Revista Impressões Rebeldes

ASSUADAS NA AMAZÔNIA COLONIAL

A disputa pela administração da mão de obra indígena causou uma série de conflitos, inclusive a expulsão de padres jesuítas por moradores e autoridades militares da capitania do Caeté.

Planta da vila nova de Bragança, detalhe do Mapa dos rios Guajará e Cayté. Original manuscrito de E. Galuzzi, do Arquivo Histórico do Exército (Rio de Janeiro, 1754) – Fonte: REIS, N. Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial, p. 280.

Leonardo Augusto Ramos Silva

Leonardo Augusto Ramos Silva é formado em História pela UFPA, autor da monografia “Entre conflitos e tramas: protagonismos indígenas na sublevação do Caeté (1736-1749) e mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia pela mesma Universidade.

Em meados do século XVIII, alguns motins agitaram a Capitania do Caeté, no Estado do Maranhão e Grão-Pará, na região entre a vila Souza e o aldeamento de São João Baptista, ambos à margem direita do rio Caeté. A capitania, que é pouco conhecida, foi doada ao ex-governador geral do Brasil, Gaspar de Souza, por Felipe III de Portugal em 1622, como recompensa pela expulsão dos franceses.

Revoltas e tumultos ocorridos em 1736, 1738 e 1741 – a última de maior proporção e de natureza antijesuítica – foram provocadas pelos atritos entre autoridades civis, militares, religiosas e indígenas em relação à jurisdição do governo dos índios. Dois jesuítas daquele Aldeamento, Bernardo Aguiar e Miguel Pereira, foram considerados o grande obstáculo para o acesso dos moradores aos serviços dos indígenas, uma vez que eram responsáveis pela administração temporal e espiritual dos aldeados – como dito no Regimento das Missões de 1686. Os padres tornaram-se alvo das ações dos grupos amotinados na capitania.

As primeiras tensões tiveram início em 1736 quando ocorreu a transferência da câmara, igreja e das casas dos moradores da Vila Souza para as proximidades do Aldeamento de São João Baptista feita, principalmente, pelo loco-tenente Manoel Ferreira da Silva e Albuquerque que substituía e executava as atribuições e ordens do capitão-donatário do Caeté, José de Melo e Souza. Instalados próximos da Aldeia cresce entre alguns colonos o ódio contra os impedimentos dos padres missionários que, apesar de não serem contra a escravização, não lhes concediam os índios da Aldeia. A percepção dos índios em relação à mudança, por sua vez, era também de que havia ali um “prejuízo […] a aldeia vizinha da vila”, por esta ter ficado mais próxima, de acordo com o parecer do conselheiro Rafael Pires Pardinho, de 23 de fevereiro de 1747 (Arquivo Histórico Ultramarino, Pará, Caixa 29, doc. 2747), ameaçando as suas terras e provocando inúmeros problemas resultantes das relações com os moradores que buscavam tirar proveito do trabalho compulsório.

Apesar dos episódios de 1736 e 1738 terem as mesmas motivações, é em 1741 que as revoltas pela questão da administração indígena aumentam sua gravidade. Um dos conflitos desse ano emblemático ocorreu no terreiro da Igreja do Aldeamento por meio de um grande tumulto. Na ocasião, o loco-tenente Manoel Ferreira e um grupo armado se dirigiram até o local com o objetivo de prender o índio Principal da missão – cargo administrativo ocupado por chefes indígenas e instituído pela coroa lusitana na Amazônia portuguesa. Cercando-o à porta da Igreja, o loco-tenente pediu ao índio Clemente Cardoso que passasse sua patente de Principal a Miguel Acará, índio aliado às autoridades militares, e que além disso nomeasse Francisco da Silva – vereador e líder que convocou os moradores a expulsarem os padres missionários – para o cargo de Procurador dos índios. A ação provocou reação dos índios aldeados. Nomear um aliado para o cargo de Principal era parte fundamental da estratégia engendrada pelo grupo que se opunha aos jesuítas na medida que tal mudança possibilitava controlar a administração e repartição dos índios destinados aos serviços dos moradores, como suas roças, pescas e coleta das “drogas do sertão”, condições estabelecidas pelo Regimento das Missões de 1686.

