Revista Impressões Rebeldes

DIA DA LIBERDADE

Com a assinatura da Lei Áurea em 1888, populares tomaram conta das ruas do país em festa. Na República, o brilho e a espontaneidade das comemorações do 13 de maio foram se perdendo, pelo temor que a mobilização provocava. Na Bahia, porém, a festa da liberdade resiste

Nos traços de Angelo Agostini, a celebração da abolição. Na legenda: “Os troncos, bacalhaus e outros instrumentos de tortura, alimentam as fogueiras, em redor das quais os novos cidadãos entregam-se ao mais delirante batuque” (Revista Ilustrada de 12 de junho 1888 (Edição 499, pg. 4)

Walter Fraga Filho

Walter Fraga Filho é doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Autor dentre outras obras de “Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910)” – Campinas, Editora da Unicamp, 2006

Em 13 de maio de 1888, uma lei imperial – a chamada Lei Áurea – pôs fim à instituição que por mais de três séculos marcou de maneira profunda a vida cotidiana no Brasil, os modos de viver e de pensar, as relações de poder, as etiquetas de mando e obediência: a escravidão. Desde então, aquele segundo domingo do mês de maio, deixaria de ser apenas um dia qualquer do calendário para ganhar as páginas da história do país como um momento fundador, decisivo e crucial.

A festa aconteceu em meio a muita expectativa sobre as transformações que deveriam seguir o fim do cativeiro. No calor dos festejos pela aprovação da lei Áurea, e nos anos que se seguiram àquele episódio, definiram-se campos de disputa em torno da memória da abolição, que giraram em torno de quais personagens e acontecimentos ganhariam relevo na memória da luta contra o cativeiro. Essas disputas foram parte dos embates políticos que sucederam o 13 de maio de 1888 e a instauração da República. São estes assuntos que discutiremos ao longo desse texto.

No calor da hora, houve quem definisse aquele dia como o maior acontecimento da história brasileira. Entretanto, os significados das intenções, escolhas, expectativas e desencantos que marcaram os acontecimentos estão longe de esgotar leituras e interpretações. Tal como a ambiguidade e dilemas da própria abolição que então se consumava, o 13 de maio estaria para sempre fadado às disputas sobre sua representatividade simbólica para as lutas contra o racismo e pela cidadania negra no Brasil.

Os acontecimentos do desse dia foram parte dos embates que vinham se agudizando desde pelo menos a década de 1870 e que dividiram a população em relação ao fim da escravidão e a maneira como a sociedade deveria ser reestruturada depois de abolido o cativeiro. Essas discussões projetaram nas elites do país o medo de que o fim da escravidão pudesse aprofundar conflitos que colocassem em questão as hierarquias e os lugares raciais – que até então alicerçaram a sociedade brasileira. Para homens e mulheres que viveram a experiência da escravidão, a abolição acendia a expectativa de que a condição de cidadãos livres pudesse trazer melhores dias.

No 13 de maio, a cidade do Rio de Janeiro, centro do poder do Império do Brasil, amanheceu agitada com a possibilidade de que finalmente fosse votado no senado o projeto de lei que abolia a escravidão. Desde a manhã, uma multidão ocupou as ruas centrais da cidade e postou-se em volta do edifício do senado e do paço imperial. O clima era de expectativa em relação à sessão extraordinária que decidiria a sorte de milhares de pessoas ainda submetidas ao cativeiro. Diversas bandas de músicas animavam os desfiles das associações abolicionistas que percorriam as ruas exibindo seus estandartes.

Alguns jornais chegaram a afirmar que a concentração popular tomava uma proporção nunca antes vista em qualquer outra manifestação ocorrida até então na cidade. Na rua do Ouvidor, as sacadas dos prédios das redações dos jornais que circulavam na corte estavam adornadas com bandeiras e repletas de homens e mulheres dando vivas à liberdade. Cinco anos depois daqueles acontecimentos, o romancista Machado de Assis ainda relembraria aquela data como “o único dia de delírio público que me lembra ter visto”.

