Revista Impressões Rebeldes

ISABEL, UMA PORTUGUESA

Deixando de lado as personagens românticas, surgem em relatos da guerra de independência de Portugal: mulheres de carne e osso que, longe da imagem de fidalguia, lutaram contra a Espanha nos campos de batalha

“No quieren” (Não querem), pintura de Francisco de Goya mostra uma mulher idosa lutando para defender uma jovem mulher das garras de um soldado – Museo Del Prado

Carlos Ziller Camenietzki

Carlos Ziller Camenietzki é professor do Instituto de História da UFRJ e autor do artigo “Frágeis damas e mulheres fortes: a representação feminina na Restauração de Portugal (1640-1668)”, em co-autoria com Rejane da Conceição Meirelles, na revista da UNICAMP “Cadernos Pagu” de janeiro-junho 2008.

Acessar Lattes

Assunto

É coisa comum acharmos que o tempo de agora se dilata por séculos passados sem maiores cerimônias. Tudo aconteceria como se os problemas que identificamos hoje fossem fruto de um destino inapelável e incontornável, surgido e cristalizado há séculos. Por exemplo, já se repete com insistência que as mulheres de antigamente estavam alijadas do mundo do trabalho, que eram coadjuvantes nos principais acontecimentos das sociedades e que, nas guerras, cumpriam quase que exclusivamente o papel de vítimas.

No entanto, é bastante ingênuo crer que metade da humanidade pudesse acomodar-se apenas aos trabalhos domésticos. Essa é uma conta que não fecha. Ainda que possamos fingir não ver antigas representações pictóricas mostrando mulheres arando a terra, cuidando do comércio, dos animais etc., se apenas 50% da população realizava algum trabalho, sua produtividade deveria ser imensa e capaz de suprir as necessidades da totalidade dos habitantes do globo!

Além disso, crer que, nos grandes momentos de transição violenta, as mulheres continuavam cravadas nos afazeres domésticos é coisa que limita severamente a extensão das transformações em curso. Sabe-se ao certo, que foram as operárias da indústria têxtil que deram os primeiros passos da Revolução em fevereiro na Rússia, sabe-se também que foram basicamente mulheres de Paris que marcharam ao Palácio de Versalhes em um momento dramático da Revolução Francesa.

Estamos diante de um problema vigoroso que envolve tensões entre o tempo vivido e aquele narrado e analisado pela História e pela literatura. Tomemos exemplo na “Guerra da Restauração” da independência portuguesa entre 1640 e 1668, lembrando que os escritos sobre os feitos foram composto e publicados em diversas épocas por diversos autores que buscaram expressar suas noções nos seus textos. De fato, um livro de História, ou um romance histórico, sempre fala mais do tempo e dos problemas da época em que foi publicado que daquele que relata e analisa.

Assim, Almeida Garrett, escritor romântico da metade do século XIX, caracterizou a ação feminina na Restauração na sua peça de teatro “Philipa de Vilhena”, numa passagem do segundo ato, cena IV, em que D. Philipa teria armado seus filhos:

“Meus amigos e meus parentes, eu sou uma pobre viúva a quem Deus privou de toda a força e amparo nesse mundo […] A pátria precisa de todos, tudo. Aqui estão meus filhos. Não tenho mais nada… Meus filhos! Ajoelhai, meus filhos. Aqui estão no altar de Deus e da pátria… Vítimas inocentes e puras! Aceitai-as meu Deus! … Vão banhadas com algumas lágrimas, que se não podem conter no coração … Senhores, é uma espada na mão de uma mulher que mal pode com ela… Vós, criancinhas, é vossa mãe que ainda ontem vos acalentava, vossa mãe que lhe treme o braço, que lhe rebenta o choro nos olhos, que está aqui sustida de uma força sobrenatural que ela mesma não compreende… Tomai esta espada e não sirvais dela senão para defender a religião, a pátria, a liberdade do povo e os vossos legítimos reis.”

Garrett expõe uma D. Philipa que não poderia ter existido, numa celebração de cavalaria que também não poderia ter existido, armando “criancinhas” que já tinham bem mais de vinte anos. De fato, em dezembro de 1640, a D. Philipa contava quase sessenta anos e não tinha nada de desprotegida, era a Condessa de Atouguia. Enfim, a peça é obra de ficção por definição. No entanto, fica patente a modelagem do papel feminino na empreitada: mulher fidalga, frágil e delicada que entrega tudo à defesa da religião, da pátria, dos reis etc., mas não se empenha diretamente nos combates, não ocupa a linha de frente, só anima seus próximos.

