Revista Impressões Rebeldes

ARCOS, FLECHAS E LIBERDADE

Durante a independência do Brasil, o receio das mudanças motivou os indígenas de Maranguape, no Ceará, a se levantarem contra os portugueses da região. Em busca de autonomia, nativos também usaram o liberalismo para lutar

Siará” [Ceará] (1629), mapa de João Teixeira Albernaz com destaque para vila dos Arronches, palco da revolta do povoado Maranguape no litoral cearense – Fonte: Divisão de cartografia/FBN

João Paulo Peixoto Costa

João Paulo Peixoto Costa é doutor em História Social pela Unicamp, professor do Instituto Federal do Piauí e do PROFHISTÓRIA da UESPI. Autor da tese “Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845)” (Teresina: EDUFPI, 2018)

São ainda recentes as pesquisas que se debruçam sobre a participação de grupos marginalizados na formação do Estado nacional brasileiro, bem como seus lugares na nova nação. Bem mais do que apenas “lembrar” dos dominados, esses trabalhos buscam reescrever as histórias a partir de uma via de mão dupla onde, além dos dominadores, os setores subordinados atuavam movidos por interesses próprios. Não necessariamente compartilhavam os objetivos de seus possíveis aliados enquanto peças de manobra, como se seguissem cegamente as lideranças que os incitavam.

No caso dos indígenas, histórias de tumultos, revoltas e manifestações ressaltam o poder que tinham de se envolver com outros grupos étnicos, de interpretar os eventos que explodiam nos centros de governo e de lutar a partir de suas prioridades. No processo de emancipação do Brasil, o que estava em jogo não era somente a união ou não da antiga colônia ao império lusitano: as transformações em curso eram decisivas na redefinição da relação dos grupos sociais entre si.

No Ceará, o maior e mais bem documentado levante de índios desse período aconteceu em Maranguape (à época, povoado pertencente à vila de índios de Arronches, atual bairro da Parangaba, em Fortaleza; hoje emancipado). As primeiras referências às tensões no lugarejo são de 6 de outubro de 1821, quando chegou à sala do governador do Ceará o informe de que teriam se espalhado na localidade notícias de que o objetivo da Constituição Portuguesa – que se fazia no reino pelas Cortes de Lisboa, como resultado do processo da Revolução do Porto que visava destituir o absolutismo do império lusitano –, era cativar os índios, “e quanto às mais pessoas concede-lhes liberdade de obrar arbitrariamente sem que se possa conhecer das suas ações” (Arquivo Público do Estado do Ceará, FGC, livro 32, p. 3V). O boato deu motivo a estranhamentos entre indígenas e não-índios que perduraram nos meses seguintes.

As medidas preventivas do governo do Ceará, como a intensificação de rondas policiais na localidade, não conseguiram impedir que novas e mais intensas manifestações surgissem naquela região. Em setembro de 1822 – durante os acontecimentos que levaram à independência do Brasil no Rio de Janeiro e em São Paulo – tem-se a notícia de um “tumulto dos índios e extranaturais [como eram chamados os não índios] da serra de Maranguape, tendo ido um número de mais de seiscentos às fazendas do diretor geral o sargento-mor José Agostinho Pinheiro, e o juiz de fora pela lei Joaquim Lopes de Abreu, com ânimo de assassiná-los e sempre roubaram as casas, dando gritos contra os europeus e a favor da liberdade dos escravos” (APEC, FGC, livro 32, p. 29)

 

Detalhe em que aparece a povoação de Maranguape e a vila de Arronches, próximas a Fortaleza, na “Carta da capitania do Ceará levantada por ordem do governador Manoel Ignácio de Sampaio. Por seu ajudante de ordens Antônio José da Silva Paulet” (1818) – Fonte: Biblioteca Nacional, ARC.029,05,018.

 

Por se localizar a cerca de 30km de Fortaleza, tais incidentes eram ameaças bastante perceptíveis para os que comandavam a agora província do Ceará. O conteúdo das manifestações chama atenção tanto pelas reivindicações como pelos protagonistas: da maneira como expõe o documento, quando deram “gritos contra os europeus e a favor da liberdade dos escravos”, índios e não índios pareciam bradar juntos contra os “irmãos” de outro continente (ou seja, os europeus), refazendo a fronteira político-identitária que os diferenciava.

