Imagine um líder quilombola lutando contra senhores de escravos e tropas imperiais na primeira metade do século XIX. Seu nome? Malunguinho. E em 1827, o governo da província de Pernambuco colocou sua cabeça a prêmio, na maior operação contra quilombolas na região, desde a destruição de Palmares, em 1695. O centro do quilombo de Malunguinho ficava num lugar conhecido por Cova da Onça, no interior da floresta do Catucá, que começava na saída das cidades gêmeas de Recife e Olinda e serpenteava por entre os engenhos da zona da mata norte até a vila de Goiana, já na fronteira com a Paraíba.
Como se sabe, onde havia escravidão no Brasil havia fugas, tanto individuais como em grupo. Mas um quilombo de verdade é uma comunidade com um mínimo de estabilidade, exigindo para isso grande capacidade de organização e adaptação. Nos anos 1820/30 do século XIX, Pernambuco já não era a mesma capitania da época do quilombo de Zumbi. Na zona da mata havia mais de 400 engenhos de açúcar e a população da província era de quase meio milhão, sendo que uns 50 a 60 mil moravam no eixo urbano do Recife e Olinda. A vigilância também era maior, a repressão aos escravizados mais eficiente e o avanço da agricultura sobre as matas virgens, apropriadas para esconderijo, dificultava muito a vida dos fugitivos.
Apesar disso, a conjuntura política facilitou as fugas entre 1817 e 1824. A razão é simples: toda vez que a classe senhorial estava desunida, os quilombos se fortaleciam. Palmares, por exemplo, dificilmente teria crescido tanto sem os 24 anos de lutas (1630-1654) contra a invasão holandesa, que esgotaram os recursos e a capacidade repressiva dos senhores de escravizados. Algo parecido aconteceria durante o processo de Independência em Pernambuco, que foi muito violento e que começou com a Revolução de 1817, que chegou a tomar o poder por 74 dias contra a coroa lusitana que se mudara para o Brasil em 1808. O movimento republicano provocou uma reação brutal da corte, que chegou a executar padres, algo inédito na história da América portuguesa. As tropas imperiais marcharam desde Alagoas, tomaram o Recife e Olinda e prosseguiram até a zona a mata norte, onde muitos proprietários rurais haviam aderido a 1817. Essa luta facilitou a fuga de cativos tanto urbanos como rurais para as matas do Catucá.
Os atritos recomeçariam a partir da Revolução do Porto, que anistiou os rebeldes sobreviventes de 1817 e permitiu a eleição de juntas de governo locais. O governador régio no Recife formou uma junta. Os anistiados outra, em Goiana, resultando em vários combates na zona da mata norte facilitando as fugas, de tal forma que o quilombo logo se tornou um dos assuntos principais das reuniões das juntas de governo que fizeram algumas operações contra os quilombolas, uma das quais envolvendo mais de 200 soldados.
Feita a Independência, em fevereiro de 1823, houve um grande motim no Recife, liderado por um oficial pardo, o capitão Pedro Pedroso, que soltou os quilombolas presos, que voltaram para as matas. Os atritos continuaram, pois o golpe de Estado de Pedro I, que fechou a Assembleia Constituinte em novembro de 1823, não foi aceito pacificamente em nenhum lugar do Brasil. Em Pernambuco, a volta dos deputados pernambucanos e das tropas que foram lutar na Independência da Bahia resultou na eleição de uma nova junta de governo, liderada por um rebelde de 1817, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, que se tornou o principal líder da oposição ao golpe de Estado do imperador nas chamadas “províncias do norte”. Os quilombolas, nessa época, estavam atacando os engenhos “diariamente”, segundo uma autoridade nas proximidades das matas.
O governo imperial não aceitou a eleição de Paes de Andrade, bloqueou o porto do Recife e, como em 1817, desembarcou tropas em Alagoas. Em julho de 1824, a junta de governo finalmente rompeu com a coroa, decretando a Confederação do Equador. Tal como em 1817 tentaram, porém com menos sucesso, a adesão de outras províncias contra Pedro I, o único protagonista do jogo da Independência a dispor de recursos para montar um exército e uma marinha. Tal como em 1817, o movimento de 1824 foi esmagado com brutalidade. Nem padres foram poupados. A guerra facilitou mais uma vez as fugas dos engenhos e do Recife e Olinda para as matas do Catucá na zona da mata norte.
