Revista Impressões Rebeldes

1676: A REVOLTA DE BACON, NA VIRGINIA, E ALGUMAS TENTAÇÕES COMPARATIVAS

Na América inglesa, fazendeiros insatisfeitos com a política indígena e fiscal tomam o poder e implantam reformas. No Rio de Janeiro, dezesseis anos antes, rebeldes haviam feito exatamente a mesma coisa.

O Ocidente moderno atravessa no século XVII uma turbulência pesada. O epicentro estava em Madri, centro do vasto reino espanhol, europeu, americano, africano e asiático. A complexa unidade imperial se parte em pedaços ainda no século anterior com a independência dos Países Baixos (1581) e a crise vai ganhando volume com a separação de Portugal (1640), do reino de Nápoles (1647) e mesmo da Catalunha (1641), que preferiu virar república e aderir ao rei da França.

Luciano Figueiredo

Luciano Figueiredo é professor no departamento de História da Universidade Federal Fluminense, editor do site Impressões Rebeldes e autor do livro Rebeliões no Brasil Colônia (Jorge Zahar, 2004)

O Ocidente moderno atravessa no século XVII uma turbulência pesada. O epicentro estava em Madri, centro do vasto reino espanhol, europeu, americano, africano e asiático. A complexa unidade imperial se parte em pedaços ainda no século anterior com a independência dos Países Baixos (1581) e a crise vai ganhando volume com a separação de Portugal (1640), do reino de Nápoles (1647) e mesmo da Catalunha (1641), que preferiu virar república e aderir ao rei da França.

Em outros ambientes as ideias também fervilhavam. Na Inglaterra o monarca Charles I (1648) é executado, dando origem a uma breve experiência republicana. No Atlântico o mar esteve agitado, com inumeráveis rebeldias: Pueblo, em 1680 no Novo México contra os espanhóis, Angola contra o governador (1694), Pernambuco (1645), quando luso-brasileiros resolvem promover, à revelia da Coroa de Portugal, uma guerra para acabar com a presença dos holandeses. E muitas mais houve. Nada se resolvia sem a mobilização armada de comunidades em fúria bradando por direitos.

As colônias inglesas, no continente e nas ilhas do caribe, estiveram nas mesmas circunstâncias. Pouco conhecidas por aqui (onde somos reféns do abismo gerado pela alteridade entre “colônias de exploração” e “de povoamento”), uma dessas revoltas merece atenção.

Nada de ouro, terras aprazíveis, fartura e tranquilidade esperavam a primeira centena de colonos que desembarca na Virginia em 1606. Os povoadores, ao longo das décadas iniciais de colonização inglesa, eram fustigados por um sem número de dificuldades numa região muito diferente do que prometiam os folhetos de propaganda que estimulavam a imigração. Malária, fome e ataques de índios ferozes desmancharam vidas e sonhos.

Pouco ajudaram as Companhias de colonização nas quais a monarquia inglesa,  sob James I atolada em dívidas de guerra, aposta para obter recursos das terras do Novo Mundo, como a Virginia Company, a Plymouth Company e a London Company. Elas recebiam uma carta concedendo enormes poderes para de tudo e de todos cuidar em nome do rei. Mas não deu certo, e a autonomia dura pouco: a carta da Virginia Company é revogada em 1624 e a colônia fica mesmo nas mãos da Coroa.

Ao longo dos rios e bacias que formam a baia de Chesapeake, em torno da cidade de Jamestown, o tabaco espalha as famílias por terras pantanosas cercada de índios. As relações com eles eram instáveis, marcadas por traições, massacres e violências contínuas de parte a parte sob a disputa por terras para a expansão da agricultura, especialmente do tabaco, gênero de exportação primordial da Virginia. Entre os membros do governo local nunca houve consenso sobre a melhor forma de se relacionar com os grupos indígenas. Uns apostavam na aliança e colaboração, outros queriam simplesmente exterminá-los. O debate envolvia o governador, os funcionários régios, os colonos, representados ou não na assembleia local, a State House, o Parlamento e a Coroa inglesa.

