Revista Impressões Rebeldes

ENTRE A CRUZ E A CALDEIRINHA

A Paraíba do Sul dos Campos dos Goytacazes foi palco de intensas disputas políticas entre os donatários da família Asseca e poderosos locais ao longo do século XVIII. Matheus Nunes, um ouvidor do Espírito Santo, se viu em apuros quando em 1748 as queixas de moradores deram lugar a uma grande revolta

A viúva instruída e proprietária de terras que popularmente dá nome à sedição de 1748 é retratada na capa do livro “Benta Pereira” de Godofredo Tinoco. Fonte: site Levy leiloeiro

Claudia Cristina Azeredo Atallah

Claudia Cristina Azeredo Atallah é Doutora em História pelo PPGH/UFF, professora do Departamento de História da UFF de Campos dos Goytacazes – CHT e do Programa de Pós-Graduação em História Social da UERJ/FFP. Autora de “Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América Portuguesa” (EdUERJ, 2016) com financiamento FAPERJ.

Em meados do século XVII a Paraíba do Sul dos Campos dos Goytacazes constituía-se em uma larga extensão de terras entre dois grandes centros urbanos do Império Português: Salvador e Rio de Janeiro. Essas paragens se caracterizavam por vasta planície de solo arenoso e densa vegetação, próxima ao mar e cortada pelo rio Paraíba do Sul – importante via fluvial para o comércio interno, e de passagem por áreas desconhecidas pelas autoridades régias, os chamados sertões proibidos pelo poder real. Era também uma capitania donatária com duas vilas: São João da Praia e São Salvador. Foi doada pela coroa portuguesa a Salvador Correia de Sá e Benevides em 1674 e, desde então, estava sob domínio da Casa dos Asseca. A doação das terras, bem como do título de visconde de Asseca, foi resultado dos serviços prestados por Sá e Benevides nas conquistas portuguesas, principalmente no centro sul da América e no oeste da África. (BOXER, 1973)

No passado, os goitacaz amedrontaram os primeiros forasteiros que andavam por aquelas terras. Guerreiros, hábeis caçadores e pouco amistosos ao diálogo com o europeu, teriam dificultado, segundo alguns relatos, a instalação segura dos portugueses. No entanto, “a partir do momento em que os interesses eram despertados, o destino dos índios foi comum a todos; mesmo com lutas sangrentas ou grandes resistências não escaparam da assimilação ou do extermínio” (FARIA, 1998, p. 30). No século XVIII, o panorama era outro. Com os nativos já dominados, a elite local, constituída por famílias de potentados que controlavam a terra e a dinâmica mercantil, enfrentava o domínio dos donatários. Seus membros clamavam pelo privilégio de se tornarem súditos reais: com a compra da capitania pela coroa acreditavam ser possível se livrarem do controle fiscal e político dos Asseca.

Na década de 1720, após anos de intensos conflitos entre os procuradores dos donatários e esses potentados, a coroa portuguesa reconfirmaria, em seguida a um longo processo, a posse dos Asseca sobre a Paraíba do Sul. Até ali, desde ao menos 1709, o panorama foi instável. Diogo Correia de Sá, o 3º Visconde de Asseca, decidiu vender a donataria ao Prior Duarte Teixeira Chaves. As Ordenações do Reino que regiam Portugal e seus domínios (mas não davam conta da multiplicidade de litígios e da própria administração ultramarina), previam que as terras senhoriais eram inegociáveis e, por isso mesmo, dois anos depois uma decisão real ordenou o confisco da Capitania da Paraíba do Sul. A decisão foi entendida pelos moradores como uma conjuntura favorável e suplicaram pela incorporação da capitania ao patrimônio da coroa. Todos os pedidos, entretanto, foram infrutíferos e em 1727 o rei reviu o confisco realizado anos antes, devolvendo a capitania aos donatários Asseca (ATALLAH, 2017).