 

Mapa da Capitania do Caeté – Fonte: RAMOS SILVA, Leonardo Augusto (2018)

 

A resistência à pressão logo se instaurou. Os índios não só não reconheciam Miguel Acará como seu representante como também os padres não viam legitimidade na troca por considerarem que Clemente Cardoso “herdou aquele governo de pais, e avós, como os índios são tais que não querem conhecer superioridade” como consta na carta de 25 de outubro de 1745 do provincial da Companhia de Jesus de Belém do Pará, padre José de Sousa (AHU, Pará, Caixa 28, doc. 2632). Na disputa pelo cargo, tanto o aliado dos jesuítas quanto o aliado dos moradores demonstram que os indígenas estavam presentes nos jogos de poder locais.

Outro episódio que reforçou tensões foi quando houve o açoitamento do meirinho local, em praça pública, no pelourinho que se levantou na nova sede da vila. As ordens para tal ato teriam partido, mais uma vez, de Manoel Ferreira que convocou alguns moradores e seus escravos para castigar o índio Eugênio, sob a acusação de que ele fizera denúncias contra a transferência da vila sem comunicação com as autoridades coloniais e metropolitanas. Além do meirinho, foi açoitada a índia mameluca Eugênia, conhecida como “a viúva honesta” e outros índios mais “abalizados”.

Após o açoitamento público, o temor pelo castigo tomou conta dos índios aldeados e uma fuga em massa foi orquestrada. No Apirá, lugar localizado a três dias de viagem pelo litoral da capitania no sentido leste, se estabeleceu um núcleo habitacional com casas, roças e lavouras que mais tarde acabariam destruídas por duas expedições armadas formadas na tentativa de trazer de volta para a missão os índios que escaparam.

Passados alguns meses da fuga em massa, Francisco da Silva tornou-se procurador do povo durante aquele ano de 1741, e foi o principal reivindicador das queixas e “clamores” dos moradores à câmara da vila. Na noite do dia 23 de novembro, ele convocou filhos, genros e alguns moradores para expulsar os jesuítas. Segundo a carta de Francisco Raimundo de Morais Pereira, ouvidor-geral do Maranhão, na madrugada do dia 24 de novembro o aldeamento foi invadido pelos moradores “armados com espingardas, facas de matos, espadas, e outras armas, gritando ali ao povo” (AHU, Maranhão, Cx. 28, Doc. 2927 – Carta de 01/12/1745).

Da residência cercada, saíram os jesuítas Bernardo de Aguiar e Miguel Pereira, responsáveis pela missão e alvo das contestações locais. Deixando a casa sob insultos dos moradores, eles foram levados “violentamente para o porto e fizeram embarcar em uma canoa sem mais preparo […] indo sem chapéus, nem capas, nem mantimentos, nem redes, que são as camas de que se usam no país, e desta forma foram conduzidos por vários moradores armados” como dito na carta de 1 de dezembro de 1745 do ouvidor Francisco Raimundo (AHU, Caixa 28, doc. 2927).

Após a assuada , o loco-tenente Manuel Ferreira e o vigário da vila, Francisco Dias Lima, tomaram posse da Igreja de São João Baptista e da casa dos padres. A partir de então as duas autoridades passaram à sacristia para fazer o inventário dos bens da igreja. O padre Francisco Dias teria arrombado o cadeado de uma das casas dos missionários para poder morar e Manuel Ferreira teria nomeado para ocupar os ofícios locais de meirinho e de escrivão da igreja dois moradores que participaram da assuada, além de convocar mais quatro homens para proteger o vigário.

