Revista Impressões Rebeldes

Depois da devassa

A Inconfidência Mineira deixou sinais de alerta nos ares de Minas Gerais. Foi preciso mudar a configuração político-administrativa da capitania para evitar novos perigos

Igreja de Santo Antônio em São José del Rei (hoje Tiradentes), na Comarca do Rio das Mortes, região que concentrou maior número de sentenciados no inquérito. Imagem: Marinelson Almeida/WikiCommons

Pablo Menezes e Oliveira

Graduado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. É professor do Instituto Federal de Minas Gerais. Foi um dos organizadores do livro “As Minas e o Império: dinâmicas locais e projetos coloniais portugueses”

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Muito já foi dito sobre o movimento sedicioso que conhecemos como Inconfidência Mineira, denunciado às autoridades metropolitanas em princípios de 1789. Em março daquele ano, o então governador da Capitania de Minas Gerais, Luiz Antônio Furtado de Mendonça, o Visconde de Barbacena, recebeu de um informante uma grave notícia: arquitetava-se, dentro da capitania, um plano para libertar Minas do jugo português. Entre os envolvidos havia burocratas, homens de letras formados em universidades europeias, clérigos, militares, fazendeiros e mineradores que habitavam diferentes regiões da Capitania. A partir da denúncia, desencadeou-se um processo judicial, ou “devassa”, que resultou na punição de um grande número de implicados. Antes mesmo do encerramento desse processo a que os inconfidentes foram submetidos, ocorrido em 1792 com a execução das penas, há indícios de que Coroa procurou “remediar” os possíveis danos causados pela Inconfidência. 

Uma vez denunciada a conjuração, o governador mostrou grande preocupação de que os povos de Minas tivessem sido “seduzidos” pela tentativa de sublevação arquitetada pelos rebeldes. O Visconde de Barbacena acreditava que a suspensão da derrama não havia sido suficiente para que os moradores de Minas abandonassem a ideia de desmembrar-se do Império português. Eram necessárias outras medidas que pudessem fazer com que a população, especialmente aqueles que tiveram contato com as ideias proferidas pelos inconfidentes, fosse conservada debaixo da fiel sujeição régia. Esta constatação fica expressa em ofício remetido por Barbacena ao Ministro Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar entre 1770 e 1795, em junho de 1789:

os ânimos pervertidos já eram muitos; os interesses, sentimentos, e desejos, eram os mesmos; e o intento seria público brevemente pelas sementes que o alferes tinha espalhado nesta villa e na estrada do Rio de Janeiro, e o vigário nas villas de São Jozé e de São João de EL REY, as quais haviam de vegetar e produzir a seu tempo (OFÍCIO do Visconde de Barbacena a Martinho de Melo e Castro…, 1789). 

A resposta de Melo e Castro foi feita por meio de minuta. O documento, depois de fazer algumas considerações sobre a Inconfidência, tinha o objetivo de alertar sobre os perigos que as “sementes” deixadas por alguns inconfidentes nas paragens de Minas representavam. Segundo o Ministro: 

o mesmo vigário de São Jozé, Carlos Correia de Toledo, que entre os seus consórcios se considerava o mais poderoso em ter grande número de habitantes do Rio das Mortes à sua devoção e do qual se asseverava nas assembléias e o sargento mor Luiz Vaz, rebeldes, que assim [ele], como seu irmão haviam falado a muita gente da freguesia de São Jozé, da Borda do Campo e do Distrito de Tamanduá, e que toda ela[?] estava prompta a entrar no levante. (AHU. Caixa.: 129, Documento: 11).

O que chama a atenção nos dois documentos citados é a menção a localidades que faziam parte da Comarca do Rio das Mortes. Dos vinte e quatro sentenciados pela Coroa, quatorze estavam estabelecidos nesta Comarca, região que experimentava grande crescimento econômico desde meados até fins do Setecentos, tendo nas atividades agrícolas sua principal fonte de receita. Do total de bens pertencentes aos inconfidentes, que deveriam ser confiscados pelas autoridades, 90% pertenciam aos moradores da Comarca do Rio das Mortes. Não seria fortuito que a região recebesse maior atenção no desencadeamento de medidas que pudessem mitigar potenciais efeitos causados pelos discursos proferidos pelos inconfidentes naquela localidade.