Há de se notar, no entanto, que a coroa não manteve os termos da doação original. Dessa vez o monarca retirava dos Asseca o direito de correição. A correição era uma visita anual que o ouvidor deveria fazer a toda terra sob sua jurisdição. Na Paraíba do Sul, até 1727, toda essa dinâmica era conduzida pelo ouvidor do donatário, o que gerava certa impressão de parcialidade. Nessas visitas, que podiam durar semanas, o magistrado passava a ter conhecimento das agruras e mazelas que assolavam as populações e tomavam providências, ainda que precariamente. Além disso, era de sua responsabilidade observar toda a engrenagem administrativa e suas falhas. Julgava em primeira instância os processos superiores e em segunda instância os demais.
O auge das visitas era uma cerimônia orquestrada na câmara, a qual deveriam comparecer os vereadores e os principais da terra, com o objetivo de prestar todas as informações requeridas pelo ouvidor em correição. O resultado dessas sessões era registrado nos livros da câmara e se convertia nos autos de correição. A partir daí, a capitania dos Asseca se tornou termo da comarca do Rio de Janeiro e os conflitos e queixas dos moradores se tornaram visíveis a olho nu, já que a partir de então, quem cuidava dos litígios em segunda instância seria um ouvidor do reino.

Porém, esse panorama se agravaria ainda mais. Em 1732 foi criada a comarca do Espírito Santo, com jurisdição sobre a Paraíba do Sul. Recomendada pelo ouvidor do Rio de Janeiro, Manoel da Costa Mimoso, a intenção era aproximar o poder da justiça do rei das paragens ao norte de sua comarca, considerada por ele muito extensa e, por isso, pouco eficaz no controle dos povos (Arquivo Histórico Ultramarino/RJ – Avulsos cx. 23, doc. 2529. Projeto Resgate/BNRJ). Em 1741 chegou à Vitória o primeiro ouvidor da comarca do Espírito Santo, Pascoal Ferreira de Veras. Três anos depois seu substituto, Matheus Nunes José de Macedo, encontrou um panorama político bastante instável ao sul de sua comarca.

Matheus Nunes esteve, durante seu tempo como ouvidor do Espírito Santo (1745-1748), entre o poder dos Asseca sobre a Paraíba do Sul e as insatisfações dos moradores da capitania – entre a cruz e a caldeirinha. Isso se deve, em boa parte, ao acirramento das queixas em relação à cobrança excessiva de impostos e, consequentemente, à eclosão da Rebelião, em 1748, na Vila de São Salvador contra mais uma reconfirmação real da doação da capitania aos Asseca quando, em 1746, foi anunciada a morte de mais um Visconde de Asseca, Diogo Correia de Sá e Benevides Velasco. O capitão mor, Antônio Teixeira Nunes, ficou responsável por informar ao ouvidor do Espírito Santo sobre o ocorrido. (ATALLAH, 2018).

Os rumores de vacância na donataria provocaram novas inquietações e distúrbios entre os homens bons da Paraíba do Sul, procuradores e oficiais que ali tinham posto e seus parciais. Mateus Nunes logo consultaria o Tribunal da Relação da Bahia, para saber se deveria ou não sequestrar aquela donataria, conforme previa seu real serviço. Segundo uma Representação enviada ao rei por estes moradores, na demora do ouvidor em tomar posse da capitania, conforme lhe recomendou a Relação, “os oficiais, que então serviam na câmara, a tomaram pela coroa, de que deram conta à dita Mesa, que lhe aprovou”. O ouvidor também era acusado de parcialidade, de proteger os interesses dos donatários e essa era a justificativa para a morosidade quanto ao sequestro da capitania. (ABNRJ, 1750. Ano 1928, Vol. 50 42, p. 147)

Em setembro de 1746 André de Mello e Castro, vice-rei do Brasil (1735-1749), ordenou ao ouvidor do Espírito Santo, em resposta à sua consulta, que fosse tomar posse da capitania da Paraíba do Sul em nome da coroa. Cumprindo ordens, Mateus Nunes seguiu em direção ao sul de sua comarca, rumo à terra que foi dos Asseca. Ao chegar à Vila de São Salvador deparou-se com uma câmara empenhada em manter o jugo do donatário intruso longe da administração da capitania.

O ouvidor da comarca agira com rapidez para, segundo seus interesses, suas concepções e o poder que a jurisdição da justiça lhe concedia, conduzir à normalidade a Paraíba do Sul. Condenou os camarários ao degredo e tornou nula aquela câmara amotinada. Realizou nova eleição, levando à municipalidade alguns parciais do donatário. Exigiu que os recém-empossados assinassem um compromisso de respeito e subserviência ao Visconde. Os antigos oficiais da câmara permaneceram presos na cadeia da vila, aguardando o resultado de sua apelação à Relação da Bahia, durante dezessete meses. (Livro de Registros da Câmara da Vila de São Salvador, 24/01/1748).

