brasil em 1640. Após o golpe de 1º de dezembro que deflagrou o processo de Restauração de Portugal, em dois períodos de tempo distintos, ocupou o governo do reino do Algarve, e a província do Alentejo. Contudo, a experiência política de maior prestígio na carreira de D. Vasco de Mascarenhas foi o Vice-Reinado do Estado da Índia em uma altura em que os holandeses se voltavam para a ocupação de possessões lusas na Ásia, na medida em que Pernambuco caía. Enquanto Vice-Rei do Estado da Índia, Conde de Óbidos ficou poucos meses, sendo deposto por acusações de não respeitar as tradições locais e de ser permissivo quanto às invasões dos holandeses às províncias vizinhas.

Após a deposição de seu governo na Índia, D. Vasco compõe o Conselho de Estado em Portugal, sendo um dos protegidos do valido do Rei, o Conde de Castelo Melhor. Possuindo estas conexões no Reino, é nomeado como Vice-Rei do Estado do Brasil em 1662. Há que se destacar que o Brasil havia tido apenas um Vice-Rei até aquele momento, D. Jorge de Mascarenhas, o Marquês de Montalvão, nomeado por Felipe II em 1640. Este posto de alta importância naqueles anos implicava maiores poderes do que o de Governador-Geral – prática mais corrente para os oficiais no comando da capital do Estado.

Seu vice-reinado tem início em 1663 e, tão logo começa seu governo, D. Vasco demarca sua posição quanto à organização dos postos militares na cidade. O regime de ordenação em postos e ofícios em Salvador obedecia aos desígnios do Conselho Ultramarino: o Tribunal fundado em 1642 realizava consultas junto aos principais representantes da cidade ou recebia petições de aspirantes aos ditos ofícios. O Conde de Óbidos, contudo, considerava que era de suma importância o Vice-Rei ter agência sobre estes assuntos. Até 1665, ele se envolve em grandes conflitos com desembargadores, capitães de infantaria, mestres de campo e alguns religiosos sobre o tema. O Conselho Ultramarino, em conjunto com o chanceler e demais desembargadores do Tribunal da Relação destacavam que não cabia ao Conde Vice-Rei nomear para ofícios de justiça e militares da cidade aqueles que julgasse serem os mais merecedores. Os letrados da cidade o acusavam ainda de colocar nos serviços pessoas de seu círculo pessoal.

Em agosto de 1665 o cenário se modifica quando o Vice-Rei prende Lourenço de Brito Correia, seu filho Lourenço de Brito Figueiredo e três capitães de infantaria: Antônio de Queirós Cerqueira, Francisco Telles de Meneses e Paulo de Azevedo Coutinho. Nesse processo persecutório, o chanceler Jorge Seco de Macedo acaba cercado em sua casa, e lá é mantido enquanto o desembargador Manuel de Almeida Peixoto foge para o Colégio dos Jesuítas. A acusação levantada pelo Conde Vice-Rei era de que todos eles conspiravam contra seu governo a fim de colocar Lourenço de Brito Correia em seu lugar e de que escreviam capítulos para enviar ao Reino, com o propósito de agregar partidários para a deposição nos círculos da Corte. Os supostos capítulos escritos por Lourenço de Brito Correia são mencionados por D. Vasco tentando incutir a culpa de sedição a estes homens que prendera. Capitular, como então se dizia, era comum quando se desencadeava uma revolta contra um governante, como se fez nessa situação redigindo-se numa lista os problemas no governo do Conde para enviá-la ao Reino em forma de petição ou queixa.

Quando o navio com os presos recolhidos pelo Vice-Rei partiu para Lisboa, foi ficando claro que não constavam elementos mínimos para se levar adiante o processo contra eles. O Conselho Ultramarino questionou, então, em consulta de 27 de outubro de 1665, o porquê da não anexação dos alegados capítulos e da falta de autos com testemunhas para de fato levar a acusação à frente. Os conselheiros destacam ainda que “dar capítulos contra os poderosos não é crime nem é conspiração, antes é um recurso que por onde se faz saber aos Reis e Príncipes e a seus ministros, os procedimentos daqueles contra que se dão”. Recomendou ainda que, diante da falta de provas, era crucial colocar os presos em liberdade.

Em julho de 1666 o tema ainda não havia se resolvido, com Lourenço de Brito Correia vindo a falecer na prisão do Limoeiro, em Lisboa. Permanecia ainda tramitando a acusação dos mesmos conselheiros ultramarinos de que o Conde de Óbidos atacara a jurisdição dos tribunais de Sua Majestade. D. Vasco de Mascarenhas envia então ao Desembargo do Paço uma devassa com as culpas dos presos, assinada pelo Ouvidor Geral do Crime da Bahia, peça que somente naquele mês de julho chegou ao Conselho Ultramarino, ainda assim constar testemunhas da cidade da Bahia, onde o problema ocorrera. Diante da falta de evidências de que a mobilização dos letrados em Salvador era de fato uma conjuração, os conselheiros do ultramar recomendam soltar os presos e que estes voltassem às suas funções na Bahia.
Os capítulos formam um tipo de registro que não foi tão bem documentado como as representações enviadas ao Reino por parte de moradores e ocupantes de ofício na cidade de Salvador. Esses capítulos, no caso, sequer foram assinados pelos reclamantes. Contudo, quaisquer que fossem os conteúdos desses papéis de reclamação contra o governo do Conde de Óbidos, estes não pareciam condenáveis por parte do Conselho Ultramarino.

Se não fosse uma prática comum e esperada por parte dos repúblicos nas cidades portuguesas, por que outro motivo os conselheiros estariam em desacordo com o Vice-Rei? Por prender e silenciar seus opositores? A prerrogativa de governo do Conde era superior à do poder dos povos vassalos de Sua Majestade? No que se refere à prática política dos que ditavam o modelo de organização na cidade de Salvador, era esperado o mesmo que nas terras do continente europeu: representações das mais diversas e a produção de capítulos para reclamar das ações das autoridades locais.

A célebre frase que intitula o livro de Ângela Barreto Xavier “El Rei aonde póde, & não aonde quer”, se modificada, trocando-se “El Rei” por “Vice-Rei”, permite que se visualize de forma muito clara a ideia central de que a autoridade vice-reinal na América Portuguesa encontrava limites, ainda que o exercício da violência contra seus inimigos muitas vezes silenciasse as oposições políticas nas cidades americanas.

Bibliografia Básica

CAMENIETZKI, Carlos Ziller. História e passado da América Portuguesa: escritores, religiosos, repúblicos do Brasil no século XVII. In: GESTEIRA, Heloisa Meireles; CAROLINO, Luís Miguel; MARINHO, Pedro. Formas do Império. Ciência, tecnologia e política em Portugal e no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2014, p. 143-169.

FIGUEIREDO, Luciano R. A.. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas no Império Português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Junia. (Org.). Diálogos oceânicos. Belo Horizonte: Edfmg, 2001, p. 197-254.

LÔPO DE ARAÚJO, Érica. Práticas políticas e governação no Império Português: O caso de D. Vasco de Mascarenhas (1626-1678). Tese (Doutorado) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016.

XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da política no Portugal seiscentista. Edições Colibri: Lisboa, 1998.

Leia também

    Imprimir página

Compartilhe