Revista Impressões Rebeldes

A GUERRA DE 1808-1824 (PARTE II)

Para eliminar a barreira interna criada pelos guerreiros botocudos, governadores de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro se aliam - a estratégia militar sem precedentes, buscava romper com o cerco dos nativos em vitória

Fisionomia de alguns Botocudos” (1821), gravura do italiano Gallo Gallino – Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo

Marco Morel

Marco Morel é professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor, dentre outras obras, do livro “A saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistência indígena” – São Paulo, Hucitec Editora, 2018

Os entraves colocados pelos Botocudos à mineração, ao comércio e à agricultura geraram pressões sobre a Coroa. A militarização na região de Minas e Espírito Santo fora reforçada sem cessar ao longo do século XVIII. O aparato administrativo – militar inclusive – teve grande crescimento no decorrer da mineração, onde a presença das tribos Aimorés/Botocudos desempenhou papel importante.

Entre grupos de civilizações distintas – como é o caso dos luso-brasileiros face aos Botocudos – é raro verificar comportamentos guerreiros pautados por um código comum formalmente estabelecido. Ou seja, seria mais compreensível ver os portugueses declarando guerra a uma outra nação europeia, ou a uma república sul americana, por exemplo, do que a um conjunto de tribos de índios que, embora também sejam guerreiros, não partilham dos mesmos códigos de conduta e não possuem efetivamente um Estado organizado e sequer um alfabeto onde possam responder, por meios diplomáticos, a referida declaração, que foi alvo da ironia de Hipólito da Costa no Correio Braziliense.

Mas quando as ferocidades se equivaliam, engendrava-se uma guerra tão violenta quanto dissonante, entre dois agrupamentos tão diferentes, mas que se aproximavam e trocavam energias ao se entredevorarem. Os troféus de guerra e as mutilações dos corpos dos inimigos ocorriam dos dois lados. Havia soldados que colecionavam orelhas de Botocudos e outros que abriam cabeças de crianças indígenas a facão.

Esta Guerra de 1808 revela estratégia bem traçada por parte da Coroa. Entre a declaração assinada por D. João – no Palácio do Rio de Janeiro – e os embates de soldados e índios nas selvas – havia uma rede complexa de mediações e hierarquias, incluindo diferentes níveis das administrações central, regionais e locais (de quatro províncias), a mobilização do aparelho militar, o apoio e envolvimento de moradores das zonas atingidas (sobretudo os proprietários e seus braços armados), projetos de colonização e povoamento, sem falar da liberação de recursos em todos estes setores. A máquina de guerra movia suas engrenagens contra os índios Botocudos que, por sua vez, ofereceram tenaz e eficiente resistência, ocasionando muitas baixas no campo adversário e vencendo batalhas.

A articulação central, no campo luso-brasileiro, ficava a cargo da Secretaria da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, cujo titular era D. Rodrigo de Sousa Coutinho – futuro conde de Linhares -, principal estrategista e articulador da ofensiva contra os Botocudos (o mesmo que, dez anos antes, abolira os Diretórios pombalinos). Do Rio de Janeiro se constituía a conexão com os governadores de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia que, por sua vez, comandavam e traçavam ações nas respectivas jurisdições. As tribos viram-se tratadas na esfera dos que não pertenciam à pátria, ou de seus inimigos: guerra e estrangeiros. D. Rodrigo, pois, apesar de seu notório reformismo ilustrado, poderia ser classificado entre os colonizadores “bravos”.

Ao abrir sobre sua mesa de trabalho um mapa da região conflagrada (pois era possível chamar assim a área com presença dos Botocudos) D. Rodrigo e os militares que o assessoravam tinham clareza de um aspecto singular da situação: a cidade de Vitória estava encurralada. Traçando uma linha que começa (nas atuais localidades) em Mucuri, passa por São Mateus, Linhares, Aimorés e vai até Cachoeiro de Itapemirim, percebe-se que em 1808 havia um verdadeiro cinturão de florestas e territórios indígenas em torno da capital do Espírito Santo e de regiões ainda pouco exploradas das Minas Gerais. O objetivo da guerra era basicamente destruir esta fronteira interna, a fim de ocupar o território onde havia florestas e índios e aniquilar a ambos.

