Revista Impressões Rebeldes

A GUERRA DE 1808-1824

No alvorecer do Brasil independente, índios e luso-brasileiros disputam a consolidação da jovem nação. As luzes da modernização imposta pela tradicional coroa lisboeta não brilhariam sem antes serem ofuscadas por flechas da resistência

Marco Morel

Marco Morel é professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor, dentre outras obras, do livro “A saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistência indígena” – São Paulo, Hucitec Editora, 2018

Uma das primeiras medidas tomadas pela Corte portuguesa logo após sua chegada ao Brasil, não por acaso, foi estampar uma declaração de guerra ofensiva aos índios chamados de Botocudos – como consta na Carta Régia do Príncipe Regente D. João, dirigida a Pedro Maria Xavier de Ataide e Melo, Governador das Minas Gerais, ordenando que forme um corpo de soldados pedestres para luta contra os índios Botocudos (Arquivo Nacional, Junta da Real Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro; 4B- 206).

O texto assinado a 13 de maio de 1808, data festiva do aniversário do príncipe Regente e futuro rei, ao lado de outros “melhoramentos” que visavam modernizar a sociedade e consolidar a inusitada presença de uma tradicional Coroa ibérica em terras de além-mar. A modernização e o progresso joanino tinham, assim, esta característica violenta e predadora nem sempre destacada pela historiografia.

Após a declaração bélica, o que ocorreu? Como foi tal conflito? Que abrangência teve e quais suas consequências?

No raiar do século XIX a persistência de numerosos grupos indígenas chamados de Botocudos numa área cada vez mais valorizada do território da América portuguesa era um dos principais desafios para o império luso-brasileiro. Tal grupo etno-linguístico (dividido em vários subgrupos), em geral identificado como Macro-Jê que esteve incluído na denominação genérica de Aimoré até fins do século XVIII, seria conhecido como Botocudo ao longo do século XIX e começo do XX, quando se passa a chamar Krenak, ainda hoje existente em Minas Gerais e São Paulo.

As atividades de mineração nas Gerais, a transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763 e, ainda, a vinda da Corte para esta localidade em 1808, consolidavam o novo centro de poder. As frentes de expansão se enraizavam neste amplo polo geográfico, fortalecendo teias administrativas, mercantis e escravistas e redefinindo a posse da terra. Aguçava-se o atrito com as tribos indígenas.

Corresponde a este momento a Guerra de 1808 – 1824. Tal baliza cronológica, embora ainda não registrada pela historiografia, me parece a mais adequada. Esta conflagração (que ocorreu no Espírito Santo e Minas Gerais, com reflexos na Bahia e Rio de Janeiro) expressa a fase aguda dos embates ocorridos desde a Carta Régia de 1808, até 1824 – data do malogrado cerco da cidade de Vitória pelos Botocudos e, também, do decreto assinado pelo ministro do Império marquês de Queluz (João Severiano Maciel da Costa) traçando diretrizes em relação a estes índios que não incluíam a guerra ofensiva. Tal conflito, entretanto, só seria oficialmente revogado em 1831 com as Regências – embora, como se sabe, embates sangrentos ocorreram do século XVI ao XXI.

Assim como os Botocudos haviam enfrentado as consequências bélicas do peso da economia e da administração nos arredores da Bahia nos primeiros tempos da Conquista e colonização, estes índios se veriam cada vez mais cercados pelas novas condições da sociedade brasileira. O eixo do poder muda de Pernambuco e Bahia para o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, acompanhando o deslocamento que parcela dos Aimorés fizera anteriormente para a região que viria a ser denominada de Sudeste.

Trata-se de gesto significativo. Esta guerra contra os Botocudos, em sua mobilização de contingentes humanos, pela duração e, sobretudo, pela amplitude da área atingida (e de sua proximidade da Corte) pode ser colocada, em termos de importância, ao lado das outras guerras que o império luso-brasileiro praticou no território americano, como no Rio da Prata ao sul (contra a Espanha) e na Guiana (contra a França) ao norte. Ou seja, um conjunto de ações de tendência expansionista, visando ampliar o controle sobre o território, consolidar novas fronteiras internas e externas e atacar diferentes adversários deste império luso-brasileiro. A guerra aos Botocudos equivaleu, ou até superou em amplitude territorial e cronológica, às demais guerras deste período, incluindo a repressão à República de 1817 nas províncias do que viria a ser chamado Nordeste brasileiro.

Parece-nos importante assinalar: os anos que antecederam a declaração bélica de 1808 foram marcados por embates e ofensivas entre índios e colonizadores, onde as tribos muitas vezes tomavam a iniciativa e conseguiam expressivas vitórias e reconquista de terras. E, ao mesmo tempo, implantava-se lento e sólido processo de militarização da região.

Um dos estopins imediatos para a formalização da guerra foi uma denúncia, acompanhada de colorida aquarela. O denunciante e pintor da obra foi o padre Caetano da Fonseca Vasconcelos, vigário da igreja São Miguel de Piracicaba, em Vila Nova da Rainha (atual Caeté), Minas Gerais e membro de influente oligarquia. Ele realizou-a para acompanhar a carta que enviava ao príncipe Regente D. João pedindo providências urgentes para reforçar o combate aos índios Botocudos na região. Ou seja: para alcançar maior eficácia e vigor, seu discurso gerou imagens não somente verbais, mas iconográficas, buscando assim alertar e sensibilizar as autoridades, apostando no impacto causado pela eloquência da visualização da cena que narrava. Há forte sugestão de canibalismo, corpos esquartejados e mulheres e homens brancos mortos. As figuras dos índios estão associadas ao vampirismo e à satanização.

A posse da terra estava no cerne deste embate, mas não deve ser menosprezado o interesse pela mão de obra indígena no século XIX – que se acentuaria quando dada a crise do tráfico de escravos africanos em meados dos oitocentos. A Reconquista indígena em áreas de potencial econômico crescente gerou despovoamento de terrenos já Conquistados. Tal quadro ainda persistia na época da chegada da Corte Real, como nas Minas do Castelo, quando os habitantes de Barra do Rio do Castelo, Caxixe, Arraial Velho, Salgado e Ribeirão, às margens do rio Itapemirim (na capitania do Espírito Santo) não resistiram aos ataques dos nativos, abandonaram tudo e foram se estabelecer no litoral. A investida maciça e eficaz dos índios parece ter tocado nos brios e bolsos dos colonizadores, que começaram a traçar uma nova política de ocupação.

Bibliografia Básica

MATTOS, Izabel Misságia de. Civilização e Revolta: os. Botocudos e a catequese na Província de Minas. Bauru, SP: EDUSC, 2004
MOREIRA, Vânia Losada. Espírito Santo Indígena. Conquista, trabalho, territorialidade e autogovernos dos índios, 1798-1860. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2017.
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014
RESENDE, Maria Leônia C.; LANGFUR, Harold. Minas expansionista, Minas Mestiça: a resistência dos índios em Minas Gerais do século do ouro. Anais de História de Além-Mar, v. 9, p. 79-103, 2008.
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.

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