Revista Impressões Rebeldes

ANTÔNIO DA SILVA: UM AMOTINADOR, UM HEREGE

O crime de heresia não seria suficiente para manter atrás das grades o forasteiro que se dizia príncipe. Acusado de liderar uma sublevação de africanos escravizados, o “mensageiro da esperança” foi perseguido pelas autoridades locais da diamantina do século XVIII

“Lavagem de diamantes”, aquarela do artista luso-italiano Carlos Julião, da década de 1770, retrata o trabalho de escravizados, que compunham o grupo de seguidores da seita do príncipe encoberto. Fonte: “Riscos Iluminados de Figurinhos de Negros e Brancos dos Uzos do Rio de Janeiro e Serro Frio” – Acervo Biblioteca Nacional.

Ana Margarida Santos Pereira

Ana Margarida Santos Pereira é doutoranda em Humanidades na Universiteit van Amsterdam e professora da Universidade Federal de Alagoas (Campus do Sertão, Delmiro Gouveia). Autora de “Milenarismo e revolta na vivência dos escravos. Pregações e andanças do Príncipe Encoberto na região do ouro (Minas Gerais, séc. XVIII)” In: O espaço atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, 2008, Lisboa.

Os depoimentos registrados no decurso dos interrogatórios permitem dividir as acusações apresentadas contra Antônio da Silva em dois grupos. O primeiro diz respeito às blasfémias e proposições heréticas que, alegadamente, teria proferido. Neste aspecto, seu caso não diferia de muitos outros, dos quais temos conhecimento para a época. De fato, os registros que chegaram até nós indicam que insultar as pessoas da Santíssima Trindade, os santos ou a Igreja e seus representantes, dirigir-lhes comentários jocosos ou exprimir dúvidas em relação a questões de doutrina, formulando-as em termos mais ou menos heterodoxos, eram práticas frequentes na Europa moderna e, também, entre os europeus que se deslocavam para outros continentes.

Embora peculiares, tais práticas refletiam perplexidades comuns na época, ligadas ao papel desempenhado pela Igreja – e à sua importância como intermediária entre os homens e o divino – e pelo próprio Catolicismo. Cada vez mais, a religião era tida como insuficiente para responder às preocupações e anseios dos fiéis ou apaziguar as inquietações geradas pelas mudanças que, então, vinham ocorrendo.

Os textos sagrados, cuja autoridade se mantivera intocável durante séculos, perderam pouco a pouco seu estatuto, ao mesmo tempo que se assistia à afirmação do homem e das suas potencialidades. Por outro lado, a difusão do livro e das práticas de leitura, a que então se assistia, fomentou a apropriação – mais ou menos subversiva – de textos e símbolos considerados sagrados em busca de respostas que permitissem lidar com uma realidade angustiante e que, apesar das conquistas alcançadas nos séculos anteriores, persistia em escapar ao controle dos homens.

De acordo com os testemunhos recolhidos pelo vigário da vara, Antônio da Silva questionava as orações da Igreja, criticando-as em alguns trechos, e também repudiava os aspectos exteriores da vivência religiosa, como a devoção de que eram alvo as relíquias dos santos ou a frequência das igrejas defendendo a devoção privada dos fiéis. Além disso, manifestava publicamente suas dúvidas acerca da doutrina católica, negando a existência do Inferno, a divindade de Cristo ou o próprio poder de Deus, e parecia acreditar na reencarnação das almas, teoria alheia aos princípios do Cristianismo, com os quais era incompatível.

Afirmações desta natureza eram passíveis de serem denunciadas à justiça eclesiástica ou mesmo levadas ao conhecimento dos inquisidores – especialmente no que se referia às proposições heréticas, que questionavam os próprios fundamentos sobre os quais se assentava a doutrina cristã e, como tal, possuíam uma gravidade acrescida. No entanto, dificilmente justificariam a mobilização dos poderes locais e sua ação concertada para garantir o afastamento do denunciado que, durante vários anos, permaneceria longe do contato com o mundo.

A resposta foi determinada por outro tipo de acusações, relacionadas com os contatos mantidos por António da Silva com alguns elementos de origem africana que integravam o contingente de cativos, e sua atuação junto deste segmento da população. Rumores em circulação na vila indicavam que o forasteiro havia reunido um grupo de negros para a atacarem, o que alertara os moradores de origem europeia, precipitando o recurso às autoridades.

