Revista Impressões Rebeldes

SOBAS REBELDES DE ANGOLA

Nos sertões do antigo Ndongo, como Angola era antes conhecida, alguns sobas não deram vida fácil aos portugueses. Sua ação ativa e preparação militar impediram o avanço da colonização

Mapa do Congo e de Angola no século XVII Fonte: Regna Congo et Angola. Janssonius, ca.1650 42x50cm, edição antiga a cores. (van der Krogt I, 8755:1)

Flávia Maria de Carvalho

Flávia Maria de Carvalho é professora de História da África da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), autora do livro “Sobas e homens do rei: relações de poder e escravidão em Angola – séculos XVII e XIII” (Edufal, 2015), tese de doutorado em História pela UFF.

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Antes de os portugueses fixarem o nome de Angola para o território na costa centro ocidental africana em fins do século XVII, a região era mais conhecida como Ndongo. A principal autoridade política na área era o Ngola, cujos poderes estavam vinculados diretamente aos aspectos divinizados e sobrenaturais. Entre o povo mbundu, etnia predominante na região, prevalecia a crença de que o poder desse soberano era legitimado pelos ancestrais, o que lhe conferia o dom de manter a comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos – prática ritualística que fazia parte da rotina de vários grupos que habitavam a África Centro Ocidental.

Apesar dessas concepções místicas e metafísicas que cercavam o poder dos Ngolas, as decisões práticas sobre como governar seus súditos e de estabelecer alianças ou travar conflitos com grupos rivais africanos ou estrangeiros estavam na mão dos sobas. Os territórios do antigo Ndongo eram divididos em sobados, cada um deles governado por seu respectivo soba, que gozava de plena autonomia em suas decisões. De acordo com o historiador Joseph Miller, a própria geografia do Ndongo favorecia essa descentralização política, garantindo maior possibilidades de negociações por parte destes chefes. Recorrer ao Ngola era um recurso sempre associado aos momentos de dificuldades, como a falta de chuva, escassez de alimentos, ou epidemias. Os sobas eram independentes, ficando o soberano concentrado em funções predominantemente voltadas ao campo do sagrado.

Os sobas exerceram papel relevante nos processos de conquistas dos portugueses nos sertões de Angola, sendo estes chefes responsáveis tanto pelo fornecimento de escravos destinados ao lucrativo mercado atlântico, quanto pela abertura de caminhos rumo ao interior de reinos da África Centro Ocidental.

Ao sul de Luanda os sobados de Quissama, representaram um papel destacado, responsáveis pelo maior número de insubordinações às imposições da Coroa Portuguesa. Já em 1580, quando era governador Paulo Dias de Novaes, os sobas de Quissama tentaram impedir a passagem de uma expedição portuguesa junto ao rio Kwanza, o que teve como consequência uma violenta batalha. As tropas portuguesas lideradas pelo sargento mor Manoel João, com auxílio de cento e setenta soldados atacaram Quissama fazendo vítimas e incendiando terras. O desfecho do episódio seria a imposição dos interesses portugueses junto aos sobas de Quissama – condição que não durou muito já que novas revoltas voltariam a acontecer.

Os governadores que sucederam Paulo Dias de Novaes tiveram como orientação convencer os sobas a proibir o trânsito de “estrangeiros não portugueses” em seus territórios, meta não alcançada, já que o controle das vias era facultado às chefias locais e o monopólio do comércio português nem sempre representou a melhor das alternativas. Assim como em Quisssama outras chefias mbundu, distribuídas por vários sobados da região, ofereceram dura resistência através dos bloqueios e ataques a diversas investidas portuguesas.

Os sobas protagonizaram inúmeras revoltas contra os funcionários da Coroa portuguesa estabelecidos em Luanda, provocando desde motins até mesmo deportações – como foi o caso de vários governadores, como por exemplo Francisco de Almeida e Jerônimo de Almeida. Vale ressaltar o fomento dos padres jesuítas para a organização desses conflitos, já que até o período pombalino eram eles os principais responsáveis pelo contato direto com os chefes do Ndongo, apesar das tentativas da Coroa em minimizar esse controle.

De volta ao caso de Quissama, ali os investimentos para sua conquista eram justificados pelos administradores portugueses em razão da existência de minas de prata nos territórios de Cambambe, localizados ao norte da margem direita do rio Kwanza. Para chegar até essas supostas jazidas era necessário passar pelos caminhos controlados pelos chefes rebeldes. Essa pressão foi responsável por uma sequência de revoltas, como o caso do então governador Francisco de Almeida que suportou a permanência no cargo por apenas dezoito meses (1593 a 1594), justificando seu retorno à Corte em função das pressões dos sobas e dos jesuítas. Os chefes mbundu por um lado exigiam do então governador maior autonomia para negociar escravos junto aos comerciantes, e os religiosos não queriam intromissão em seus negócios e contratos.