Para o ministro, a primeira medida a ser adotada era que se instalasse nas Minas um regimento militar confiável, visto que entre os conspiradores constavam oficiais militares de tropas pagas e auxiliares da Capitania de Minas Gerais. Postas estas ordens mais urgentes, dizia o Ministro Melo e Castro: 

Observe que enquanto subsistirem os abusos e reclamações declaradas nos diferentes pontos que formam o corpo das ditas Instruções, sempre o sossego desses habitantes será precário e sujeito a alterações e distúrbios, que poderão ter por fim perniciosas e funestas consequências. (AHU/APM. cx.: 129, doc.: 11) 

Ao produzir este documento, Melo e Castro defendia que a situação da Capitania, ou a sua ruína, decorria da desordem da região. Enquanto persistissem nas Minas abusos e reclamações dos povos em matérias da administração e da justiça, o sossego sempre seria precário, problema que deveria ser corrigido por Visconde de Barbacena. Como meio de aplicar a justiça sem morosidade nem extorsão, diminuindo as reclamações dos povos das Minas, Barbacena propôs a fundação de novas municipalidades na região. Instituições seculares que se encontravam na base da organização administrativa do Império português, concentravam um grande número de atribuições, como a regulação do abastecimento local, a organização da urbes, e principalmente, permitiam uma comunicação política direto com a Coroa.

Durante sua permanência na capitania, entre os anos de 1788 e 1798, o governador criou três novas Vilas, todas localizadas na Comarca do Rio das Mortes: Vila de Tamanduá, Real Vila de Queluz e Vila de Barbacena. 

No ano de 1790 foi criada a décima primeira vila de Minas, no Arraial de Nossa Senhora dos Carijós, que a partir de então tornou-se Real Vila de Queluz. Localizada no Caminho Novo, que conectava Minas ao Rio de Janeiro, era uma região que tinha nas atividades agropastoris sua principal ocupação. No documento produzido para justificar a criação da Vila,  dirigido ao governador Visconde de Barbacena, assim se expressaram os camaristas para justificar a sua petição: 

expõem reverentemente os moradores das freguesias de Nossa Senhora da Conceição dos Carijós, e de Congonhas do Campo, e de Santo Antônio da Itaberaba, que formando todos huma povoação conjunta de quase vinte mil pessoas com suficientes fundos, propriedades e terras incultas, e distante das vilas de São José, São João, Vila Rica e Mariana por onde são demandados mais de quinze, vinte e trinta léguas, por ásperas serras, caminhos solitários, paragens de Rios, sem que a justiça possa amparar prontamente os órfãos e viúvas pobres, nem defender a tranquilidade pública de alguns facinorosos, e salteadores (AHU/APM. cx.: 136, doc.: 43)

Pelo que se pode depreender da representação dirigida ao governador, os moradores do Arraial dos Carijós, unidos aos que viviam em paragens próximas, acreditavam que, com o crescimento populacional da região, não se justificava sua subordinação à outra vila, distante muitas léguas da região. Tal distância, inclusive, era motivo de problema para estes, na medida em que a justiça não era aplicada de forma adequada, o que permitia que alguns crimes permanecessem sem punição. 

Aceitas as alegações feitas pelos moradores de Carijós, em 19 de setembro do ano de 1790, Barbacena erigiu em vila a localidade, tornando-a Real Vila de Queluz. Ao dotar uma paragem localizada na Comarca do Rio das Mortes de um aparato administrativo de grande importância, Barbacena tentava, a um só tempo, resolver o problema da aplicação da justiça no arraial, como também afirmava os laços da Coroa portuguesa com os homens bons (homens que detinham uma reputação social destacada, fruto de riquezas, e com ela podiam ocupar cargos na vereança das câmaras municipais) da região, instalando na localidade uma estrutura política que desse voz às suas necessidades. 

No ano seguinte, outra vila seria criada, agora no Arraial de Igreja Nova da Borda do Campo, localizado no caminho novo, também uma região conectada com as atividades agropastoris. Era o local em que José Aires Gomes, um dos inconfidentes sentenciados, acumulava uma vasta fortuna. Seus moradores já vinham solicitando o direito de transformar a localidade em vila desde o ano de 1773, mas só teriam seu pedido atendido no ano de 1791, dando a ela o sugestivo nome de Vila de Barbacena, em solenidade ocorrida no dia 14 de agosto do mesmo ano. As justificativas coincidem bastante com aquelas apresentadas na fundação da Vila de Queluz:

tendo consideração a grande distância que há do dito arraial, e sua freguesia a Vila de São José, e das do mato a de São João de El Rey, a cujos termos pertencem a que em parte excede em trinta léguas resultando daqui não só o inconveniente dos particulares irem tratar a aquelas vilas os seus negócios forenses com difíceis e incômodas jornadas, mas com a maior de serem muitas vezes obrigados a deixarem suas ações, e direitos de temerem as avultadas despesas que devem fazer com os salários de caminhos dos oficiais de justiça maiores em muitas que o principal do negócio (Autos de criação da Villa de Barbacena, 1896, p. 122).