O governo militar que se instalou no Recife notou o crescimento do quilombo. Frei Caneca foi executado em janeiro de 1825, em abril o comandante das tropas imperiais, o brigadeiro Francisco de Lima e Silva (1787-1855), pai do futuro duque de Caxias, foi “bater” o Catucá com todos os efetivos utilizados para derrotar a Confederação do Equador. A operação reuniu as tropas enviadas do Rio de Janeiro, os índios de Jacuípe, exímios conhecedores da Mata Atlântica e de proprietários rurais interessados na captura dos quilombolas. Muitos dos fugitivos foram mortos e capturados, porém não conseguiram destruí-los, pois havia gente da região que os avisava da movimentação das tropas. Eles então se escondiam nos mangues e grutas, iam para as vilas ou até para os engenhos, cujos escravos eram seus aliados.
Em 1826, os ataques chegavam a alguns dos atuais subúrbios do Recife. O governo provincial reconheceu então a necessidade de combater os “negros fugidos amucambados nas matas próximas a essa cidade” e disponibilizou recursos para as operações. No ano seguinte, 1827, chegou ao governo a notícia de que os quilombolas estavam se preparando para atacar o próprio Recife. É nessa reunião que aparece pela primeira vez o nome do principal líder quilombola, Malunguinho. Pela sua captura ou morte foi oferecido 100 mil-réis, e 50 mil-réis pelos fugitivos Valentim e Manuel Gabão, também do Catucá. A prisão de outro quilombola qualquer valia 20 mil-réis. A recompensa por Malunguinho foi a maior quantia proposta pela captura de alguém vivo ou morto em Pernambuco até a Cabanada (1832-35), quando a cabeça do líder cabano Vicente de Paula passou a valer um conto de réis (equivalente a um milhão de réis).
As tropas partiram de diferentes pontos para cercar o Catucá e impedir a fuga. Centenas de soldados, índios armados e tropas particulares, avançaram mato adentro, saindo simultaneamente de Olinda, Recife, Goiana e outras vilas do interior de Pernambuco. Sob as ordens do comandante das armas da província, Francisco José Martins, foram capturados 63 escravizados e um número não contado morreu. Além de muitas baixas entre os oficiais, com vários aleijados pelas armadilhas dos rebeldes. O próprio chefe da ação reconheceu que “a maior parte fugiu” e que voltaria assim que saíssem da floresta. Ele confirmou que havia encontrado “casas”, além de muitas lavouras, que tratou de destruir antes de se retirar. Essa referência a casas mostra que houve oportunidade para constituírem uma vida sedentária e comunitária. A repressão, no entanto, tornaria mais difícil essa fixação e a prática de uma agricultura mais variada que a da mandioca.
Apesar dessa operação de 1827, e de outras menores em 1828, os quilombolas continuaram a agir e assustar os senhores de engenho. Sabia-se que tinham apoio de muita gente e que Malunguinho continuava vivo. Em 1829, o presidente da província resolveu dar uma solução definitiva ao que chamou de “Palmares do Catucá” e começou a formar um exército de mais de 500 homens para bater as matas a partir de várias pontos visando novamente cercar os quilombolas. Tudo que nos restou sobre o fim do primeiro grande líder do Catucá foi um relato tosco e rápido do Presidente da Província autorizando o Comandante das Armas a pagar 200 mil réis aos “indivíduos da Partida exterminadora do Chefe Malunguinho”. Ao serem encontrados, estavam todos doentes, praticamente incapazes de resistir. Não há menção a prisioneiros.
Tal como aconteceu com Zumbi, os documentos sobre Malunguinho foram escritos por seus inimigos, mas seu próprio nome fornece algumas pistas. A expressão malungo era utilizada no Brasil, na Jamaica e no Haiti com o mesmo sentido: era a forma como se tratavam mutuamente as pessoas que vieram da África no mesmo navio negreiro. Tanto no Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, como no de Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, há duas formas: ma luga ou “companheiro”, do quimbundo, língua de Angola; ou ma lungo, isto é, “no mesmo navio”, do congolês. Robert Slenes aprofundou o estudo da etimologia e concluiu que malunga significa uma canoa grande, uma representação portanto, do navio negreiro. Joseph Miller deu uma outra explicação, nos Congo, as lungas eram estatuetas antropomórficas que representavam a fundação de um novo reino. Ma-lunga, no caso, era o plural de lunga. Ora, em várias tradições religiosas, a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos é líquida. Era assim entre os gregos antigos e também entre os povos do Congo. A canoa grande, portanto, atravessava essa fronteira da vida para a escravidão. Mas uma vez aqui, cabia aos malungos a fundação de um novo reino, quem sabe um de liberdade. O uso do diminutivo “inho”, por sua vez, revela um abrasileiramento do termo. O nome de Malunguinho, portanto, é uma recriação de uma palavra com implicações simbólicas profundas, pois compartilhar a travessia atlântica em um navio negreiro para quem sabe fundar um novo reino, não era uma experiência qualquer. O quilombo inclusive pode ter se originado de uma fuga de malungos.