Seu sucessor Jerônimo de Almeida, que era irmão do ex-governador, também padeceria com a retinência dos chefes de Quissama. Pensando na necessidade de articulações políticas, o novo governador buscou uma trégua com os jesuítas e convocou os capitães mores responsáveis pelos presídios dos sertões, atitude direcionada para as oportunidades prometidas pela prata de Cambambe e na necessária passagem por Quissama.

Apesar de todo seu pragmatismo, mais um fracasso retumbante barraria o projeto dos portugueses. Em uma nova tentativa de atravessar o rio Kwanza três sobas rebeldes de Quissama atacaram a expedição e, ainda que o governador contasse com quatrocentos infantes e vinte e um cavalos, esse efetivo não foi suficiente para derrotar os sobas. De acordo com o documento produzido por J. C. Feo Cardozo A História dos governadores e capitães generais de Angola, desde 1576 até 1825 e a descrição geográfica e política dos reinos de Angola e Benguela, “não foi este poder bastante a sujeitá-los, porque quando os atacavam, se recolhiam a uns matos tão impenetráveis de espessos”. Os portugueses não deixaram por menos: incendiaram as moradias da população que reconhecia as autoridades das chefias rebeldes, caracterizando os incêndios como uma forma de punição exemplar transformada em espetáculo, que tinha como objetivos óbvios propagandear sua força bélica e amedrontar sobas insubordinados.

Um dos mais poderosos sobas de Quissama era Cafuche Cambare, líder que manteve sua oposição às investidas de Jerônimo de Almeida. J. C. Feo Cardozo analisa os feitos do soba Cafuche Cambare como uma “desgraça” para os portugueses, isso de forma coerente à uma narrativa de exaltação dos feitos portugueses, evidenciando quase uma indignação com a derrota das tropas para um “mero” chefe africano.

Esse e outros registros históricos procuraram desenhar uma outra história, onde o papel das lideranças africanas aparece mitigado, por vezes reprovado. Algum tempo depois de sua vivência os sobas se veriam personagens de outra batalha, envolvendo sua memória.

Outra fonte produzida em finais do século XVIII pelo militar português Elias Alexandre Corrêa, intitulada História de Angola, também analisa os feitos dos portugueses na África Centro Ocidental desde seus primeiros contatos com as chefias do reino do Congo, mantendo o mesmo caráter de exaltação típico das memórias setecentistas que se dedicavam às descrições dos feitos portugueses em seu vasto e heterogêneo Império Ultramarino. Nas palavras de Elias Alexandre a vitória do soba Cafuche Cambere, soberano das terras de Quissama, foi produto do uso de armadilhas naturais chamadas barrocas – espécie de grotas utilizadas pelo chefe para esconder sua “gente de arma” pronta para os ataques, e que também serviu de abrigo para “concubinas e filhos de seus subordinados”. Somente por isso a rebeldia dos sobas não teria sido aniquilada pelas tropas portuguesas e impedido a conquista dos objetivos metalistas do século XVI.

Os sobas de Quissama aparecem nas fontes, até finais do século XVIII, como os maiores opositores às conquistas portuguesas, como bárbaros e violentos, rebeldes e insubordinados, que mais obstáculos impuseram aos interesses da Coroa e seus projetos para a conquista e interiorização de Angola.

A despeito do que faziam crer as fontes portuguesas, os chefes mbundu foram protagonistas nos processos que conduziram à interiorização dos portugueses em Angola, assim como gerenciaram o fornecimento de escravos destinados ao comércio Atlântico. Os sobas imprimiram suas marcas nas relações com as autoridades metropolitanas, e que souberam valer-se das alianças e travar conflitos.

Graças aos senhores do sertão naquele pedaço da África, as conquistas da Coroa portuguesa nos sertões do antigo Ndongo se mantiveram instáveis por todo os séculos XVI e XVII.

Bibliografia Básica

BIRMINGHAM, David. Alianças e conflitos. Os primórdios da ocupação estrangeira em Angola. 1483-1790. Luanda, Arquivo Histórico de Angola / Ministério da Cultura, 2004.

CORRÊA, Elias Alexandre. História de Angola. 3 Volumes. Lisboa: Clássicos da Expansão Portuguesa no Mundo. Império Africano. Série E, 1997.

HEINTZE, Beatrix. Angola nos séculos XVI e XVII. Estudos sobre fontes, métodos e História. Luanda: Ed: Kilombelombe, 2007.

MILLER, Joseph. Poder político e parentesco. Os antigos Estados mbundu em Angola. Luanda: Arquivo Histórico Nacional / Ministério da Cultura, 1995.

TORRES, J. C. Feo e. Memórias contendo a biografia do vice-almirante Luiz da Mota Feo e Torres. A História dos governadores de Angola desde 1575 até 1825 e a descrição geográfica e política dos reinos de Angola e Benguela. Paris: Fantin Livreiro, 1825.

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