Revista Impressões Rebeldes

RESISTÊNCIAS NATIVAS

Ao contrário de desaparecerem da história, os sujeitos indígenas se mostraram (e se mostram) presentes em muitas situações. O que os colonizadores chamavam de “inconstância” tinha outro nome: rebeldia.

Manifestação indígena em Brasília, 2015. Diversos povos se reuniram em nome da demarcação de terras e fim do retrocesso na política. Foto: Lucio Bernardo Junior

Suelen Siqueira Julio

Suelen Siqueira Julio é doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestra pela mesma instituição e professora do Departamento de História do Colégio Pedro II. É também autora do livro “Damiana da Cunha: uma índia entre a ‘sombra da cruz’ e os caiapós do sertão (Goiás, c.1780-1831)” – Niterói, Eduff, 2017.

Durante muito tempo, pessoas e povos indígenas foram pouco considerados na escrita da história do Brasil. Geralmente abordados apenas nos primeiros momentos da invasão portuguesa, era como se os índios estivessem fadados a desaparecer, não havendo muito o que dizer sobre eles no decorrer da nossa história. Felizmente, essa visão vem mudando. Um olhar sobre a historiografia e sobre a própria realidade atual, mostra que uma maior visibilidade tem sido conferida aos sujeitos indígenas. Sem estes, não é possível compreender a história do Brasil e da América como um todo.
Longe de serem passivos, os povos indígenas mostraram uma grande capacidade de se adaptar, resistir e lidar com as realidades brutais, desencadeadas pelo processo de colonização. Essa capacidade explica por que, ao contrário de desaparecer, a população indígena no Brasil vem crescendo e em breve atingirá a cifra de 1 milhão de pessoas.

No caminho para conhecer mais acerca dos indígenas, é importante partir da ideia de que o rótulo “índios” – dado pelos colonizadores aos nativos da América – passa uma ideia muito homogeneizadora desses sujeitos. Uma grande diversidade de povos, línguas, costumes e modos de organização social tem sido historicamente reduzida a um punhado de estereótipos em torno de “índio” – palavra criticada por muitas pessoas que vêm afirmando suas identidades enquanto caiapós, tupinambás, xacriabás, guajajaras, mundurucus etc.

A diversidade manifesta-se também na história dos indígenas integrados à sociedade colonial. No decorrer do longo processo de afirmação do domínio português no Brasil, existiram diferentes status atribuídos aos índios. Uma primeira diferenciação feita pelos colonizadores foi a divisão entre aliados e inimigos. Os índios aliados eram aqueles que, por motivos diversos, atuaram ao lado dos portugueses nas guerras de conquista. Um exemplo famoso dessa situação envolveu os temiminós que, em meados do século XVI, batiam-se contra os tamoios na região da Guanabara. Após sofrerem derrotas, os temiminós viram nos portugueses os aliados que poderiam auxiliá-los em novos combates contra os tamoios. Para os lusos, por sua vez, a aliança com os temiminós era imprescindível para seu projeto de fixação no território – que exigia derrotar os tamoios e seus aliados, os franceses. Cabe destacar aqui, mais uma vez, que os povos indígenas não eram (e não são) todos iguais e que, portanto, havia relações de inimizades entre certos grupos nativos.

Os aliados deveriam ser considerados sujeitos livres, enquanto os índios inimigos, também nomeados “bravos”, poderiam ser escravizados. Embora no decorrer da colonização diversas leis tenham liberado, restringido e proibido a escravidão indígena, esta existiu durante todo o período. Conforme o domínio português se consolidava e a população indígena diminuía em razão das guerras, das epidemias e da própria escravização, mesmo os aliados vão sendo encaixados em posições cada vez mais subalternas.