Sir William Berkeley, nomeado desde 1641 governador da Virginia, insistia em contemporizar com os grupos indígenas que aterrorizavam os proprietários espalhados pela baia de Chesapeake, cultivando alianças com grupos amistosos como os  Doeg e os Susquehannock para garantir a defesa contra os mais ameaçadores. Embora exitosa, era uma opção dispendiosa pois dependia da construção permanente de fortes ao longo dos rios, com soldados prontos para dissuadir ataques. Construi-los e sustentá-los forçava o governo a praticar uma pesada tributação que incidia sobre os virginianos, especialmente os pobres.

Se a vida era dura na colônia, do lado de fora a situação em meados do século XVII foi se complicando para quem dependia do mercado externo. Os Atos de Navegação desde 1651 e 1660 subordinaram os produtores locais ao monopólio, impondo preços extorsivos das mercadorias metropolitanas e espremendo o valor na hora da compra da matéria prima. A pressão dos negociantes de Londres foi ficando insuportável. Em 1673 mudanças administrativas introduzidas pelo Parlamento da metrópole com o Act for the Encouragement of Trade acirraram as rivalidades com as autoridades na colônia. A medida criou coletores fiscais que não estavam subordinados ao governo local, mas diretamente dependente da Coroa na Inglaterra. A pressão fica maior com a crise do preço do tabaco e a carestia que se abate na região em 1675.

O agravamento dos ataques indígenas aos fazendeiros da região na década de 1670 catalisaria as circunstâncias. De um lado o governador Berkeley mantém-se aferrado ao sistema de fortes para estabilizar os conflitos, ao passo que os colonos exigiam a organização de expedições punitivas imediatas. Uma dessas expedições foi liderada por um jovem fazendeiro, Nathaniel Bacon que, à revelia do governador, extermina grupos nativos e retoma um dos fortes das mãos dos índios.  Bacon havia chegado a Virginia em 1674 com trinta anos de idade, rico, formado em Direito em Cambridge e com reconhecida eloquência, logo figurando entre a elite política local. Quando desembarca não perde tempo e adquire propriedades nas quais investe seus recursos, plantando tabaco e criando gado. Sua ação intempestiva contra os índios leva Berkeley a puni-lo por desobediência, uma vez que sua atitude ameaçou o frágil equilíbrio das relações nas fronteiras. A atitude de Berkeley, no entanto, acaba provocando a coesão dos grupos políticos insatisfeitos. Reagindo, Bacon toma a capital a frente de 600 voluntários armados, invade a Assembleia e força a concessão do direito de atacar os índios que o governador suspendera. A partir daí começariam a anunciar uma série de medidas contra os “males da opressão política e econômica”.

Os conspiradores preparam uma declaração de princípios e organizam as forças rebeldes em duas frentes: atacar índios e enfrentar as forças leais a Berkeley. Jurando fidelidade ao rei, às “leis da Inglaterra” e ao Parlamento, conclamam o povo da Virginia a se mobilizar contra o governador tirano e defensor de índio. Ele é ainda acusado de lançar impostos pesados e sem consentimento, controlar a seu favor o comércio de pele de castor, ter enriquecido exageradamente e distribuído os melhores cargos a seus aliados. Um verdadeiro tirano, que feria os direitos costumeiros de Englishmen.

Uma série de confrontos, marchas e contramarchas se sucedem entre junho de 1676 e janeiro de 1677, período coberto pela revolta de Bacon. Forças rebeldes patrulham os rios espalhando mensagens em “Declarações do povo da Virginia”, lutas armadas ocorrem em toda parte enquanto as forças leais tentam reagir, chegando a executar alguns rebeldes pelo crime de traição. Com a guerra civil, o governador abandona Jamestown e escapa para Accomack, na margem oeste da Baia de Chesapeake. A capital da colônia seria ocupada pelos rebeldes e recuperada por Berkeley algumas vezes, até ser completamente incendiada por Bacon.

