Revista Impressões Rebeldes

CERCO AOS MAGNATAS

A tentativa de arrendar a cobrança sobre o gado no sertão do Rio Grande do Norte colonial provoca uma reação em cadeia que a justiça local não seria capaz de resolver

Pintura que retrata a morte do padre Filipe Bourel, missionário da companhia de Jesus que atuou durante a guerra dos Bárbaros no Apodi. O mesmo local, anos mais tarde, seria palco da Revolta dos Magnatas. Século XVIII (terminus post quem 1709), óleo s/tela, sem assinatura, 110,5 x 133,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

Lívia Brenda da Silva Barbosa

Lívia Brenda da Silva Barbosa é mestra em História, autora da dissertação “Das ribeiras o tesouro, da receita o sustento: a administração da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1606-1723)” [UFRN, Natal, 2017]. Integra o Laboratório de Experimentação em História Social da UFRN (LEHS-UFRN) e trabalha no Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica (NUDOPH) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

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No ano de 1741, um evento ocorrido na ribeira do Apodi, na capitania do Rio Grande, gerou inquietação nos sertões da região e chamou a atenção das autoridades locais. Os moradores desta ribeira armaram-se e impediram a execução do contrato do gado do vento, uma forma de arrendamento a particulares que lhes possibilitava a cobrança de um tributo em nome do rei sobre todo gado criado solto (o contratador que encontrasse gado sem marcas do proprietário, poderia vendê-lo e reverter o valor para os cofres reais). O provedor da Fazenda Real do Rio Grande, Teotônio Fernandes Temudo, reclamou à Coroa sobre a suposta rebeldia. Para ele, a agitação teria causado sérios prejuízos a Fazenda Real.

Instaurou-se, assim, no sertão da capitania do Rio Grande, uma série de embates jurisdicionais entre a Câmara do Natal e a Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande quanto à resolução das questões ligadas ao levante. Afinal, os moradores da ribeira haviam expulsado o contratador do gado do vento, Lauriano Correa de Lira e “seus sócios”, e recusaram-se a permitir a execução do dito contrato. A movimentação causada por “magnatas” – termo encontrado na documentação para se referir aos principais e mais ricos moradores da ribeira do Apodi – foi considerada sediciosa pelos oficiais régios. O que à primeira vista parecia ser somente a recusa ao pagamento de um tributo por parte dos moradores, uma contenda contra a ação fazendária da Coroa nos sertões da capitania, escondia na verdade um complexo conflito que envolvia diversos interesses sobre a execução do dito contrato.

A origem do movimento esteve ligada à arrematação do contrato do gado do vento na ribeira do Apodi, ainda naquele mesmo ano de 1741, por Lauriano Correa de Lira, soldado da fortaleza do Rio Grande, sendo fiador Inácio Pereira de Sousa, que provinha da região do sertão do rio São Francisco. O fato de Inácio Pereira de Sousa e Lauriano Correa de Lira terem arrematado o contrato irritou um grupo de fazendeiros locais que também tinham interesses em receber ganhos sobre o gado do vento.

Este grupo de fazendeiros era composto pelos irmãos Pinto da Cruz: Antônio, Francisco e João Pinto da Cruz, naturais de Portugal de onde haviam migrado para a América portuguesa. No Estado do Brasil, fixaram-se nas Capitanias do Norte (Paraíba, Rio Grande, Ceará Grande e Pernambuco), onde conseguiram acumular riquezas por meio da criação do gado e galgar posições sociais, recebendo importantes patentes militares. Um dos irmãos, João Pinto da Cruz, era tenente coronel da cavalaria de ordenança do Apodi. Outro, Antônio, era coronel e morava em Boa Vista, no Recife. O último irmão, Francisco, era capitão-mor e vivia na ribeira do Jaguaribe, no Ceará.

Após a revolta desses “magnatas”, duas devassas foram instauradas para apurar os acontecimentos. Uma foi realizada pela Câmara do Natal, por meio do juiz ordinário Matias Simões Coelho, para apurar os roubos de gado ocorridos na ribeira do Apodi. A segunda foi executada pelo provedor da Fazenda Real para investigar o impedimento feito pelos moradores aos contratadores do gado do vento.

