Revista Impressões Rebeldes

O PAPA TUPINAMBÁ

O século XVI foi marcado por diversas rebeliões no Brasil colonial. Umas das maiores e mais intrigantes ocorreu em 1580, no recôncavo baiano, quando o pajé-açú Antônio criou uma seita “meio católica, meio tupinambá” e liderou ataques indígenas aos colonizadores e colonos

“Índios da Amazônia adorando ao Deus-sol”, óleo sobre tela de François Auguste Biard (1860) que retrata a religiosidade nativa – Brasiliana iconográfica

Ronaldo Vainfas

Ronaldo Vainfas é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular de História moderna aposentado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor dentre outras obras de “A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial” – São Paulo, Companhia das Letras, 1995

Caio Prado Jr escreveu que um dos obstáculos da colonização no século XVI foram os índios selvagens, que volta e meia atacavam os núcleos de povoamento português. Referia-se aos nômades que os colonos chamavam tapuias, uma palavra da língua tupi para designar os nativos que falavam outras línguas. Tapuia era um genérico, não um grupo cultural nativo. Os Tupis se consideravam superiores, dominavam a agricultura e controlavam a maior parte do litoral do que veio a ser o Brasil.

Os tapuias de fato atacavam e emboscavam os portugueses, metidos na mata, como os aimorés, na Bahia, um flagelo de que se queixaram diversos governadores até o século XVII. Um deles, Diogo Botelho, chegou a contratar os potiguara da Paraíba e Rio Grande, chefiados por Zorobabé, para combater os aimoré. Zorababé se saiu bem, ganhou soldo pelas vitórias e, no retorno à Paraíba, ainda recebeu ordem para atacar um quilombo de “negros da Guiné” por volta de 1603. Mas era chefe nativo de lealdades incertas, apoiou os franceses, até 1598, depois os portugueses, mas acabou traindo todos. De volta à Paraíba, coberto de glória, no combate aos quilombolas do rio Itapicuru, a quatro léguas do Rio Real, na Bahia, Zorobabé destroçou o quilombo e conta-nos Frei Vicente do Salvador que poucos tornaram a seus donos, pois o chefe potiguar matou grande parte deles e cativou os demais. Vendeu-os no regresso à Paraíba em troca de bandeira, tambor, cavalo e vestidos. Terminou mal, enviado a ferros a Portugal, morrendo num cárcere de Évora.

O século XVI inaugurou nossa história colonial em meio a rebeliões de vários matizes. Nativos contra colonos portugueses. Tupis contra tapuias. Índios contra africanos. Africanos contra escravistas. Mas a maior rebelião do século XVI ocorreu nos anos 1580, organizada pelos tupinambás do recôncavo baiano. Não eram índios refugiados nas matas, mas fugitivos das missões jesuíticas. Seu chefe tinha o nome de batismo de Antônio, mas como tinha dons de paje-açú – grande pajé – pois falava com os mortos do grupo, quando sacudia o maracá e fumava petim (tabaco), também se nomeava Tamandaré, ancestral dos Tupinambás. Mais que isso: dizia ser o verdadeiro papa da Igreja de Roma, nomeava santos e santas, um deles São Luiz, outro Santíssimo, sua principal esposa era tida como Santa maria Mãe de Deus.

Antônio, Tamandaré ou o papa tupinambá – como quiserem – liderou um movimento meio católico, meio tupinambá. Traduziu o catolicismo para a cultura tradicional dos nativos e moveu sucessivos ataques aos colonizadores e colonos. Incentivou fugas de índios escravos ou aldeados dos jesuítas. Incendiou aldeamentos inacianos. Atacou engenhos, como o do Conde Linhares, em Sergipe. Partiam do mato para o litoral, em ações de emboscada. O movimento ficou conhecido como Santidade. Os senhores do Brasil ficaram apavorados, a começar pelo governador Manuel Teles Barreto.

Um deles, porém, deu uma de esperto, Fernão Cabral de Taíde, dono de um próspero engenho em Jaguaripe, no recôncavo baiano. Enviou uma tropa de mamelucos para atrair a seita com a promessa de liberdade religiosa e fim do cativeiro indígena. Era tudo que os nativos queriam, embora desconfiassem de tanta generosidade. Em todo caso, o lugar-tenente de Fernão Cabral, Domingos Fernandes, d’alcunha Tomacaúna, convenceu o grupo a migrar para o engenho escravista de seu patrão.

Em 1585 a situação se tornou insustentável. Índios cativos e aldeados fugiam para a terra escravista de Fernão Cabral, construíram sua igrejinha-maloca, trabalhavam sem custo para ele, que simulava cultuar o ídolo da Santidade: Tupanaçu – deus grande. Os demais senhores luso-baianos pressionaram o governador para acabar com aquela rebelião de vez. Organizou-se a repressão, fartamente documentada e, na hora H, Fernão Cabral abandonou os índios e apoiou a repressão. Muitos mortos, vários escravizados ou reenviados para as missões inacianas. A rebelião católica-tupinambá se aquietou na Bahia.

Mas como sabemos disso tudo? Porque a Inquisição de Lisboa mandou uma visita à Bahia, em 1591, e tudo veio à tona. Foram produzidas fontes preciosas, desde quem fez o quê na história até a morfologia da igreja nativa, a cruz à porta, o ídolo no centro, o frenesi tabagista, a cauinagem, detalhes etnográficos de imenso valor. E, sobretudo, a informação sobre o caos da colonização desde o nosso primeiro século, onde uns brigavam com os outros e os outros com os uns.

Bibliografia Básica

CALASANS, José. Fernão Cabral de Ataíde e a santidade de Jaguaripe [1a ed, 1952]. Bahia: EdUneb, 2011.
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. “De como se obter mão-de-obra indígena na Bahia entre os séculos XVI e XVIII.” Revista de História 129-131 (1994): 179-208.
VAINFAS, Ronaldo (org.) Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 (Retratos do Brasil)

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