Revista Impressões Rebeldes

QUEIXAS SEMPRE GERAM REVOLTAS?

As agruras dos súditos da comarca das Alagoas nas relações com seus magistrados

Desembargadores da Casa de Suplicação, em litografia do livro Viagem pitoresca, publicado em 1839, de Jean-Baptiste Debret

Antonio Filipe Pereira Caetano

Antonio Filipe Pereira Caetano é professor de História da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, dentre outras obras, de Alagoas e o Império Colonial Português – Ensaios sobre Poder e Administração (Séculos XVII-XVIII).

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Antonio Batalha foi uma exceção. Não pelo sobrenome, que faz alusão a um confronto armado, mas por ter sido um dos poucos ouvidores da Comarca das Alagoas que se uniu deliberadamente aos súditos locais em 1817 e fez frente aos moradores rebeldes de Recife que por meio da Insurreição Pernambucana tentavam derrubar o governo português de D. João VI. Os súditos “alagoanos”, naquela altura, enxergavam mais vantagem na manutenção dos laços com a monarquia lusitana do que enveredar nas ideias republicanas dos inflamados “pernambucanos”.

O ouvidor Batalha tinha outros objetivos quando se juntou aos “alagoanos” contra os “pernambucanos”: se tornar governador da Província. Nem sua carta relatando os detalhes da insurreição, escrita em 20 de janeiro de 1818 ao Governador Geral da Bahia, Conde dos Arcos (D. Marcos de Noronha e Brito), foi suficiente para que o magistrado dormisse um dia ouvidor e acordasse no outro governador da Província, já emancipada, das Alagoas. O tiro havia saído pela culatra! Para o lugar de Governador da Província da Alagoas, em 1817, foi nomeado Sebastião Francisco de Melo e Póvoas que assumiu as funções em 22 de janeiro de 1819, cuja relação familiar com Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo) e a experiência no governo da Capitania do Rio Grande do Norte (1812-1816) podem ter sido a razão de sua escolha, em detrimento de Antonio Batalha.

Mesmo com essa derrota, aquele magistrado entrava para história local como um dos poucos que caíra nas graças da população (pelo menos a que conduzia politicamente a localidade!) ao servir naquelas bandas. Antes de Batalha, as queixas proliferaram na papelada de correspondência entre a Comarca das Alagoas (instituída em 1712) e o Conselho Ultramarino. O segundo ouvidor da comarca, João Vilela do Amaral (1717-1721), foi um dos que mais sofreu queixas e reveses da população das “Alagoas”. No ato de sua residência – prática administrativa de investigação da gestão de um agente régio a partir da consulta a testemunhas – as vilas de Porto Calvo e Penedo se insuflaram contra o magistrado acusando-o de uma lista interminável de práticas irregulares. Dentre elas: venda de sentenças, prisão de inocentes, roubo de dinheiro e bens dos súditos, tentativa de pôr à venda a cadeia e a casa da câmara, intromissão em assuntos eclesiásticos e acusações indevidas de prática de concubinato da população com o fim de angariar recursos financeiros.

O terceiro ouvidor da localidade, Manoel de Almeida Matoso (1721-1725), quase não assumiu o posto visto que seu antecessor não aceitou a saída do ofício, pendenga que se arrastou por anos. Quando a situação se resolveu e o mesmo pode “praticar a justiça régia”, do mesmo modo não foi visto com bons olhos pelos moradores da comarca. Os habitantes considerados de “boa reputação” escreveram ao rei, em 1725, apontando que o magistrado fazia negociações, recolhia dinheiro dos defuntos para futuros acordos, cobrava preços elevados para gêneros comercializados e ajustava as sentenças sem apelações por conta dos valores atribuídos de pagamento.

O ouvidor Joaquim Alvares Muniz (1744-1748), oitavo daquela comarca, também sofreu ataques pessoais. Em carta de Isabel de Souza, em 20 de novembro de 1750, lembrava que o magistrado usurpou seus bens após a morte de seu marido. Para ela, Joaquim Muniz teria impedido o juiz ordinário de tirar devassa sobre o ocorrido por “tantas crueldades e tão despóticas injustiças como obram os ministros desta desgraçada terra”. Solicitado a se posicionar sobre o caso pelo Conselho Ultramarino, o ouvidor informava que o morto era “tão pobre e miserável que pelo mais do mesmo senhor lhe deram sepultura e não achei que pessoa alguma concorresse para a dita morte”. Isabel estava entregue a sua própria sorte!