Na batalha para convencer aliados e persuadir as autoridades na Inglaterra, os partidários de Bacon preparam justificativas para legitimar sua posição, mostrando-se leais e fiéis ao soberano pois pretendiam com seu gesto preservar a “honra e os bens públicos de Sua Majestade sem nenhum outro interesse”. A revolta era feita em nome de Charles II, rei dos ingleses. Recusam ainda a pecha de “rebeldes e traidores” que o governador aplicou a eles em suas cartas a Inglaterra.

Senhor da Virginia, o novo governo de Bacon libera o comércio de tabaco dos grilhões do monopólio, desprezando as determinações dos Atos de Navegação, e faculta aos colonos a preparação de expedições contra índios. Medidas mais radicais são tomadas ao longo dos meses de junho e agosto de 1676: escravos e servos por contrato que atuassem a favor do movimento ganham liberdade e os organizadores buscam aliança com outras colônias como Maryland e Carolina. Ventila-se ainda a possibilidade de substituir a soberania da Inglaterra na Virginia, optando-se pelo rei da França ou pelos Estados da Holanda. Gradualmente a participação foi se ampliando até ganhar uma base social muito ampla envolvendo desde grupos de fronteiras descontentes com a política indígena até os moradores dos núcleos urbanos excluídos das concessões e dos privilégios, somados a uma multidão empobrecida formada basicamente por indentured servants, escravos negros e homens livres.

Depois de mais uma razia atacando índios Nathaniel Bacon adoece e morre em outubro. Mesmo assim a revolta continua a se espalhar. Forças rebeldes se reorganizam sob a liderança do general Ingram, patrulhando e controlando o território sem deixar de manter a pressão contra os índios inimigos. O governador afastado, porém, manobra com habilidade a situação e retoma o controle da Virginia.

No processo de pacificação Berkeley impôs sanções brutais aos seguidores de Bacon, enforcando 13 rebeldes (algumas fontes falam em 33 pessoas executadas, além de fazendas confiscadas). A metrópole envia forças militares mas as centenas de redcoasts chegam tarde demais, em 1677, quando o conflito já refluíra. A brutalidade da repressão causa alguns dissabores. Berkeley mereceria um processo de repreensão por parte de Charles II uma vez que, na qualidade de governador, não possuía autoridade para decretar leis marciais ou promover guerra contra os próprios ingleses. Não teve tempo para sua defesa. Apesar de seguir para Londres, onde pretendia se justificar, morre em julho de 1677 sem ter sido recebido pelo Rei.

A fim de se reconciliar com os envolvidos na revolta, Charles II e a Assembleia da Virginia lançam em 1680 um perdão àqueles que participaram do protesto. O novo governador, Thomas Lord Culpepper, que chega no início de 1679 seria o porta voz da boa nova. Dentre algumas conquistas resultantes da rebelião de Bacon, a metrópole promete consultar os ingleses da colônia sempre que houvesse a necessidade de cobrança de novos impostos.

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Ainda que apresentada de forma panorâmica, a narrativa da rebelião da Virginia, evento complexo e rico de muitos significados, revela semelhanças espantosas com um protesto acontecido dezesseis anos antes sob outra latitude. Também às margens do Atlântico, tendo como panorama uma baía emoldurando uma capital, um velho governador encastelado a frente de um governo colonial padece com a reação de produtores rurais ao lançamento de um imposto para sustentar soldados e fortalezas que defendiam a cidade. Na revolta conhecida por alguns como “da Cachaça”, o general de muitas guerras Salvador Correa de Sá e Benevides é deposto por grupos de fazendeiros de açúcar que lideram um movimento que toma o poder na cidade do Rio de Janeiro por cinco meses, entre dezembro de 1660 e abril do ano seguinte (para uma breve introdução a essa revolta clique na seção “revoltas” do site Impressões Rebeldes). Na pauta das denúncias que publicam está a pressão da Companhia de comércio (criada em 1649) que favorecia negociantes portugueses, o excesso da fiscalidade para gastos de defesa, a falta de representação política no governo local de grupos emergentes, a formação de um bloco de aliados monopolizando os cargos, enriquecimento de muitos deles, e muito mais.

