Revista Impressões Rebeldes

OS PORTUGUESES SERÃO NOSSOS CATIVOS

Cansados das desvantagens trazidas pelo catolicismo, como aprisionamento e escravidão, os índios da Bahia iniciaram uma nova forma de religiosidade que iria inverter a dinâmica do mundo colonial.

Jamille Santos

Jamille Macedo Oliveira Santos é doutoranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia e autora da obra “Ecos da liberdade: profetismo indígena e protagonismo Tupinambá na Bahia quinhentista” Edufba, 2019.

Mamelucos participando de rituais indígenas, negros sendo batizados ao modo e uso gentílico, brancos crendo que uma “seita” herética vinha da parte de Deus, índios contrafazendo os ritos católicos e sendo movidos a buscar uma terra em que a escravidão seria revertida aos seus inimigos. Homens, mulheres, senhores de engenho, lavradores, escravos e capitães, muitos chegaram a crer na dita “abusão” (um dos termos usado para identificar esses rituais, significa “superstição” ou “crendice”) e se “afastaram” da fé católica. E outros tantos que viveram a experiência do cativeiro e redução foram impelidos a lutarem contra a catequese e até destruíram engenhos.

Este é o cenário do Recôncavo da Bahia que se descortina através das fontes inquisitoriais dos tempos da Primeira Visitação. Momento marcado pela visita de Heitor Furtado de Mendonça e sua comitiva do Santo Ofício, que veio investigar e sentenciar as suspeitas de heresias e outros crimes contra a fé católica nas regiões da Bahia e Pernambuco, no limiar do século XVI. Vamos voltar nosso olhar sobre esse cenário com o objetivo de compreender os processos pelos quais indígenas elaboraram respostas criativas e confrontativas aos imperativos da sociedade colonial. Unindo resistência política às experiências religiosas, os personagens da ação indígena traçaram estratégias para propagarem suas crenças, ritos e símbolos, em um rico e complexo processo de mediação e negociação entre culturas. Além disso, essas ações também significaram um sentido de luta e reconstrução das suas identidades e cosmologias – numa tentativa de reelaborar o mundo que os colonizadores insistiam em tentar destruir.

A Santidade (termo usado pelos jesuítas e inquisidores para identificar os rituais heréticos dos índios, foi também apreendido pelos próprios nativos como forma de contrapor o catolicismo) é uma expressão dos mecanismos de ação política indígena que no período colonial ousou impor alguns limites à colonização. Ao desafiar a catequização e propor um “[mundo] novo” em que a escravidão não seria mais aplicada aos indígenas e sim aos próprios colonizadores, a Santidade causou um profundo desassossego a senhores de engenho e autoridades régias que viam na sua propagação uma ameaça aos empreendimentos coloniais.

Tudo começou por volta de 1580 quando Antônio Tamandaré – um caraíba, que era um líder espiritual e em determinados contextos também agregava liderança política – fugiu de um aldeamento jesuítico em Tinharé, na região de Cairu, para o sertão do Orobó, localizado ao norte da Bahia entre os atuais municípios de Ipirá, Itaberaba e Serra Preta. Nesse sertão, Antônio criou uma comunidade “alternativa”, uma terra de liberdades onde era permitido viver sem as amarras coloniais. Ali começou a propagar sua mensagem contra a catequese e a escravidão atraindo muitos outros indígenas, que construíram uma comunidade na qual desfrutavam de liberdade para prática de cultos, ritos e costumes que invertiam o catolicismo aprendido nos aldeamentos. Era um processo de apropriação mas sobretudo de contestação dado o contexto, já que a maioria dos membros da Santidade eram fugitivos de aldeamentos, de fazendas e de engenhos. Esses últimos eram majoritariamente escravos tanto da terra, ou seja indígenas, quanto de Guiné, trazidos compulsoriamente da África.

Atraído pela possibilidade de ampliar a mão de obra em seu engenho, Fernão Cabral de Ataíde enviou uma expedição comandada pelo mameluco Domingos Fernandes Tomacaúna até o sertão. Após quatro meses de convivência com os membros da Santidade, ele conseguiu descer parte do grupo para as terras do senhor de engenho em Jaguaripe. Estando nessas terras, os indígenas continuaram a praticar seu culto abertamente, atraindo para ali outros índios e negros de Guiné. Além disso, também divulgavam sua mensagem para outros espaços. A denúncia de Álvaro Rodrigues, mameluco e sertanista que também era senhor de terras em Cachoeira, revela os mecanismos pelos quais a Santidade dispersava-se na Bahia colonial. Disse ele: “saiam os sobreditos para todas as outras partes da Bahia a pregar a dita abusão e assim espalharam e semearam em muitas partes desta Bahia e seu Recôncavo” (ANTT, IL, proc. 17.060, fl. 190).

Assim, Jaguaripe tornou-se um polo disseminador da Santidade ou, nas palavras do sertanista, um tronco ou raiz do qual procedem muitos ramos. Esses ramos seriam, portanto, os outros espaços coloniais em que também eram praticados os seus cultos. O caráter anticolonial do movimento, que coincide com a natureza e emergência dos primeiros mocambos de escravizados africanos fugidos, estava presente em sua composição étnica. Por meio das denúncias nos processos inquisitoriais é possível perceber “[…] que a seita apelou para os índios e os africanos sob o controle dos colonos portugueses” (METCALF, 1999, p. 14).