Essa passagem de D. Philipa dando armas a seus filhos na véspera do golpe restaurador de 1º de dezembro tem amparo em grande parte das narrativas do século XVII, sobretudo daquelas elaboradas por fidalgos e por gente da nobreza, como o clássico do Conde da Ericeira, História de Portugal Restaurado, ou o livreto de João Pinto Ribeiro, Usurpação, Retenção e Restauração de Portugal. É claro que as cores do romantismo literário de Garrett foram introduzidas por ele mesmo, sem qualquer registro anterior. Já nos escritos de gente de outros estratos da sociedade portuguesa, D. Philipa sequer é mencionada, como no texto do padre Nicolau da Maia, Relação de tudo o que se passou. O empenho da Condessa parece ser destacado sobretudo pela gente fidalga do século XVII e dos seguintes.

Não será necessário refletir longamente para concluir que sobretudo a fidalguia portuguesa apreciou e reproduziu a narrativa do gesto de D. Philipa, colocando-o como possível modelo do papel feminino na Restauração. Mas se houver uma pequena dúvida quanto ao 1º de dezembro ter sido realizado apenas por parte da nobreza, por quarenta ou por setenta fidalgos, cabe uma outra interrogação acerca do papel feminino na empreitada.

Ora, a Restauração foi obra que lançou uma guerra impetuosa nas fronteiras portuguesas, com a movimentação de tropas numerosas, com pequenas entradas de pilhagem, com grandes batalhas e com um esforço diplomático intenso. É difícil crer que tudo isso tenha sido orquestrado apenas pela gente nobre, com fraco concurso urbano e camponês. De fato, a notícia da Restauração se espalhou rapidamente pelo reino, com aclamações imediatas do novo rei em todos os conselhos das cidades, salvo do Porto que demorou alguns dias a aderir. Também no Ultramar: pouco tempo depois, D. João IV foi aclamado e festejado no Rio de Janeiro, em Salvador e em Olinda

Em suma, a gente portuguesa participou diretamente da Restauração e de suas consequências bélicas e seria de estranhar que metade dos portugueses ficassem alheios, apenas animando seus filhos homens a aderir às tropas e a combater o invasor, como fez a D. Philipa na obra de Garrett.

Não se trata aqui de comentar a agência política feminina ao longo das décadas da guerra, de citar os empenhos das regateiras, das lavadeiras de Lisboa e o grande impacto produzido por seus feitos nos atos de governança. Mas é difícil crer que uma grande cidade marítima tivesse metade de sua população alheia, ou alheada, aos empenhos de guerra e de governo. Porém, os limites deste texto estão restritos aos feitos de guerra.

Contudo, nem só fidalgos ou afidalgados deixaram registros dos combates. A guerra e o fim do domínio castelhano gerou uma verdadeira maré de publicações ligeiras em Lisboa – é claro considerando as condições de 1640. Há inúmeros relatos impressos sobre o golpe de 1º de dezembro, inúmeras relações de enfrentamento nas fronteiras, de fugas e retornos de fidalgos e soldados portugueses. Lisboa fervia com as novas da independência retomada. Nos primeiros anos do conflito, saíam impressas praticamente toda semana relações de enfrentamentos com as armas de Castela. Nesses relatos, muitas vezes seus autores falavam da ação de defesa contra uma investida inimiga, envolvendo os moradores de uma vila ou de uma cidade. É claro que a maior parte desses relatos eram direcionados a emular as populações urbanas e mesmo a buscar fama para seus chefes militares. Mas, para o que interessa aqui, entre celebrações e emulações, mulheres apareciam como agentes de primeira linha contra o castelhano, seja enfrentado diretamente, seja no apoio logístico aos combatentes distribuindo munições e provisões.