Para além da fundação da Vila, o governador atendia novamente, com seu ato, à solicitação de uma paragem que cresceu economicamente a partir de meados do século XVIII, e comportava homens como José Aires Gomes. Com isso,  Barbacena dava voz a uma elite que, crescendo economicamente, queria ter expressão política, mostrando uma similaridade muito grande com o caso da Vila de Queluz.

Entretanto, ficam algumas questões: por que outras paragens que, ao longo do século, solicitaram a criação de uma vila não foram bem-sucedidas? Se o problema era resolver a questão da aplicação da justiça nas regiões em foco, por que não fundar apenas julgados, que eram instâncias locais de aplicação da justiça, solução utilizada por governadores anteriores para resolver problemas desta natureza? Por que Barbacena tomou a decisão de fundar novas vilas em Minas, apesar da resistência que a Coroa tinha em conceder tal mercê, visto que em vários casos as câmaras foram contrárias às muitas resoluções metropolitanas, questionando-as? Creio que a Inconfidência Mineira pode oferecer subsídios para entender a situação. 

Ao apresentar os casos das Vilas de Queluz e Barbacena, conseguimos observar as encruzilhadas políticas no apagar do século XVIII. A região do Rio das Mortes havia crescido econômica e demograficamente desde meados dos Setecentos. Não obstante a importância que alcançaram, ainda eram arraiais, portanto dependentes politicamente de outras vilas. Por tal motivo, consideravam-se no direito de reivindicar a mudança de seu status político, o que poderia ser feito com a fundação de uma nova vila. 

Insatisfeitos com a sub-representação política em que se encontravam, poderiam embarcar em projetos políticos que melhor lhes representasse, numa conjugação de interesses pessoais, de terem suas localidades tornadas vilas, com projetos de um tempo em que o jugo colonial era questionado em várias partes da América, a exemplo da América Inglesa, que se tornou independente alguns anos antes. Isto ajuda a explicar os motivos pelos quais importantes homens destas localidades haviam se envolvido diretamente na Conjuração Mineira de 1789, tentativa de desmembrar a Capitania de Minas do restante do Império. Resolvidos os problemas relativos a este evento, era hora então de rever essa posição de sub-representação política de algumas localidades, notadamente aquelas onde estavam instalados os envolvidos na Inconfidência, ou onde exerciam grande influência. E, por tal motivo, havia na fundação daquelas vilas, uma tentativa de reacomodação dos interesses dos homens bons, que há tempos solicitavam o direito de fazer parte da estrutura da administração do império português.

Este processo de reorganização da administração da Capitania nos permite observar o impacto que a Inconfidência Mineira causou nas autoridades metropolitanas. Ao lado do suplício imposto a Joaquim José da Silva Xavier, mostrando a centralidade da justiça, era necessário reforçar os laços da Coroa com os homens bons da Capitania. Era hora de (re)equilibrar as dinâmicas de poder do Império português.

Bibliografia Básica

ANASTASIA, Carla Maria Junho. A lei da Boa Razão e o novo repertório da ação política nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2002.

FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil – Portugal, 1750-1808. São Paulo: Paz e Terra, 1995. 

OLIVEIRA, Pablo M. Uma Capitania em transformação: a formação de vilas e a evolução administrativa e sócio-econômica das Minas Gerais (1711-1791). Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2005. [dissertação de mestrado]

Fontes Impressas

Autos de criação da Villa de Barbacena na Comarca do Rio das Mortes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano 1, 1896, fascículo 1º.

OFÍCIO do Visconde de Barbacena a Martinho de Melo e Castro enviando as informações sobre a conjuração de Minas, indicando os primeiros implicados no movimento. Vila Rica, 11 de junho de 1789. Anuário do Museu da Inconfidência, v.II.

Fontes Primárias

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Caixa: 129, Documento: 11.

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Caixa: 136, Documento: 43

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Como Citar

Pablo Menezes e Oliveira, "Depois da devassa". Impressões Rebeldes. Disponível em: https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/depois-da-devassa/. Publicado em: 17 de abril de 2025. ISSN 2764-7404

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