Como expõe Álvaro Rodrigues em seu testemunho:
“[…] em muitas partes desta Bahia e seu Recôncavo, brasis [isto é indígenas] cristãos e muitos mamelucos filhos de brasis e de brancos, e muitas pessoas brancas, sendo todos cristãos, creram na dita abusão e deixaram a fé de Cristo Nosso Senhor, e o mesmo começavam já a fazer os negros cristãos de Guiné que havia nesta Bahia” (ANTT, IL, proc. 17.060, fl. 190).
Conforme a denúncia do mameluco, a grande repercussão e adesão da Santidade entre diferentes grupos étnicos e sociais se dava pelo ímpeto evangelizador e anti-catequético presente na “abusão herética” em uma flagrante contraposição e negação ao catolicismo. Segundo testemunhou Rodrigues, os indígenas e africanos “idolatravam e faziam as ditas cerimônias e pregavam e diziam que aquela era a verdadeira Santidade para ir ao céu e que deixassem todas as dos cristãos porque era Santidade falsa”. Havia assim uma indução para que o catolicismo fosse rejeitado pois, “que havia tantos anos que se criam na lei dos cristãos e que nunca cousa por onde se merecesse crer nela e que deixassem e crescem na dita sua Santidade gentílica” (Idem, fl. 189v). As palavras do mameluco são sugestivas e seu sentido prático traz uma dimensão provocativa de um discurso significativo e atraente para brasis e negros escravizados que viam na Santidade a possibilidade de alcançar não apenas uma religiosidade que se aproximava dos seus antigos fundamentos, mas a liberdade de praticar seus ritos e ter esperança de livrar-se das opressões da sociedade colonial.

Nesses termos, a Santidade parecia estar propondo aos escravizados uma religião diferente do catolicismo, o qual só havia trazido a eles desvantagens e aprisionamentos com a escravidão e aculturação. Era na Santidade que eles encontravam respostas, alternativas e novas expectativas fora daquilo que o cristianismo colonial os apresentava.

O ímpeto de liberdade e confrontação da Santidade não se restringiu à esfera discursiva e religiosa, seus seguidores, negros e indígenas, foram movidos a lutar diretamente contra o colonialismo e seus empreendimentos, incendiando fazendas e destruindo engenhos (VAINFAS, 1995, p. 78). Profundamente incomodado com essa situação o então governador geral, Manuel Teles de Barreto, enviou uma expedição armada para destruir a Santidade que, mesmo com a contenção do principal grupo que estava em Jaguaripe, já tinha se propagado em outros espaços, como Matoim, Sergipe do Conde, Paripe e Cachoeira e continuou (r)existindo até meados o século XVII.

A ação de destruir a Santidade em Jaguaripe não significava o fim do seu culto indígena, sua mensagem de liberdade e seus propósitos anti coloniais, que eram como sementes, a essa altura já tinham se espalhado por diversos pontos da capitania da Bahia.

É interessante analisar a emergência dos cultos da Santidade nesses espaços de reprodução açucareira e as bases para o desenvolvimento do projeto colonial. Estar nesses espaços e criar dentro deles outros lugares de experimentação religiosa e subversão diz muito sobre o caráter contra-ofensivo e político-reivindicativo do movimento. Sua experiência em espaços coloniais revela a capacidade criativa e inventiva dos povos indígenas que souberam, mesmo inseridos nas privações da sociedade colonial, criar um “mundo” que lhes fosse próprio mesmo que limitadamente.

Mais do que um “comércio de práticas” entre missionários e indígenas as Santidades, seus símbolos, ritos e práticas cristãs visavam, em muitos contextos, construir estratégias de reelaboração e também de enfrentamento frente à nova realidade que lhes era imposta com a colonização. Por isso não pensamos a Santidade como movimento qualificado apenas como uma heresia. Preferimos enxergá-la como uma experiência histórica política protagonizada pelos indígenas para a reinvenção de suas liberdades.

É nesse sentido que a religião e a religiosidade indígena, extrato de sua cultura em constante transformação, se reveste de cunho político “reivindicatório”, contra a colonização cristã, contra a escravidão e contra o status quo colonial. Basta ter em vista que uma das propostas milenaristas das Santidades indígenas e do profetismo tupinambá era a inversão do mundo colonial, no qual não seria necessário mais trabalhar pois “os portugueses serão os nossos cativos” (ANTT, Proc. 17762, fl. 2).

Bibliografia Básica

CALASANS, José. Fernão Cabral de Ataíde e a Santidade de Jaguaripe. Salvador: EDUNEB, 2011.
METCALF, Alida. Os papéis dos intermediários na colonização do Brasil. Tradução Pablo Lima. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019.
SZTUTMAN, Renato. O Profeta e o Principal: a Ação Política Ameríndia e seus personagens. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo. Companhia das Letras, 1995.

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