Com a expulsão dos principais nomes que não atendiam às demandas dos moradores nas repartições, os colonos consolidaram a estratégia de usar a força de trabalho indígena sem o controle da administração jesuítica, juridicamente estabelecido pelo Regimento das Missões de 1686.

A partir dos autos de devassa feitos pelo ouvidor do Maranhão, Francisco Raimundo de Moraes Pereira, é possível acompanhar os desfechos da sublevação do Caeté de 1741, o crime de “assuada” e os sindicantes acusados. Manoel Ferreira foi considerado o principal mentor da expulsão, juntamente com o vigário da vila, Francisco Dias Lima. O primeiro por pretender o poder temporal, o segundo interessado no poder espiritual sobre os índios, possibilitado pela retirada dos missionários de cena. O capitão-mor Felix Joaquim foi tirado da sua residência antes mesmo que se realizasse a devassa; foi preso e enviado para Portugal em 1749. Quanto aos vereadores e moradores envolvidos nos conflitos, como Francisco da Silva, Domingos Borges e José Quinterio da Costa, foram presos na cadeia da cidade de São Luís no Maranhão.

Por fim, o ouvidor destaca na devassa que, de acordo com a maior parte dos depoimentos das testemunhas e sindicantes, os padres missionários Miguel Pereira e Bernardo de Aguiar “que tem sido daquela aldeia, sempre deram índios aos moradores, que não houve queixa deles” (AHU – Maranhão, Cx. 28, Doc. 2927 – Carta de 01/12/1745). Descobre-se então que as queixas foram forjadas e os principais autores foram o Capitão-mor Felix Joaquim e o Loco-tenente Manoel Ferreira. A petulância com que foram feitas as denúncias e, no reino, produzidos os requerimentos ao Conselho Ultramarino pelo porteiro-mor e donatário, José de Melo e Sousa, com o intuito de se tirarem os padres da Companhia de Jesus da missão é destacada no processo. O governador João de Abreu conclui que tanto os moradores quanto os jesuítas haviam “produzido mais que requerimentos, e papéis apaixonados e odiosos de uma e outra parte” (AHU/Pará, Cx. 25, Doc. 2323 – Carta de 22/10/1742).

Assim se dava o jogo multifacetado entre índios principais, autoridades militares, moradores, jesuítas e índios aldeados pelo trabalho dos indígenas, o então “motor” da história da Amazônia colonial.

A Sublevação do Caeté reflete esta disputa, e revela os indícios das necessidades, descontentamentos e agitações do povo amotinado e socialmente organizado, sobretudo na experiência marcada pela rebeldia e formas de protesto que redefiniram as dimensões da política indigenista, da escravidão indígena e das revoltas na Amazônia dos setecentos.

Bibliografia Básica

CHARLET, Eliane Cristina Soares. Autoridades em construção: conflitos e alianças nas fronteiras bragantinas. Século XVII e XVIII. In: 6º Encontro Internacional de História Colonial. Mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e identidades. Anais Eletrônicos do 6º Encontro Internacional de História Colonial, Salvador: EDUNEB, 2017, p. 138-139.
OLIVEIRA, Luciana de Fátima. Projetos de consolidação de um território: da vila de Souza do Caeté à vila de Bragança: 1740 – 1760. 2008. 173 f. Dissertação (Mestrado) da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás, 2008.
RAMOS SILVA, Leonardo Augusto. Entre conflitos e tramas: protagonismos indígenas na Sublevação do Caeté (1736 – 1749). 2018. 129 f. Monografia (graduação) da Faculdade de História, Universidade Federal do Pará, Bragança, 2018.
_______. Os índios principais na Sublevação da capitania do Caeté (1741 – 1745). Manduarisawa – Revista Eletrônica Discente do Curso de História da UFAM, [S.l.], v. 2, n. 2, p. 99-122, out. 2018. ISSN 2527-2640. Disponível em: <http://periodicos.ufam.edu.br/manduarisawa/article/view/4393>. Acesso em: 18 jul. 2019.

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