 

A multidão reunida em frente ao palácio do governo no Rio de Janeiro, em 13 de maio 1888, é captada na fotografia de Marc Ferrez – Acervo Instituto Moreira Salles

 

A aprovação da lei gerou manifestações muito parecidas e quase simultâneas nas diversas capitais das províncias do Brasil. As notícias chegavam pelos fios dos telégrafos e por isso as redações dos jornais e as estações ferroviárias que tinham o aparelho atraíam inúmeros curiosos. No Recife, de todos os lados da cidade, uma grande multidão afluiu para a rua do Imperador em busca de notícias que chegavam às redações. Depois de confirmada a notícia, seguiram em passeata rumo à praça da Princesa para ouvir o pronunciamento oficial do presidente da província. Três dias depois, uma passeata organizada pelos abolicionistas pernambucanos chegou a reunir mais de 15 mil pessoas no centro da cidade.

As primeiras boas novas da abolição chegaram a Salvador na tarde de 13 de maio. As redações dos jornais receberam por telégrafo a notícia de que o senado acabara de votar o projeto de Lei da Abolição. Na noite do dia 13, já confirmada a notícia, entidades abolicionistas, estudantes, populares e ex-escravos ocuparam as ruas e desfilaram pelo centro da cidade ao som de filarmônicas.

A festa tinha sua razão de ser. Afinal era o fim da escravidão. Além disso, representava a vitória do movimento popular sobre aqueles que resistiram à ela até as vésperas do 13 de maio. Da parte dos libertos, o que embalava a festa era a expectativa de que dali por diante poder-se-ia viver melhores dias.

Na festa organizada pelos abolicionistas pernambucanos, em 16 de maio, um carro alegórico da associação abolicionista Clube dos Cupins desfilou ornamentado de uma jangada e uma barcaça tendo nas velas a seguinte inscrição: “Vinte e cinco de março de 1884 – nascimento – Ceará Livre”. No mesmo carro, sobre o pedestal, uma mulher jovem representando a liberdade trazia nas mãos um estandarte que dizia: “Decreto de 13 de Maio de 1888 – Abolição imediata – Isabel”. Aos pés da jovem, um grupo de libertos segurando palmas simbolizava também a liberdade.

Note-se que, para os abolicionistas pernambucanos, a relação era com o 25 de março de 1884, quando jangadeiros e populares aboliram o tráfico interno de escravos na província do Ceará. Já para os abolicionistas baianos, o 13 de maio estava conectado ao 2 de Julho de 1823, data da independência em relação ao colonialismo português, simbolizado pelas imagens dos caboclos levadas para as ruas.

Nas passeatas abolicionistas que se realizaram em Salvador nos dias subsequentes ao 13 de maio, os libertos também se fizeram presentes, mas apareciam no final do cortejo e puxando os carros dos caboclos. Aquela posição subalterna de alguma forma representava o lugar pensado para eles ocuparem no Brasil pós-escravista.

O mais impressionante é que nos anos subsequentes a festa promovida pelos abolicionistas rapidamente perdeu seu brilho e não conseguiu mais repetir o entusiasmo inicial. Em 1890, ela parecia ter se transformado em algo solene e formal, despido da espontaneidade e do sentimento reivindicativo da primeira celebração. Segundo um jornal da época: “Entristece-nos dizê-lo: as festas correram friamente, sem entusiasmo, não parecendo serem em honra à maior data da pátria. […] O povo absteve-se de comemorá-la publicamente nas ruas com aquela alegria que os povos patriotas concorriam a todas as suas festas”.

Para o articulista, esse retraimento devia-se aos “pavorosos boatos” de que no dia 13, em Salvador e na capital federal, haveria revoltas, golpes de estado e vitória dos “sebastianistas” (leia-se monarquistas). Segundo o mesmo noticiário, famílias moradoras nos arrabaldes evitaram se deslocar até o centro da cidade para participar das celebrações. “Espíritos perversos” com o viso de desmoralizar a República e de poderem especular com o “turvamento das águas” espalharam boatos aterradores. (Biblioteca Pública do Estado da Bahia (BPEBa), Jornal de Notícias, 14 de maio de 1890, “O dia de ontem”, p.2)

Nos anos seguintes, as notícias bateram na mesma tecla do esfriamento dos ânimos populares nas celebrações do 13 de maio. Em seu editorial de 12 de maio de 1891, o Jornal de Notícias refletia que “o dia 13 de maio é uma data de regozijo popular; não é ainda um tema para a filosofia da história […] entretanto que estranheza não deve causar ao povo baiano o silêncio de indiferença que parece acolher o dia de amanhã”. Finalizou denunciando a ditadura republicana e a indiferença “quase criminosa” com que o atual governo vê aproximar-se “o maior dia de nossa história”. (BPEBa, Jornal de Notícias, 12 de maio de 1891, Editorial: “13 de Maio”, p. 1.)