 

Mapa de M. Wied-Neuwied que mostra a área ocupada por Botocudos na Costa Oeste do Brasil, entre 15º e 23º graus de latitude sul após Arrowsmith com algumas correções (1822) – Fonte: Viagem ao Brasil, nos anos de 1815, 1816 e 1817 / Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo

 

Os Arquivos do Exército brasileiro guardam os registros deste conflito contra os Botocudos, revelando mortandades e estratégia bélica cuidadosamente montada. Uma das providências básicas era acionar as autoridades locais. Para isso, foram enviados ofícios às Capitanias da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo, delimitando assim a zona do conflito e encurralando o inimigo, dificultando sua mobilidade e obrigando-o a combater tropas cujas armas eram mais mortais. Uma das táticas de guerra consistia em “matar uma aldeia”, isto é, cercar e exterminar os habitantes de uma tribo.

O conde de Linhares buscou organizar um cerco maior, que abarcasse o vasto território indígena em toda sua amplitude. Ele ordenou primeiro um ataque sincronizado das tropas mineiras e capixabas, para que “aqueles Gentios se vejam na necessidade de ceder completamente o simultâneo ataque”. O objetivo, nas palavras de d. Rodrigo, era que “o mesmo Gentio bravo ceda em fim vendo-se por toda parte acossado”.

Outra especial atenção do ministro português foi com a cidade de Campos dos Goitacazes (então pertencente ao Espírito Santo, mas fronteira com a província do Rio de Janeiro e um dos caminhos para a capital do império): as autoridades deveriam estar alertas contra possíveis incursões dos Botocudos que porventura fugissem das tropas mineiras e capixabas. D. Rodrigo preocupava-se em alertar a força militar de Campos dos Goitacazes “para que faça cortar a passagem do dito Gentio”. Era evidente: o ministro da Guerra queria prevenir a possibilidade de uma investida maciça dos índios que se aproximasse da capital do império.

A mobilização foi impressionante e durante anos o Espírito Santo transformou-se num campo de guerra. O governo local passou a exigir que a população masculina civil vivesse em constante estado de mobilização bélica. Todos estes moradores eram obrigados a praticar treinamentos militares e a se incorporarem ou contribuírem às tropas regulares na luta contra os Botocudos. Tal situação gerava descontentamentos, inclusive porque desviava os colonos de suas atividades agrícolas ou comerciais para o treinamento militar, para os quais muitos não tinham aptidão ou não queriam correr o risco. Esta mobilização guerreira da população civil durou pelo menos nove anos, pois em 1817 foi presenciada pelo estupefato viajante francês Auguste de Saint-Hilaire. Era uma guerra travada dentro do território brasileiro, simultânea, aliás, à efêmera República de 1817 em Pernambuco e capitanias vizinhas.

As prisões capixabas ficaram repletas de índios durante a Guerra de 1808 – 1824. As condições de cárcere eram desumanas e até as autoridades admitiam que os indígenas passavam fome.

No período da Independência no Brasil ocorreram, portanto, não só guerras contra as tropas portuguesas que resistiram à separação (como na Bahia, Maranhão, Piauí e Pará), mas, também, batalhas contra outros adversários do Império: os “índios bravos” do Espírito Santo e Minas Gerais. Após a Independência, o governo central brasileiro passaria a ter atitude (próxima à da Ilustração europeia do século XVIII) que visava integrar os índios à nação e à civilização por meios ditos “brandos”. Mas os ataques contra estas tribos continuaram e partiam de milícias organizadas por proprietários rurais e comerciantes, embora se registrassem violências cometidas ou apoiadas por militares das tropas efetivas e autoridades locais. Os casos de escravidão de Botocudos são frequentes neste raiar da nação brasileira, acompanhados de situação de miséria e fome, além de epidemias. Muitos destes indígenas eram conduzidos às fazendas e ao meio urbano, para trabalhar em obras públicas, no serviço militar e no ambiente doméstico.

