Revista Impressões Rebeldes

ALÉM DOS MASCATES

Em Pernambuco as rebeliões nem sempre foram protagonizadas pela elite. Soldados de Recife e Olinda protestaram contra a falta de pagamento em 1726 e conquistam o que pediam. E ainda escaparam de uma punição severa.

“Cena-violão, Mulher e Soldado” (1928), guache sobre papel de Cicero Dias – Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros/USP

Breno Almeida Vaz Lisboa

Breno A. Vaz Lisboa é professor da Faculdade Joaquim Nabuco, da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco e atualmente faz doutorado na Universidade Federal Fluminense. Pesquisa a governança da capitania de Pernambuco na primeira metade do século XVIII. Organiza com George F. Cabral um livro sobre Pernambuco e seu papel dentro do Império Português a ser publicado em 2015.

Quando observamos a experiência da capitania de Pernambuco percebemos como ela é rica em revoltas protagonizadas pelos súditos coloniais. Três delas são as mais conhecidas: a Restauração Pernambucana (1645-1654), a deposição do governador Mendonça Furtado (1666) e a Guerra dos Mascates (1710-1711).

A Restauração Pernambucana foi uma revolta dos luso-brasileiros de Pernambuco contra o domínio holandês que se impunha na capitania desde 1630. Deve-se destacar o protagonismo das elites locais – sobretudo os senhores de engenho –, os mais interessados na expulsão dos holandeses. Praticamente sem apoio militar da Coroa portuguesa, a açucarocracia local levantou armas e articulou com seus próprios recursos a restauração da capitania ao seio da monarquia lusa.

A deposição do governador Jerônimo de Mendonça Furtado expressa mais uma vez a força política da açucarocracia de Pernambuco que expulsou os invasores. O fim da guerra holandesa trouxe uma grave crise econômica para os senhores de engenho, mas, por outro lado, as elites saíram social e politicamente fortalecidas da Restauração exibindo um enorme prestígio por seus serviços prestados ao reino. O orgulho dos restauradores fez com que estes passassem a negociar novas relações com a Coroa e se insurgir contra governadores que contrariassem seus interesses. O caso extremo aconteceu com Mendonça Furtado, preso pela câmara de Olinda em 1666 e expulso para Portugal acusado de uma série de irregularidades administrativas.

A Guerra dos Mascates também teve a participação ativa dos senhores de engenho representados na câmara de Olinda. O conflito girou em torno da disputa dos cargos da câmara de Olinda e da criação da câmara do Recife em 1709, fato que gerou ferrenha oposição entre os senhores de engenho de Olinda e os comerciantes do Recife. Mais uma vez emergiu o “imaginário da Restauração”, onde a açucarocracia fez questão de lembrar à Coroa seu papel na expulsão dos holandeses e assim pedir a extinção da nova municipalidade do Recife.

Entre essas três revoltas há algo em comum: todas foram articuladas e protagonizadas essencialmente pelas elites locais. Algo diferente acontece em 1726. Um grupo ligado aos setores mais baixos da população entrou em cena: os soldados das tropas pagas (conhecidas na época como tropas regulares ou tropas de linha) formadas por vadios, desocupados e homens pobres livres. Numa época na qual o lema do pagamento dos soldados no Brasil era “mal, tarde ou nunca”, eram comuns os atrasos e os problemas disto decorrentes. A câmara de Olinda, responsável pelo pagamento dos soldos das tropas de toda a capitania, tinha em geral sérias dificuldades para dar conta desse compromisso.  Entre todas as despesas que a câmara de Olinda era obrigada a cuidar, o custo com a remuneração dos soldados era a mais avultada, girando em torno de 12:000$000 réis por volta de 1712. Por conta disso, já a partir da segunda metade do século XVII, a câmara reclamava reiteradamente ao rei do grande número de soldados e pedia que fosse aliviada de atender a estes pagamentos.

Reclamava com o rei e deixava de pagar os soldados no prazo. A câmara chegou a deixar os Terços por vários meses sem receber soldo, se justificando em razão da escassez dos recursos advindos dos impostos que recolhia, reduzidos com as dificuldades econômicas. E isso afetava a defesa da região, obrigando soluções criativas. Em 1713, o governador Félix Machado comunicava ao rei que teve que se valer do dinheiro do imposto da Dízima da Alfândega para o pagamento dos soldos da infantaria. Segundo ele, “a câmara de Olinda não acha a pagar a gente da guerra nessa capitania”.

Em 1721 era a vez do governador geral Vasco Fernandes César de Menezes reclamar sobre o mesmo tipo de atraso. Em carta à câmara estranhava o procedimento da instituição em relação ao atraso dos pagamentos, “de cujo descuido se tem seguido a deserção de tantos soldados.” E falava aos oficiais da câmara de forma enérgica, num tom quase ameaçador: “e porque me não seja preciso fazer alguma demonstração severa com esses vereadores espero que se abstenham de me dar semelhante motivo”.

O governador da capitania, D. Francisco de Souza, resolveu em 1721 promover uma interferência incisiva nos contratos administrados pela câmara. Era das arrematações dos contratos de impostos que saía, ou deveria sair, o dinheiro que pagava os soldados. Para garantir que o dinheiro dos contratos chegasse a eles passou uma portaria ordenando aos contratadores que não mais entregassem o dinheiro das arrematações ao tesoureiro da câmara. Segundo o mesmo, a medida era necessária porque a câmara empregava o dinheiro das consignações em despesas inúteis, enquanto as tropas ficavam oito ou dez meses sem remuneração.

