Revista Impressões Rebeldes

DE MANUEL HENRIQUES À MÃO DE LUVA: O GARIMPEIRO NA IMAGINAÇÃO POPULAR

Suposições e histórias de faz de conta enriqueceram as narrativas sobre a vida e últimos dias do rebelde mão de luva. Elas influenciaram cronistas, historiadores e invadiram o imaginário coletivo

Foto: Capa de obra sobre o Mão de Luva. Acervo do Jornal A voz da Serra.

Rodrigo Leonardo de Oliveira

Rodrigo Leonardo de Oliveira é professor do Instituto Federal de Rondônia, campus Porto Velho Calama, autor do livro “Bandoleiros na História do Brasil: dos “mantiqueiras” a quadrilha dos “sete orelhas”. É mestre em História pela UFJF, doutor em História pela UFMG e faz estágio de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa.

Sheila de Castro Faria

Sheila Castro Faria é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro “A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial (Sudeste, Século XVIII). Realizou estágio de pós-doutorado pela Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ) onde trabalhou com o período do Brasil Imperial

O grande desconhecimento sobre os eventos em torno do garimpo clandestino liderado pelo “Mão de Luva” ensejou uma enxurrada de suposições por parte de escritores locais que resultou na criação de histórias fantásticas e românticas sobre o destino do garimpeiro. Sob a perspectiva do imaginário popular Manuel Henriques seria descrito como um nobre português, duque de Santo Tirso, condenado à morte por participar da conspiração dos Távora contra o rei D. José I, em 1758. A pena de morte teria sido mudada para degredo por influência da princesa D. Maria, filha do rei D. José I, junto ao ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (futuro marquês de Pombal). A princesa e o condenado, nesse enredo de faz de conta, estariam apaixonados. Antes de deixar Portugal, o “duque” teria recebido a visita de D. Maria no calabouço, que se despediu com um beijo na mão e lhe deu como lembrança uma luva, para preservar o beijo que lhe dera.

Já em termos políticos, Mão de Luva foi retratado como um bandeirante, em certos aspectos, e como um personagem que lutou contra a opressão metropolitana, um dos primeiros a defender a separação do Brasil de Portugal. Teria nesse imaginário, inclusive, influenciado Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes) a defender a liberdade do Brasil, sendo, portanto, uma espécie de inspirador do sentimento “nativista” da Inconfidência Mineira ocorrida em 1789, poucos anos depois de sua captura. Essa teoria era fortalecida pelo fato do alferes Joaquim José, ter sido de fato um dos topógrafos a participar do reconhecimento do “descoberto” de Macacu sob as ordens do sargento-mor São Martinho.

Nessa narrativa, depois de preso e degredado para a África, o lendário Mão de Luva morreria na travessia, não sem antes pedir ao frade que recebeu sua confissão que entregasse a tal luva e um crucifixo para a já então rainha D. Maria I. Quando recebeu os objetos, em 1792, a rainha teria ficado “louca”. Alguns autores vão tão além na biografia de Manuel Henriques e atribuem à sua figura o fato de Tiradentes ter sido o único inconfidente a ser enforcado: uma represália da rainha, que o culpou pela morte do amado.

Não faltou, nessas histórias fantásticas, também a explicação sobre o motivo de terem batizado a região com o nome de “Cantagalo”. Tal título foi oficializado porque o bando de Mão de Luva teria sido descoberto a partir do cantar de um galo, que atraiu os soldados para o local exato do garimpo. Além disso, há referência a um tesouro, que teria sido enterrado quando as tropas mineiras invadiram sua rancharia e o capturaram. Houve inclusive época em que buracos imensos foram abertos no município para procurar o tal tesouro, conforme registros orais de pessoas mais velhas.

Pesquisas mais cuidadosas trouxeram outras luzes ao personagem. Sebastião Carvalho foi talvez o primeiro a indicar que Manuel Henriques não nasceu em Portugal nem muito menos era nobre, mas nascido Ouro Branco, cidade de Minas Gerais. Esses dados foram corroborados por Rodrigo Leonardo de Sousa Oliveira, que encontrou, no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, não só seu processo de banho matrimonial e referências à sua ascendência (datado do ano de 1775), como também os processos matrimoniais de seu pai, Manuel Henriques Malho, e de seu irmão, Ignácio da Silva (datado de 1761 e 1773 respectivamente). Manuel era morador em Guarapiranga (hoje cidade de Piranga, de Minas Gerais) quando se casou.

 

Afastando-se ainda mais das fantasias, a pesquisa histórica sobre o evento encontrou um conjunto razoável de documentação composto por dezenas de cartas e ofícios trocados entre as autoridades. As fontes estão localizadas no Arquivo Nacional, Arquivo Público Mineiro, Casa dos Contos, Arquivo Histórico Ultramarino e Arquivo da Torre do Tombo. Há também dois documentos inquisitoriais. São processos por acusação de heresia movidos contra o roceiro José Gomes, que citou Mão de Luva como aquele que havia lhe informado sobre o poder do Santíssimo Sacramento, e contra o próprio Manuel Henriques, o Mão de Luva, o primeiro com início em 1780 (Processo de José Gomes, preso em 13/1/ 1780 acusado de heresia contra o Santíssimo Sacramento. https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=2311702 ) e, o segundo, em 1781 (Processo de Agostinho e Manuel Henriques (5/5/1781 a 12/03/1783), acusados de desacato ao Santíssimo Sacramento. https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2313177). José Gomes foi preso e inquirido mas, apesar dos esforços dos inquisidores e de seus prepostos, Mão de Luva não foi encontrado para responder às acusações.

Aliás, nenhum processo em que poderíamos “ouvir” Mão de Luva foi descoberto até agora. Todos os documentos encontrados são relatos de terceiros. Infelizmente, o processo crime dos acusados, incluindo sentença e destino, não foi localizado até hoje. Por isso pedimos aos leitores que, caso tenham conhecimento de documentos que façam menção ao processo instaurado contra o “bando” de Macacu ou de Cantagalo, entrem em contato com os autores.

Bibliografia Básica

ACÁCIO, 1942; CARVALHO, Sebastião A. B. de. O tesouro de Cantagalo. Niterói: Centro de Estudo e Pesquisa Euclides da Cunha, 1991.

ANASTASIA, Carla. A geografia do crime: Violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

OLIVEIRA, Rodrigo Leonardo de Sousa. “Mão de Luva” e “Montanha”: bandoleiros e salteadores nos caminhos de Minas Gerais no século XVIII: Matas Gerais da Mantiqueira: 1755-1786. 2008. 189 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008.

SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

TOMÁS, Amélia. Mão de Luva, o fundador de Cantagalo. Cantagalo: Gráfica Tipocan, 1990.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Leia também

    Imprimir página

Compartilhe