Os depoimentos das testemunhas permitem reconstituir o discurso da personagem e o projeto místico, de caráter messiânico, cuja concretização a teria guiado até ali. As propostas veiculadas por ele aproximam Antônio da Silva de outras figuras carismáticas, cuja existência se encontra documentada na mesma época, tanto em Portugal como no Brasil. Sua originalidade reside na identidade daqueles a quem se dirigia, alvo preferencial de seu discurso: a população de origem africana e, em particular, os indivíduos escravizados. O que conferiu às referidas propostas um carácter único, fazendo deste um caso ímpar na história do Brasil-colônia.

Alguns elementos, comuns às narrativas de tipo milenarista são facilmente identificáveis: um líder, cuja identidade permanecia envolta em incertezas; uma missão, transmitida diretamente pela divindade que, em última análise, objetivava reformar a ordem vigente instituindo uma sociedade mais justa – abolição definitiva da dicotomia entre senhores e escravos; uma mensagem de esperança, especificamente dirigida aos mais despossuídos e, por isso, também mais receptivos a esse tipo de discurso; e um meio para alcançar os objetivos propostos.

Apresentando-se como um líder dotado de virtudes carismáticas, por sua suposta comunicação direta com o divino, Antônio da Silva atraiu vários seguidores, reunindo, em pouco tempo, à sua volta um grupo mais ou menos numeroso, quase exclusivamente formado por indivíduos escravizados. Alguns destes relatariam, depois, ter tido visões que lhes haviam confirmado a autoridade do forasteiro e a natureza sobrenatural de sua missão.

Para captar a simpatia daqueles a quem se dirigia, Antônio da Silva procurou evidenciar as afinidades que o uniam a eles. Em uma reunião secreta, revelou aos participantes que era filho natural de Dom João V e que, devido a perseguições movidas por seu irmão, o herdeiro oficial do Trono (futuro Dom José I), se vira forçado a abandonar o Reino e assumir uma identidade falsa para sobreviver. Socialmente desclassificado e, tal como eles, arremessado para os confins do território brasileiro, Antônio da Silva chegou, mesmo, ao ponto de apresentar-se perante os escravizados que o ouviam como “João Lourenço Negro”, afiançando que era esse e não outro seu nome.

Austero e despojado, Antônio da Silva/João Lourenço se afastava do comportamento comum aos proprietários coloniais, frequentemente censurados, pela Igreja e não só, por constituírem um mau exemplo para seus dependentes. Finalmente, o carisma pessoal do forasteiro e o apelo irresistível de sua mensagem teriam eliminado qualquer desconfiança por parte dos escravizados e, até, o medo que eles pudessem sentir, congregando momentaneamente naquela figura de longas barbas as aspirações de um grupo para quem a liberdade era um sonho longínquo e, quase sempre, inalcançável.

Antônio da Silva afirmava ter sido enviado à região mineira pelo rei de Portugal, seu pai, e pelo próprio Deus, com a missão de libertar os indivíduos escravizados como podemos ver no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (TSO, IL, Maços, 58, doc. não num., fl. 288r) e “todo o povo pardo, índios e negros a [ele] juntar sem ninguém os poder cativar, para todo o mourismo [i.e. o Islamismo e seus adeptos] neste tempo desbaratar, e os lugares santos a portugueses cristãos entregar”. Era isso o que anunciava num papel que deveria ser afixado na porta da igreja principal da vila, em que se identificava como “João Lourenço, Príncipe Encoberto”.

Sua presença no Brasil tinha, portanto, dois objetivos distintos: o primeiro consistia em libertar os cativos – sendo que a maioria dos africanos escravizados que, então, desembarcavam no Brasil tinha como destino a região mineira. O segundo objetivo, de natureza sobrenatural, era derrotar os muçulmanos e reconquistar Jerusalém para a posse dos cristãos, concretizando a missão histórica que a ideologia nacional delineara para Portugal, com um príncipe injustiçado a liderar um exército formado por indivíduos escravizados pelos próprios portugueses. A redenção seria, portanto, dupla.