 

“Las mujeres den valor” (As mulheres são corajosas), pintura de Francisco de Goya que mostra a luta entre um soldado e, aparentemente, duas mulheres – Museo del Prado

 

“No llegan a tiempo” (Não chegam a tempo), pintura de Francisco de Goya que mostra quatro mulheres ajudando umas às outras – Museo del Prado

 

Esses relatos se alimentavam de temas clássicos da literatura portuguesa da época do humanismo, adaptando passagens de Tito Lívio e de outros historiadores latinos, às vezes citando a Ásia de João de Barros e Diogo do Couto. As armas usadas por elas não eram exatamente os instrumentos de morte dos soldados homens: portavam porretes, chuços, lanças etc. Mas os esforços relatados mostram realizações que não conseguem se enquadrar na modelagem fidalga: uma mulher que mata soldados invasores e acaba atingida por tiros inimigos, outra que combate nas trincheiras, mais uma que reparte a pólvora, outra que lidera um grupo de mulheres com uma lança na mão em defesa de sua cidade, até freiras religiosas lançando óleo fervente dos muros contra os invasores.

Nessas narrativas de enfrentamentos contra grupos castelhanos ou galegos, uma delas se destaca por sua verossimilhança; trata-se dos feitos de Isabel Pereira na defesa de Ouguela em 9 de abril de 1644. Seu desempenho está registrado na Relaçam da famosa resistência e sinalada vitoria que os portugueses alcançarão dos castelhanos em Ouguela:

“Mataram mais um soldado português, feriram dois e uma mulher por nome Isabel Pereira, que fará esquecer o valor das famosas portuguesas, quenos insignes cercos de Diu e Mazagão fizeram feitos de imortal memória, porque desmentindo esta a fragilidade do sexo feminino, fez notáveis demonstrações de valor, assim pelejando nas trincheiras, como repartindo a pólvora e balas aos soldados, e retirada ao castelo ficou desacordada por algum espaço com a ferida que lhe deram, até que tornando em si e vendo que não era perigosa, prosseguiu a peleja com maiores brios até o fim.”

Mais parece que esse relato buscava contraditar Garrett e sua frágil D. Philipa quando desmente, duzentos anos antes, a fragilidade do sexo feminino promovida pelo escritor do romantismo. A Relaçamde 1644 não conta feitos fabulosos ou proezas inverossímeis, menos ainda se refere a maridos, a familiares ou a crianças que teriam sido protegidas ou estimulados por Isabel. Ao narrador – aliás, não identificado – isso não importa. Ele registra a ação de uma mulher da cidade que bem pode com uma espada, que bem se empenha nos combates, que reparte os suprimentos, que é ferida e nem por isso deixa seu posto nos combates. Essas funções eram aquelas mesmas dos homens engajados nas tropas de Portugal, eram também aquelas realizadas pelos moradores de qualquer cidade atacada durante o conflito.

Se D. Philipa de Vilhena bem serviu a Almeida Garrett para expor suas noções acerca da pátria, da fidalguia, da guerra de independência e das mulheres de seu tempo, Isabel Pereira mostra que há outro feminino empenhado na guerra e seu engajamento é real, físico, pessoal. Não há nada fidalgo em Isabel, ela não defende abstrações nobiliárquicas, não é nada frágil e não se recolhe em sua delicadeza após ter dado armas para os combatentes.

Realmente, o que parecia ser uma caracterização do feminino da Restauração, revelou-se uma caracterização de um certo romantismo do século XIX, simplesmente impraticável no século XVII. D. Philipa é bem aquela mulher que escritores ou talvez até muitas pessoas da época romântica desejavam real; mas em nada se assemelha à combatente Isabel que defendia sua cidade com armas em punho. Em suma, se considerarmos que aqui temos um confronto de interpretações, há que se considerar que a condição feminina esteve muito além do que queria a fidalguia portuguesa para suas mulheres. Há, e sempre houve, outras interpretações.

Se hoje, no século XXI, vemos apenas a D. Philipa de Garrett e se consideramos que ela é modelo feminino, que fique bem claro que se trata de escolha do nosso tempo, sem qualquer vínculo com as mulheres do passado e com seu papel nos acontecimentos das sociedades pregressas. Importa sempre considerar que quem conta um determinado feito, arruma a matéria a seu modo. Quem excluiu as mulheres da força de trabalho não foram os tempos pregressos. Quem excluiu a participação feminina na guerra não foram os que guerrearam. Esses sabiam muito bem que se a metade de Portugal ficasse lamentando fraquezas, Almeida Garrett seria um escritor romântico espanhol, na melhor das hipóteses.

Leia também

    Imprimir página

Compartilhe