Esteve ainda em pauta a situação dos índios. Uma vez que a economia da Virginia encontrava-se capitalizada para comprar escravos africanos e importar servos por contrato, estando solucionado o problema da mão de obra, os colonos ingleses almejavam terras, ocupadas por nativos. No Rio de Janeiro, colonos precisavam da escravidão dos índios, que Salvador Correia de Sá e Benevides tentava preservar do cativeiro atendendo à aliança com os jesuítas, zelosos em cumprir as determinações da Bula papal que excomungava aqueles que os escravizassem. Em ambas as colônias o desgaste que leva os moradores a atacar seus governadores é o mesmo: ao proteger os nativos privavam os súditos do direito de usar da terra ou da mão de obra para prosperar.

Assim como os ingleses que viviam em domínios ultramarinos se rebelavam por sentirem-se violados em seus direitos de Englishmen, – não ser tributados sem consulta, ter o direito de representação política nas assembleias – e injustiçados pelos excessos da autoridade local, os portugueses espalhados pela capitania do Rio de Janeiro também consideravam a revolta um recurso legítimo contra a tirania, o excesso de impostos, a exclusão política. Nas diferentes latitudes gritam em nome da fidelidade ao Rei. E, assemelhados no paradoxo, tanto na Virginia quanto no Rio de Janeiro circulam suspeitas de que os súditos pretendiam trocar de soberano.

Mesmo a reação dos governadores parece espelhada. Salvador Correa de Sá chama as lideranças rebeldes de “inconfidentes” ao serviço real e se desgasta por aplicar um castigo a um dos líderes rebeldes, enforcado sumariamente sem que tivesse autoridade para esse tipo de execução.

Duas podem ser as conclusões aprendidas até aqui. Em primeiro lugar, o breve esboço de comparação sugere propostas para uma interpretação das revoltas no Novo Mundo. Revelando afinidades, essas experiências de colonização expressam conflitos que resultam dos limites da representação política em áreas distantes da monarquia e submetidas a constrangimentos financeiros e comerciais.

Em segundo lugar, afastada a surpresa inicial com tantas semelhanças – em parte por que nossa cultura histórica cristalizou a imagem de uma completa diferença entre as colonizações da América inglesa e o que se passou no Brasil colônia –, os pontos de convergência iluminam extraordinárias possibilidades de análises. Parecem ser grandes as potencialidades de pesquisas com a aproximação das experiências de colonização britânica e portuguesa modernas.

Teriam sido situações assim tão diferentes? Ou nós é que permanecemos, por tempos demais, indiferentes?

Bibliografia Básica

BAILYN, B. Politics and Social Structure in Virginia. Colonial America. Essay in Politics and Social Development. S. N. Katz, Murrin, John M., Greenberg, Douglas. New York: McGraw-Hill, 1993, p.17-41.

BREEN, T. H. A Changing Labor Force and Race Relations in Virginia, 1660-1710. Puritans and Adventures: Change and Persistence in Early America. T. H. Breen. New York: Oxford University, 1980.

HORN, J. Adapting to a New World: English Society in the Sevententh-Century Chesapeake. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1994.

MORGAN, E. S. American Slavery, American Freedom. The Ordeal of Colonial Virginia. New York: W.W. Norton & Company, 1975.

RICE, James D., Tales From a Revolution: Bacon’s Rebellion and the Transformation of Early America. Oxford: Oxford University Press, 2012.

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