Seu sucessor, Antonio Pereira Barroso (1749-1755), por sua vez recebeu queixas de todos os lados: Capitão-mor, Sargento-mor, Vereadores da Vila das Alagoas, Coronel do Regimento da Cavalaria e o vigário das Alagoas encaminharam reclamações sobre ele. O discurso parecia também estar afinado no que se refere as acusações: favorecimento de testemunhas com redução de perguntas, desacertos, desordens nos procedimentos e prática autoritária de poder. Para esses grupos “seus procedimentos eram tão desordenados que deram motivo de justas queixas aos oprimidos que recorrem ao paternal abrigo de Vossa Majestade”.

Para um último exemplo, citemos José de Mendonça de Matos Moreira, o ouvidor mais longevo que se estabeleceu na Comarca das Alagoas, atuando por 18 anos (1779-1797). Talvez senha sido aquele que desenvolveu uma relação mais híbrida e enraizada com o território, não sendo à toa que constituiu família e descendência nos espaços. Ávido pelas atividades mercantis, sobretudo no corte de madeiras reais, lutou e conseguiu para si o ofício de Conservador das Matas das Alagoas. Apesar de ter alcançado o feito da construção de uma Casa de Aposentadoria para sua hospedagem na Vila de Penedo, não escapou de intermitentes repúdios à sua prática de administrar e fazer justiça. A lista foi vasta, como nunca se viu: acúmulo de ocupações, falta de inteligência no trato com as madeiras, vexações, ações despóticas, proteção de apaniguados, enriquecimento de mulheres com as quais mantinha relações amorosas, rivalidade com o capitão-mor, prática ilícita de comércio, não realização de correições, não aplicabilidade de sentença ou apelações, fuga de instituir devassas, dívida na Fazenda Real, propriedade de companhia de escravos e de não se comportar como um ministro de justiça.

Entre 1712 e 1822, a Comarca das Alagoas recebeu 18 ouvidores. Pelo menos a metade deles sofreu algum tipo de queixa de súditos individualmente, coletivamente e/ou através de instituições de poder. Era uma prática comum, é verdade, mas em muitos lugares quando agentes como Governadores e Provedores sofriam estes reveses, geralmente as querelas ganhavam maior volume e transformam-se em motins, revoltas ou insurreições! Os ouvidores parecem ter saído ilesos desse tipo mais grave de insubordinação, pois os súditos esperavam a abertura das residências para “botar a boca no trombone” e delatar todas as suas mazelas administrativas, ao invés de pegar em armas e inaugurar um tumulto. Talvez isso esteja relacionada à duas situações. Em primeiro lugar, pela concepção de representação de justiça que estes homens simbolizavam, podendo seus adversários em atos de resistência a eles sofrerem maiores penalidades e, em segundo lugar, a consciência de uma autoproteção entre os magistrados que fazia com que tais queixas fossem abrandadas e desprezadas no momento do trânsito da papelada para o reino.

Fato é que grande parte destes homens não eram penalizados pelas atuações irregulares. Dos exemplos acima mencionados, somente Manoel de Almeida Matoso sumiu no mapa, possivelmente por iniciativa própria, fruto do desgosto de atuação na magistratura. Os demais ascenderam na carreira e não tiveram maiores problemas em agregar valor à causa judicial. Ainda que usando dos discursos típicos do Antigo Regime para apontar irregularidades na prática administrativa dos agentes régios, costumeiras a partir da segunda metade do século XVII, os súditos “alagoanos” não tiveram seus pleitos atendidos e não optaram pela revolta para solucionar seus graves problemas de relacionamento com “tiranos judiciais”! Talvez esteja aí a explicação do porquê os magistrados possuem tamanha força e proteção nas estruturas sociais contemporâneas. Imunidades adquiridas historicamente, solidariedade de agentes em busca de fortalecimento e a consolidação de uma imagem inabalável, sólida e proba! Assim, no mundo colonial, nesse caso o alagoano, quando se tratava dos magistrados, as queixas nunca levaram a revoltas!

Bibliografia Básica

CAETANO, Antonio Filipe Pereira (Org.) Alagoas Colonial: Construindo Economias, Tecendo Redes de Poder e Fundando Administrações (Séculos XVII-XVIII). Recife: UFPE, 2012.

CAETANO, Antonio Filipe Pereira (Org.) Das Partes Sul à Comarca das Alagoas, Capitania de Pernambuco – Ensaios sobre Justiça, Economia, Poder e Defesa (Século XVII -XVIII). Maceió: Viva, 2015.

CAMARINHAS, Nuno. Juízes e Administradores da Justiça no Antigo Regime – Portugal e o Império Colonial Português, Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Caloute Gulbekian, 2010.

COSTA, Craveiro. A Emancipação das Alagoas. Maceió: Secretaria do Estado dos Negócios de Educação e Cultura/Arquivo Público das Alagoas, 1967.

MELLO, Evaldo Cabral de. A Outra Independência – O Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.

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