Em 1748 chegava à Paraíba do Sul a notícia de que Martim Correia de Sá obtivera da coroa a carta de confirmação de sua donataria. O ouvidor do Espírito Santo foi ordenado a dar posse ao donatário e aos seus procuradores. Tal panorama arrebataria os ânimos. Os homens bons da Paraíba do Sul (e, nesse caso, as mulheres) se reuniram em assembleia sob a liderança de Manoel Manhães Barreto e de sua mãe, Benta Pereira de Sousa. Optaram por não reconhecer a posse do donatário, impedindo os camarários de oficializá-la. Ainda invadiram a câmara, cercaram a fazenda do visconde, armaram seus escravos e exigiram a nulidade da confirmação de doação. Após êxito inicial, foram vencidos pelos partidários do donatário que, com reforço do Rio de Janeiro, sufocaram de vez o levante, popularmente conhecido como Revolta de Benta Pereira. A posse da donataria ocorreu em quinze de julho de 1748, sob o comando de Matheus Nunes José de Macedo. Passado um levante que carregou consigo a pretensão de questionar uma decisão real, o ouvidor régio tinha a ordem de instaurar uma devassa e punir os principais culpados.

Naquele momento tinha início uma longa jornada. Para os amotinados, um processo demorado que pretendia provar sua inocência e a lealdade à monarquia: nesse caso, o problema eram os donatários. Para o ouvidor do Espírito Santo, a complexa tarefa de se livrar das acusações e investigação de parcialidade e da denúncia de falsa devassa, que envolvia mais de sessenta acusados, mesmo com a recomendação da coroa que pronunciasse poucas pessoas.

 

Medalha comemorativa do primeiro centenário de Benta Pereira de Souza (1935) – Museu das Medalhas Brasileiras

 

Ambas as jornadas chegariam ao fim. Foi ordenado que se tirasse uma nova devassa, o que foi feito pelo novo ouvidor do Espírito Santo, Bernardino Pereira Falcão. A sentença, emitida pelo Tribunal da Relação da Bahia em 2 de março de 1751 condenava nove pessoas, como cabeças da “rebelião popular” de 1748. Nesse mesmo período, o Conselho Ultramarino emitia um parecer favorável à compra da capitania pela coroa. Da mesma forma, recomendava o perdão aos condenados. O rei acataria às recomendações. Tinha ali início a incorporação da Paraíba do Sul ao patrimônio real, processo concluído em 1754. Ao mesmo tempo, os nove condenados foram perdoados.

Para o agora ex-ouvidor do Espírito Santo esse final seria mais dramático. O encontramos, em 1756, solicitando ao Conselho Ultramarino que fosse tirada uma nova residência – uma espécie de devassa ordinária tirada a respeito do período trienal exercido pelos ouvidores. Geralmente, o responsável por ela era um ouvidor de outra comarca ou o ouvidor que assumiu o cargo – do tempo em que ocupou a ouvidoria do Espírito Santo. O pedido tinha como justificativa o fato de que todos os documentos referentes ao lugar ocupado se perderam com o incêndio provocado pelo terremoto de 1755 em Lisboa. Mateus Nunes ainda declarou que o mesmo terremoto afetara a sua vida e a de sua família. A última notícia documental que temos do bacharel é o parecer do Conselho Ultramarino favorável às suas súplicas, de 1762, eximindo-o de quaisquer culpas e tornando-o apto, mais uma vez, ao Desembargo do Paço. Não há indícios de que tenha sido nomeado novamente.

Bibliografia Básica

ATALLAH, C. C. A. A administração da justiça nas terras dos Asseca: uma análise da carta de doação da Paraíba do Sul dos Campos dos Goytacazes (1674-1727). In: Bicalho, Maria F.; Assis, Virgínia Maria A. de; Mello, Isabele de M. Pereira. Justiça no Brasil colonial agentes e práticas. São Paulo: Alameda, 2017.
ATALLAH, C. C. A. Entre a cruz e a caldeirinha: um ouvidor a serviço da monarquia nas terras dos Asseca. Tempo, v.24. n.1, p.161-179, 2018.
BOXER, C. R. Salvador Correia de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola. 1602-1686. Tradução de Olivério M. de Oliveira Pinto. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1973.
FARIA, S. de C. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. RJ: Nova Fronteira, 1998.
PENNA, P. L. Benta Pereira: mulher, rebelião, e família em Campos dos Goytacazes, 1748. Dissertação de Mestrado, UFF, 2014. 142 páginas.

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