Nos festejos do 13 de maio de 1893, a data foi elevada à condição de festa nacional pelo governo provisório da Bahia. O ponto alto da festa foi a queima dos livros da extinta tesouraria da fazenda do estado. Com esse ato, visava-se incinerar o projeto de indenização ainda defendido pelos ex-senhores de escravos e supostamente também “fazer esquecer às gerações vindouras a vergonhosa história do nosso passado escravocrata”. (BPEBa, Jornal de Notícias, 12 de maio de 1893, p. 1)

No decorrer da década de 1890, a festa rapidamente se transformou em um evento cívico, oficial e sem brilho, se limitando a um evento formal com paradas militares, tiros de canhão no forte de São Marcelo e manifestações das associações abolicionistas. As lideranças abolicionistas não conseguiram repetir o entusiasmo do primeiro dia da festa e tampouco transformar o dia da abolição na maior data do país. A festa não repetiu a “levada” da cabocla, nem houve a participação dos clubes carnavalescos.

Em parte esse “esfriamento” do entusiasmo popular estava ligado à conjuntura repressiva dos primeiros governos republicanos que coibiam as reuniões públicas especialmente em datas festivas como o 13 de maio e a Lavagem do Bonfim. Certamente havia fortes interesses em fazer com que a festa da abolição “não pegasse”. Para as autoridades republicanas interessava esvaziar o dia de seu sentido reivindicativo e cessar a possibilidade de se torná-la a grande data nacional. Afinal, a abolição era considerada a grande realização da monarquia.

Além disso, a multidão nas ruas desencadeava o medo de que a ordem republicana recém implantada fosse abalada. Celebrar o 13 de maio era algo incômodo para as autoridades republicanas, uma fonte de críticas ao regime que não pretendia fazer face às demandas que nasceram no âmbito das lutas contra o cativeiro.

A despeito disso, em diversos engenhos do Recôncavo baiano a festa continuou por muitos anos. Até por volta da década de 1920, o 13 de maio era intensamente celebrado nas propriedades rurais. Naquele dia, os moradores, muitos deles ex-escravos ou descendentes, reuniam-se no terreiro dos engenhos para cantar, sambar, jogar capoeira e celebrar o que chamavam de o “dia da liberdade”.

Até fins da década de 1930, a Frente Negra Brasileira (FNB) – movimento político negro e popular que posteriormente se tornou um partido – relembrava o fim do cativeiro, mas também fazia daquele dia um momento para denunciar e renovar antigas demandas da população negra, especialmente a do acesso à educação.

As celebrações nos redutos negros parecem ter sobrevivido ao esquecimento. Em Cachoeira, toda noite do dia 13 de maio, a filarmônica Lyra Ceciliana – fundada pelo abolicionista negro Manoel Tranquilino Bastos – desfila pelas principais ruas da cidade repetindo o mesmo trajeto do desfile abolicionista de 1888. Em Santo Amaro, todos os terreiros de candomblé da cidade se reúnem no Largo do Mercado, é o Bembé do Largo do Mercado. O Bembé na verdade é um grande candomblé de rua celebrando a abolição. Segundo a tradição oral essa celebração começou em 1889 por iniciativa de famoso pai-de-santo local chamado João de Obá.

Bibliografia Básica

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GOMES, Flávio; CUNHA, Olivia Maria Gomes da (orgs). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: UFRJ; SP: Edusp, 1994.
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista – Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
SANTOS, Maria Emília Vasconcelos dos. “Os significados do 13 de maio: a abolição e o imediato pós-abolição para os trabalhadores dos engenhos da Zona da Mata Sul de Pernambuco (1884-1893”. Campinas, São Paulo: Tese de Doutorado, UNICAMP, 2014.
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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