Os atrasos no pagamento da infantaria pareciam continuar frequentes, gerando mais intromissões de governadores na administração dos contratos. Para garantir os soldos o governador D. Manoel Rolim de Moura 1725 resolveu embargar quase todos os contratos da câmara nas mãos dos contratadores – o da balança, o do tabaco, o das garapas e o dos vinhos -, para que o dinheiro não chegasse ao tesoureiro da câmara. A intenção do governador era utilizar não só os contratos do açúcar e das carnes, que já eram consignados para o pagamento da infantaria, mas também os outros contratos direcionando-os para o tal compromisso.

Ao Conselho Ultramarino muito incomodava esse tipo de atraso. Reprovava o fato da câmara de Olinda desviar o dinheiro destinado ao pagamento da infantaria para outros fins, afirmando que a câmara deveria explicar ao governador por escrito os motivos de não ter aplicado as consignações para o dito fim, mostrando onde gastou esses recursos.

Em 1726 os constantes atrasos da câmara em pagar os militares chegaram ao seu limite extremo: os soldados ficaram um ano e meio sem receber soldos. Por conta disso os soldados dos terços do Recife e de Olinda se sublevaram, marchando juntos, se colocando em acampamento e abandonando suas praças e fortalezas. Pela gravidade da sublevação das tropas o governador D. Manuel Rolim de Moura convocou uma junta formada pelas autoridades administrativas mais importantes da capitania, como o ouvidor, o provedor, o juiz de fora e os mestres de campo dos dois terços. Resolveram por unanimidade pagar os soldados através da Fazenda Real, utilizando dinheiro da Dízima da Alfândega como empréstimo.

Pouco tempo depois do ocorrido, a notícia chegava à sede do governo geral do Brasil na Bahia. O governador geral, Vasco César de Menezes, em carta ao ouvidor de Pernambuco demonstrou grande preocupação com o motim, considerando que “o sucesso acontecido que vossa mercê me dá conta é um dos mais graves que se pode imaginar.” Considerava justa a pretensão dos soldados, mas estranhava “o modo [que adotaram] por incivil e de perniciosas consequências.” Por isso, defendia severa punição para os responsáveis, dando como exemplo sua própria experiência numa situação semelhante vivida por ele no Reino: “A mim me lembra muito bem haver enforcado e arcabuzeado muitos soldados por menos culpa sendo general da província do Alentejo no tempo da guerra, de cuja demonstração não se seguiu dano algum; mas antes utilidade naquele proveitoso exemplo”.

Chegando o caso à Coroa, discutiu-se no Conselho Ultramarino a melhor maneira de se proceder quanto ao motim. Preocupava ao Conselho o fato deste motim não ser o primeiro no Brasil, pois já tinham ocorrido outros na Bahia e no Rio de Janeiro. Temendo que situações como estas pudessem se multiplicar, postulava que o motim de Pernambuco deveria ser tratado de forma cuidadosa. Seria preciso, sugeria, que o rei mostrasse “o seu real desagrado”. No entanto, assumindo uma postura ambígua, não deixava de reconhecer a “extrema necessidade” dos soldados, sendo por isso dignos de perdão por parte da Coroa. Apenas alguns oficiais deveriam ser punidos, pois “casos tão graves, e de tão mau exemplo não devem ficar de todo impunes e sem alguma demonstração de indignação do príncipe.”

Apesar das recomendações do governador geral e do Conselho Ultramarino, durante o governo de D. Manuel Rolim de Moura em Pernambuco a sublevação das tropas ficou sem castigo. Somente com a chegada de outro governador em 1727, Duarte Sodré Pereira, iniciaram-se as punições. Um dos primeiros cuidados do governador logo que tomou posse foi prender e punir os cabeças do motim, embarcando alguns para a Colônia do Sacramento em uma expedição militar que partiu em 1728. Não houve porém qualquer execução capital de rebeldes como era comum acontecer em outras revoltas no Brasil colonial, mesmo naquelas protagonizadas por membros das elites locais, como na Revolta de Beckman em 1684 no Maranhão, na “Revolta da Cachaça” em 1660 no Rio de Janeiro ou na Revolta de Felipe dos Santos em 1720 nas Minas Gerais.

Era esta a primeira vez que um grupo pertencente às camadas livres pobres da população da capitania de Pernambuco promovia uma revolta. Em um lugar onde a experiência colonial mantinha uma tradição na qual as elites buscavam na revolta um meio de atender seus interesses econômicos e políticos, os soldados mal pagos de Olinda e do Recife mostraram que também poderiam se organizar em torno de seus direitos mais imediatos. Mesmo formadas por indivíduos das camadas mais baixas da população livre, as tropas conseguiram o que almejavam: o pagamento dos soldos atrasados. E o conseguiram sem o sacrifício de nenhuma vida, ou seja, sem nenhum soldado punido com a execução. Com a rebelião estes militares subalternos encontraram a maneira de negociar com os poderes da capitania de Pernambuco a fim de conseguir o que buscavam.

Bibliografia Básica

FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1761). Tese de Doutoramento São Paulo, FFLCH-USP, 1996.

LISBOA. Breno Almeida Vaz. Uma elite em crise: a açucarocracia de Pernambuco e a câmara Municipal de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII. Recife: UFPE, 2011. Dissertação de Mestrado.

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_____.O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

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