No início de 1742, quando as duas devassas haviam sido finalizadas, estava instaurado um impasse de grandes proporções. O provedor da Fazenda Real, Teotônio Fernandes Temudo, acusava Francisco Pinto da Cruz e seus irmãos pela liderança e mobilização dos moradores do Apodi contra a cobrança do gado do vento. Por outro lado, o juiz ordinário, Matias Simões Coelho, acusava Inácio Pereira de Sousa e os sócios do contratador do gado do vento de terem roubado gado na ribeira, causando o levante dos moradores. Nota-se o conflito de interesse de dois grupos: os irmãos Pinto da Cruz, amparados pela Câmara do Natal, e os contratadores, Inácio Pereira de Sousa e seus sócios, protegido pela Provedoria. Entre cartas e denúncias, o conflito opôs abertamente a Câmara do Natal e a Provedoria da Fazenda Real: os oficiais da Câmara e o provedor acusavam-se mutuamente de estarem acobertando um dos grupos.

Conjectura-se aqui, a partir da análise da revolta, que Lauriano Correia de Lira obteve o contrato por meio da intervenção de Bento Ferreira Mousinho. Sendo o filho do escrivão, Rodrigo Guedes Alcoforado Mousinho, um dos seus fiadores, é possível crer que, desde a arrematação do contrato, já existia um planejamento e o objetivo em adquirir gado excedente ao contrato. Do mesmo modo, os irmãos Pinto da Cruz também se utilizaram de mecanismos para defender seus interesses. Ao perderem naquele ano o direito de arrematar o contrato do gado do vento e ao se verem prejudicados com a perda da renda pela apropriação do gado por parte do contratador, os irmãos lideraram a revolta na ribeira com o apoio dos moradores contra Inácio Pereira de Sousa e seus sócios. Logo em seguida, eles acionaram a justiça ordinária e a intervenção da Câmara da cidade do Natal, que realizou a devassa acusando os contratadores pelos roubos na ribeira. Também se deve pensar que os oficiais da Câmara da cidade do Natal possuíam um interesse primordial em defender os irmãos Pinto da Cruz, pois os membros da instituição eram geralmente senhores fazendeiros donos de gado, mas sobretudo havia a intenção de se oporem aos planos do provedor da Fazenda Real, devido ao conflito que entre eles já existia.

O parecer da Coroa sobre os procedimentos contra os rebeldes veio somente em 1744. O conselho ultramarino concluiu que a jurisdição do caso competia à Fazenda Real e o provedor deveria proceder contra os culpados pela rebelião ocorrida no Apodi. Os juízes ordinários precisavam ser advertidos por terem contribuído para a perturbação da capitania. Na decisão, o capitão-mor Francisco Xavier de Miranda Henriques, que apoiou a ação da Câmara, deveria ser suspenso quatro meses do seu ofício, além de ser abreviado o tempo do seu governo. Os irmãos Pinto da Cruz foram considerados pela Coroa como criminosos. A Coroa reconhecia o direito e a validade dos contratadores do gado do vento ao mesmo tempo que frustrava as pretensões dos fazendeiros da ribeira do Apodi, da Câmara do Natal no seu embate contra o provedor e atrapalhava a aliança entre oficiais e capitão-mor sobre a jurisdição fazendária.

A decisão final da Coroa permitiu, desta forma, não somente o fortalecimento de Teotônio Fernandes Temudo sobre as instituições locais e sobre o capitão-mor na capitania mas, também, do grupo ao qual estava ligado: o contratador do gado do vento e os seus sócios.

A Revolta dos magnatas, deflagrada em 1741, e a sequência de embates entre grupos, autoridades régias e seus consequentes conflitos de jurisdição, apontam para uma complexa relação de interesses que poderá ser investigada em estudos posteriores.

 

No nordeste do Brasil colonial os caminhos do gado rodeiam a região do Apodi, sinalizada em cor laranja no mapa. Link: https://atlas.fgv.br/marcos/caminhos-do-gado/mapas/o-nordeste-da-cana-e-do-gado-no-seculo-17

 

Bibliografia Básica

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997.

BARBOSA, Kleyson Bruno C.. A Câmara da Cidade do Natal (1720-1750): o cotidiano administrativo de uma câmara periférica. In: V Encontro Internacional de Histórica Colonial. Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Século XVI ao XIX), 2014, Maceió. Anais do V Encontro de Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Século XVI ao XIX), Maceió, 19 a 22 de agosto de 2014 [anais eletrônicos]. Maceió: Edufal, 2014. v. 1. p. 777-785.

DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira do Apodi-Mossoró (1676-1725). 2015. 187 pp. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande.

FONSECA, Marcos Arthur Viana da. Uma capitania em crise: conflitos e jurisdições no Rio Grande (1726). Revista de História Bilros, v. 3, n. 5, p. 44-66. 2015.

LYRA, Tavares. História do Rio Grande do Norte. 3.ed. Natal, RN: EDUFRN, 2008

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