As evidências recolhidas no âmbito dos inquéritos indicam que o forasteiro estava organizando um grupo de negros armados para pôr seu plano em prática. No entanto, as dúvidas aparentemente manifestadas por alguns deles em relação ao sucesso da iniciativa e o receio do que pudesse lhes acontecer em caso de fracasso, além da intensificação dos rumores e do nervosismo dos proprietários perante a iminência de uma revolta, acabariam por frustrar as intenções do “príncipe” e “profeta” que, sem dificuldade, foi preso e, durante vários anos, permaneceu a braços com a justiça. Ironicamente, os escravizados a quem prometera a liberdade foram, depois, os mesmos que o incriminaram para se livrarem, eles próprios, do castigo.

A decisão do Tribunal de Lisboa seria conhecida em 1753, ou seja, sete anos após a realização do inquérito judicial por ordem dos inquisidores. Na avaliação deles, Antônio da Silva “padecia loucura”. Assim, deveria ser imediatamente libertado, se porventura ainda estivesse preso, e os seus bens, confiscados por ordem do padre Miguel Carvalho, restituídos. O antigo vigário da vara, que o retivera no cárcere sem para isso ter ordem do Tribunal, foi, aliás, severamente repreendido pelos inquisidores e advertido para não voltar a proceder da mesma forma, sob pena de receber uma punição.

Durante o período em que permaneceu na prisão, Antônio da Silva se dirigiu, ele próprio, ao Tribunal da Fé para pedir celeridade na apreciação de seu caso. Alegava estar padecendo “gravíssimas necessidades”, em virtude de sua pobreza, e afirmava que não cometera qualquer falta merecedora de castigo por parte da Inquisição. Além disso, suspeitava que o Tribunal não fora informado de sua prisão, razão pela qual não teria sido enviado para Lisboa, a fim de ser processado.

Quem era, afinal, este homem, cujo rastro se perde em 1753? Na Vila do Príncipe, as opiniões divergiam: uns o tinham por louco, invocando episódios que atestavam sua falta de juízo; outros julgavam que ele era, acima de tudo, dissimulado e, também, muito sagaz, um homem “velhaco”. O padre Miguel Carvalho não acreditava que sua origem fosse tão humilde como afirmava em seu depoimento, no qual disse que seus pais eram pobres “de ganha vida” e que, antes de vir para o Brasil, fora aguadeiro em Lisboa. Alguns defendiam que tivera algum tipo de instrução formal e outros, ainda, desconfiavam que era ou já fora membro da Igreja.

No mesmo ano em que Antônio da Silva foi preso no Brasil, morria em Lisboa Pedro de Rates Henequim, condenado à fogueira por ter pretendido coroar o infante Dom Manuel (irmão de Dom João V) como imperador da América meridional, onde seria erigido o Quinto Império do mundo, separado de Portugal. Nosso “profeta” defendia, apenas, que poderiam vir a existir dois reis, um em Portugal e o outro nas Minas, mas, ao prometer a redenção terrena, se aproximava, também, do padre Antônio Vieira, em cujo pensamento se inspirou Henequim. A intenção de combater os “infiéis” e reconquistar a Terra Santa, que ficaria sob o domínio português, são outros tantos indícios que remetem para o autor da Clavis Prophetarum, sugerindo, mais uma vez, que o “Príncipe Encoberto” poderia ser, na verdade, um jesuíta heterodoxo ou, pelo menos, alguém cuja educação tivera lugar num colégio da Companhia. Se conheceu as propostas de Henequim? É uma possibilidade.

Antônio da Silva foi, claramente, um homem de fronteira, cuja trajetória desafiou os limites de sua época, questionando dicotomias várias: colonizador/colonizado, branco/negro, livre/escravizado, cultura letrada/cultura popular, ortodoxia/heterodoxia, sanidade/loucura, etc. Múltiplo, contraditório e, como tal, profundamente moderno, desenvolveu um projeto religioso que não excluía a concretização de objetivos políticos, em ruptura com os interesses da metrópole. Anunciando, por assim dizer, insurreições futuras.

Bibliografia Básica

DELUMEAU, Jean (Org.). Injures et blasphemes. 1. ed. Paris: Imago, 1989.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Dominus, 1965.
ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
VILLALTA, Luiz Carlos. O Encoberto da Vila do Príncipe (1744-1756): Milenarismo-messianismo e ensaio de revolta contra brancos em Minas Gerais. In: Fênix. Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 4, a. IV, n. 4, 30 p., out.-dez. 2007.
Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/PDF13/DOSSIE_%20ARTIGO_04-Luiz_Carlos_Villalta.pdf. Acesso em: 28 mai. 2020.

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