Os alvos do “tumulto” eram diretamente ligados aos índios: José Agostinho Pinheiro era o diretor geral, e Joaquim Lopes de Abreu havia sido uma das autoridades protagonistas da ocupação da serra de Maranguape entre os séculos XVIII e XIX e das usurpações de terras indígenas na região. Além disso, os dois eram naturais de Portugal, remetendo ao sentido político do antilusitanismo que marcou o início dos oitocentos e aos boatos difundidos em 1821. Os índios tinham seus próprios motivos para se opor aos portugueses, como resistir à já sentida tomada de suas terras, pedir o retorno de seu rei (D. João VI) – transladado para a Europa por exigência do movimento liberal do Porto – e Golpista uma nova escravidão. A própria ebulição desses temores já revela a tensão que também perpassava pela população indígena atenta à conjuntura política do período.

Imediatamente após a notícia do tumulto, o governo passou ordens para que moradores de localidades próximas a Maranguape fossem armados, atuando juntos a uma expedição de combate aos insurgentes, comandada pelo capitão-mor Marcos Antônio Brício. Compondo a tropa de combate estavam as ordenanças dos índios (corporações militares formadas por indígenas, com suas lideranças ocupando as patentes de oficiais) da vila de Arronches, que passou a ser base das operações. Para lá também se dirigiu o ouvidor interino, responsável pelas devassas (APEC, fundo Governo da Capitania, livro 98, p. 119V). Em menos de 5 dias vários revoltosos já haviam sido capturados e enviados presos a Fortaleza e se autorizava a dispensa de tropas supérfluas (APEC, FGC, livro 98, p. 123V).

A situação dos índios mudou apenas em fevereiro de 1823, com a consolidação da independência: presos pela oposição feita aos portugueses, foram soltos pela mesma razão. Na sessão do dia 13, a então Junta Governativa que comandava o Ceará – que derrubou a anterior, acusada de ser simpática às Cortes de Lisboa – decidiu soltar os presos “pelos movimentos da povoação de Maranguape, e dar-se imediatamente parte a Sua Majestade Real do procedimento do governo, visto que o seu único crime era defender a independência” (APEC, FGC, livro 32, p. 63V).

Na mesma ocasião, o novo governo cearense, liderado por José Pereira Filgueiras, adepto da independência liderada por dom Pedro I, produziu um relato ao monarca contando todos os acontecimentos que levaram à prisão dos índios e solicitando o perdão real. Constava também um abaixo-assinado dos indígenas envolvidos: João Rodrigues de Souza, Manoel José [Xavier?], Manoel Barrozo de Carvalho, Claudiano da Silva, João de Andrada de Aguiar, João de Barros do Nascimento, João [José Geluso?], João Antônio de Souza, Manoel Francisco Luís, Manoel Pereira Gomes, Marcos Pereira Barboza, Francisco Xavier Júnior, Manoel Correia de Farias, Antônio Soares, Luís Marques, José [Carrilos?], Alexandre Alves Barboza, Alberto de Jesus, Antônio Ferreira Barrozo, Joaquim Garcia do Amaral, José Correia Campelo, João Francisco da Silva Braga e Antônio Vidal. As lideranças da província reconheciam a “injustiça com que foram presos, e até cruelmente açoitados os índios da serra de Maranguape, tudo por cabala de europeus e brasileiros degenerados” (Arquivo Nacional, série Justiça, IJ¹ 719).

 

Abaixo-assinado dos índios de Maranguape, 13 de fevereiro de 1823. Arquivo Nacional, série Justiça, IJ¹ 719

 

De acordo com o depoimento indígena, em setembro de 1822 souberam de proclamações de dom Pedro I que tratavam “aos europeus por inimigos da nação brasileira”, que “ao longe se forjavam grilhões para nos prender” e que “dentro em três meses seriam escravos”. A partir daí, iniciaram sua ação: os “índios alvoroçados, lembrados dos seus ferros antigos, pegarão dos seus arcos e das suas flechas na noite do dia 22 de setembro, convida[ram] os habitantes a vingar a sua liberdade debaixo dos auspícios d’El Rei [ilegível] Defensor do Brasil. [Fizeram] retumbar nos ares seus Nomes Augustos, a sua independência política. Corre[ram] à casa de José Agostinho Pinheiro para saber se assinava a causa, assim como já tinham feito aos demais europeus da povoação. Não derrama[ram] uma só gota de sangue, e nem maltrata[ram] a pessoa alguma; e se arromba[ram] as portas de seu diretor foi somente para saber-se do seu partido. Concorreu o povo em massa [ilegível] para a casa de Joaquim Lopes de Abreu, não para ofendê-lo, sim para expulsá-lo para fora das suas usurpações. Foi então que apareceu um indigno e leve furto” (Arquivo Nacional, série Justiça, IJ¹ 719).