Vale observar ainda que não raro, os próprios quilombolas eram referidos como malunguinhos. Ora, o nome do líder chegou às autoridades através de quilombolas torturados para entregá-lo. Talvez, portanto, para escapar da tortura, os fugitivos tenham se referido a uma entidade que protege seus seguidores. A Jurema é a mais brasileira das religiões, pois tem sua origem na pajelança indígena. Nela, nada se realiza sem a permissão de Malunguinho. Ele é o Rei das Matas. É ele que abre os caminhos. No Haiti, houve um líder quilombola do século XVIII, Makandal, que tomou o nome de uma entidade vodu já existente, incorporando seu poder. Como os quilombolas continuaram sendo chamados de malunguinhos depois da morte do primeiro grande líder do Catucá, talvez o seu nome fosse um título, uma forma de tratar o líder maior do Quilombo, que se identificava com uma entidade, possivelmente anterior a ele.
Se essa era esse o caso, o último Malunguinho, o rei das matas do Catucá, foi João Batista, morto em 1835 depois de mais uma grande operação contra os quilombolas. A sorte de João Batista foi selada com o fim da Cabanada, em 1835, quando foi possível deslocar centenas de soldados e índios, veteranos na luta contra os cabanos, entre Alagoas e Pernambuco, para acabar com o quilombo. Apenas dez pessoas escaparam, segundo o chefe de polícia da província, Nunes Machado. João Batista morreu e seu filho e sucessor, Vicente Ferreira, foi capturado. A prisão do herdeiro de Batista é um indício de que mesmo no fim eles conseguiram manter uma comunidade relativamente estável e hierarquizada. Embora as matas continuassem a servir de esconderijo, o quilombo esvaneceu com a morte de seu último grande lider, João Batista.
Malunguinho, todavia, continua vivo, abrindo caminhos e protegendo seus seguidores nas Mesas de Jurema, onde é evocado no começo das cerimônias. Ele é a única entidade nessa religião que pode se apresentar como Mestre, Caboclo e Exu. Um dos cânticos da Jurema, que colhi ainda no começo da década de 1990 merece atenção: “Malunguinho, portal de ouro/ Malunguinho, portal de espinho/ Cerca, cerca, Malunguinho/ Tira as estrepes do caminho.” Esse canto menciona claramente um artefato militar antigo e utilizado pelos quilombolas contra as tropas, as estrepes, que são paus pontudos fincados no chão, ou no fundo de armadilhas, para impedir o avanço de soldados ou da cavalaria. Muitos soldados enviados contra os malunguinhos se estreparam, literalmente.
Mas não é só na dimensão religiosa que Malunguinho está vivo, ele também está na lei número 13.298/07, ou Lei Estadual da Vivência e Prática da Cultura Afro Pernambucana, mas conhecida como “lei Malunguinho”. Seu primeiro artigo diz: “Fica instituída a semana do dia 18 de setembro como a Semana Estadual da Vivência e Prática da Cultura Afro-Pernambucana, como reconhecimento do resgate histórico do líder quilombola Malunguinho, morto em combate em 18 de setembro de 1835”. Essa data que marca o anúncio da morte do último líder do Catucá, João Batista. Em 2025, Malunguinho estará na Sapucaí, como tema da Viradouro, defendendo a diversidade religiosa e a luta do povo negro contra a escravidão.
(Este texto é uma versão atualizada de artigo publicado na Revista Nossa História, Rio de Janeiro: Ed. Vera Cruz, n.9, 2004, p.74-79)
Maravilhosa História !
Trabalho incrível, que bonito ver o resgate dos nossos heróis nacionais.
Emocionante relato de um período de lutas e violência, racismo e opressão. Viva o Rei Malunguinho e a jurema sagrada!