O conflito com as tribos aconteceu simultaneamente, também, à mobilização guerreira do Império brasileiro contra republicanos e oposicionistas da Confederação do Equador (Pernambuco, Alagoas, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte) e houve até casos das mesmas tropas – como na fronteira de Bahia e Minas – ficarem de prontidão pelos Botocudos e contra os rebeldes do liberalismo Exaltado. Evidentemente eram adversários díspares (na medida em que estes últimos pertenciam à mesma civilização e sociedade dos governantes do Império), mas que exprimiam as contradições enfrentadas no início da formação de uma ordem nacional – que não foi pacífica. Encerrava-se informalmente, assim, a Guerra de 1808-24, que geraria uma nova fase da relação entre os Botocudos e a sociedade nacional.

O decreto de 27 de outubro de 1831 revogaria oficialmente as Cartas Régias joaninas “na parte em que autoriza na Província de Minas Geraes a essa guerra e servidão dos Índios Prisioneiros”. Ou seja, eliminava a guerra declarada formalmente pela Coroa e também a escravidão – mas mantinha a militarização do território indígena, ponto básico das Cartas Régias. Assim, pelo menos juridicamente, o Estado brasileiro se eximia da responsabilidade da guerra contra os índios e também proibia a condição servil destes, embora os mantivesse sob a tutela oficial e militar. A mesma lei afirmava que os índios em estado de servidão seriam “desonerados“ dela e, ainda, estendia aos índios do Brasil em geral a condição jurídica de órfãos, que deveriam ser amparados pelo Estado até que aprendessem ofícios. Entretanto, o decreto não detalhava os meios nem a fiscalização necessária para que a escravidão dos índios fosse revertida – e tal prática continuaria a ocorrer de forma espalhada e mais ou menos disfarçada ao longo do século XIX.

Mais do que falar de vencidos ou vencedores, neste momento, é adequado perceber que a partir daí estabeleceu-se um novo equilíbrio de forças; abriu-se outra etapa de relação entre estas tribos e a sociedade que as cercavam. Os Botocudos saíram enfraquecidos, mas não dizimados. Houve muitas mortes e demarca-se nova fase do contato com estes índios, mas não ainda o fim do longo conflito. O comportamento das tribos foi diverso. Alguns grupos foram derrotados, com muitos mortos e até desapareceram. Outros acabaram aceitando convívio intermitente. Sem esquecer os que se incorporaram aos postos indígenas e à vida da sociedade, como agregados, formando famílias, trabalhando em instituições públicas ou, ainda, como escravos. E alguns continuaram arredios, embrenharam-se nas matas. Mas de qualquer maneira se abriu à força caminho para uma aproximação com os Botocudos – o que implicava mais conhecimento sobre eles, mais controle e importantes alterações na vida destes povos.

A violência da guerra abriu caminhos para as Luzes do progresso e da ciência (seria, a seguir, o tempo onde se forjavam a Independência, a modernidade política e os primeiros esforços de construção nacional do Brasil), através inclusive de viajantes cientistas europeus como Wied-Neuwied, Saint-Hilaire, J.B. Debret e M. Rugendas, dando continuidade à tarefa de decifrar e dominar estes grupos indígenas até então arredios.

A ofensiva do Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves d’aquém e d’além Mar em África, de Guiné e da Conquista, Navegação, Commercio em Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia abalou, mas não destruiu as nações de Botocudos. Daí por diante, o desafio estaria colocado para o Império do Brasil.

Bibliografia Básica

MATTOS, Izabel Misságia de. Civilização e Revolta: os. Botocudos e a catequese na Província de Minas. Bauru, SP: EDUSC, 2004
MOREIRA, Vânia Losada. Espírito Santo Indígena. Conquista, trabalho, territorialidade e autogovernos dos índios, 1798-1860. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2017.
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014
RESENDE, Maria Leônia C.; LANGFUR, Harold. Minas expansionista, Minas Mestiça: a resistência dos índios em Minas Gerais do século do ouro. Anais de História de Além-Mar, v. 9, p. 79-103, 2008.
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.

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