Pela versão dos índios, apresentada em fevereiro de 1823, quando uma nova Junta Governativa fiel a dom Pedro passou a governar o Ceará, o acontecimento tem aspecto bem diferente do “motim” reprimido pelo governo da época. Por meio dos recursos linguísticos dos autores do relato, a ação indígena é alçada a um novo patamar: o que antes era tido por crime de amotinação passou a ser qualificado como luta pela liberdade. Mais uma vez a oposição entre a independência do Brasil e a escravidão de Portugal é evidenciada, associadas, respectivamente, à ação dos índios e à presença usurpadora do juiz de fora Joaquim Lopes de Abreu. A aliança entre o governo de Filgueiras (liderança das elites do interior da província) e os índios – que tinham em comum a rivalidade com os potentados da capital, membros do governo cearense anterior e compostos em boa parte por portugueses – também se expressava por compartilhar de uma versão que difere em diversos aspectos do que reproduzira a antiga junta provisória do Ceará. Na ótica indígena, o alvoroço e até mesmo a invasão à casa de Lopes Abreu ocorreram por uma causa justa e sem a barbárie com que havia sido encarada. O “leve furto” – antes tido como de “importância” – não manchara suas atitudes feitas em nome do rei, da independência e de sua liberdade. Diante dessa importante aliança, o novo governo agregava forças contra a elite das regiões próximas a Fortaleza e os adeptos do constitucionalismo português. Por isso, o relato do governador Filgueiras é um raro registro de uma autoridade não-indígena que classifica uma ação dos índios como “política”.

Em contrapartida, Filgueiras contou que o antigo governo, “adorador das Cortes de Lisboa, […] à independência chamou de revolta e roubo”. Na repressão, Marcos Antônio Brício, à frente de sua tropa, havia garantido a “segurança individual e de propriedade” dos índios, o que fez com que devolvessem as roupas e legumes que roubaram, “que se julgaram pequenos diante” do que já se usurpara deles. Entretanto, o “oficial infame violou a sua palavra; mandou passar roda de pau aos homens” e palmatória nas mulheres, “despotismo tão horroroso” (AN, série Justiça, IJ¹ 719). Novamente o antigo governo é associado ao constitucionalismo vintista – ou seja, o já citado movimento revolucionário do Porto, em Portugal, que visava submeter a monarquia lusitana a uma Constituição – e, consequentemente, a atos de despotismo, já que as Cortes de Lisboa eram acusadas de pretender recolonizar o Brasil. A novidade é que Brício, na verdade, enganara os índios que, segundo eles, nada haviam feito além de buscar garantir sua liberdade e obedecer às proclamações do imperador.

Na devassa que se seguiu após as prisões, o juiz e os escrivães responsáveis pela investigação eram todos portugueses, que acreditavam que “os brasileiros deveriam ser escravos”, como conta o relato. “Em questões de independência do Brasil, como foi a dos suplentes, não se deveriam admitir testemunhas inimigas […]. Tudo, porém, se fez. Os europeus juraram, os corcundas juraram, os inimigos juraram”. Como resultado, os índios teriam sido sentenciados “somente por serem brasileiros, amantes da causa da nossa independência e adesão à Majestade Augusta do Imortal Imperador do Brasil, nosso Protetor; e ainda agora gem[iam] os suplicantes nas masmorras como mártires da pátria”. Diante de tal “injustiça” da “prepotência do despotismo”, os índios pediram para serem perdoados, já que “só a independência do Brasil” foi o “objeto de perdição destes infelizes brasileiros acabrunhados pelos europeus, e por americanos degenerados, escravos vis desses senhores absolutos” (AN, série Justiça, IJ¹ 719). O perdão de dom Pedro I foi finalmente obtido no dia 1º de julho de 1823 (APEC, fundo Governo da Província, série Junta do Governo Provisório, p. 37V).

O antilusitanismo indígena, portanto, nasceu de sua luta pela liberdade, pela posse de seus territórios e contra a violência sofrida neste contexto. A tradicional defesa da Coroa, que garantira estes direitos e que passava a ser brasileira, era expressão da expectativa de reciprocidade e de justiça. O medo da escravidão, que poderia ressurgir com a constituição de Portugal, não estava baseado em meros boatos, mas nas práticas contra os índios de Maranguape.

Em contrapartida, o novo governo os libertou e os enalteceu enquanto brasileiros mártires da pátria, em oposição aos inimigos nascidos no Brasil, chamados de “americanos degenerados”. Por esse apoio, os índios dessa serra – e, consequentemente, de outras vilas e povoações do Ceará – instrumentalizaram o liberalismo e passaram a ver a independência do Brasil como um movimento em prol de sua liberdade.

Bibliografia Básica

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado). Universidade de São Paulo, 2006.
NOBRE, Geraldo. Os índios revoltosos na serra de Maranguape. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo CIX, 1995.
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese (doutorado). Universidade Federal do Ceará, 2015.

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