Do ponto de vista dos portugueses, a liberdade dos aliados significava que não poderiam ser escravizados, mas deveriam cumprir uma série de obrigações. Uma delas era viver em espaços chamados de aldeamentos. Nestes espaços criados pelos colonizadores, os indígenas deveriam aprender um novo modo de vida, que envolvia aspectos como a adoção da religião católica, a prestação de serviços aos colonos e a atuação militar em defesa dos domínios da Coroa. Esperava-se que os novos súditos não saíssem do aldeamento sem permissão, aprendessem o idioma português e adotassem o modelo cristão de família. No entanto, as profundas transformações pelas quais os índios de fato passaram sob a ação de missionários nos aldeamentos não se faziam necessariamente nos termos esperados. Como destacou Maria Regina Celestino de Almeida no livro Metamorfoses indígenas, o “processo de transformação dos índios em súditos cristãos fazia-se, portanto, lentamente, com muitos recuos, desafios e rebeldias”. Ainda segundo a autora, contra as expectativas dos missionários e da sociedade colonial, elementos da cultura indígena mantinham-se, pelo menos por algum tempo, nos aldeamentos, como o “prestígio às chefias originais, a língua tupi, danças, músicas e instrumentos musicais, as casas amplas reunindo várias famílias, e a nudez”.

Os aldeamentos existiram em diversos locais da América portuguesa, atravessando todo o período colonial e além, pois muitos só foram extintos na segunda metade do século XIX. No Oitocentos, em visita a Goiás, o viajante Saint-Hilaire esteve no aldeamento de São José de Mossâmedes. O francês reparou que os índios conservavam vários de seus costumes e anotou em sua obra Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goyaz: “Assim, quando entre eles morre alguém de consideração, ferem-se no peito com pequenas flechas, ou melhor, dão grandes pancadas nas próprias cabeças para que sangrem. Se lhes nasce uma criança, não se contentam com o nome de batismo português: um dos anciãos da tribo confere outro, ainda, ao recém-nascido, e é geralmente o de algum animal. Os casamentos se celebram com um grande banquete e danças, durante as quais a noiva segura uma corda amarrada à cabeça do esposo (…)”.

 

O uso de cavalos e armas de fogo estão entre as adaptações adotadas por alguns povos indígenas e muitas vezes mobilizadas em seus movimentos de resistência. No século XVIII, os guaicurus do Mato Grosso tornaram-se hábeis cavaleiros. Na imagem, pintura de Jean-Baptiste Debret (Viagem pitoresca e histórica ao Brasil) retrata cavalaria guaicuru – 1822

 

A postura ativa dos índios e a persistência de costumes não europeus mostram que os aldeamentos foram mais do que fonte de mão de obra: foram também um espaço dos indígenas, onde estes “encontraram possibilidades de adaptar-se à colônia, recriando suas tradições e identidades”, escreve Almeida.
Para além de posturas cotidianas vistas como pouco cristãs pelos colonizadores, houve atitudes individuais e coletivas que expressaram uma franca rebeldia. Mesmo aliados dos portugueses, como os tupiniquins de São Vicente, tanto uniram-se a revoltas abertas quanto tiveram atitudes “inconstantes”. Assim os portugueses qualificavam ações como a de Tibiriçá, um chefe guerreiro tupiniquim que, segundo John Monteiro (na obra Negros da Terra) era “considerado pelos jesuítas um caso exemplar de conversão”. Tibiriçá, porém, causou enorme desagrado no “irmão Anchieta quando insistiu em sacrificar um prisioneiro guaianá ‘à moda gentilica’”. Anchieta relatou ainda que a insistência do chefe no sacrifício ritual foi apoiada com entusiasmo pelos demais índios presentes, mesmo os catequizados.
As atitudes rebeldes podiam se manifestar de forma mais coletiva, como as diversas revoltas indígenas que ocorreram dentro e fora dos aldeamentos. No final do século XVII, o jesuíta Mateus de Moura informava ao rei que enviara cinco índios do Norte para a aldeia de São Lourenço, localizada na capitania do Rio de Janeiro, em terras que hoje fazem parte do município de Niterói. A ordem de transferência partira da Coroa, o motivo: os cinco haviam liderado uma revolta no Rio Grande do Norte, conforme afirma a carta do padre, existente no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Na aldeia os rebeldes deveriam ser vigiados de perto pelos portugueses.

Na obra A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro no século XVIII, Maria Fernanda Bicalho aponta a existência de índios incorporados “à dinâmica da cidade colonial, servindo regularmente como soldados” e como força de trabalho em obras públicas e serviços urbanos. Ainda segundo a autora, em algumas ocasiões esses índios “rebelaram-se devido ao não pagamento de seus serviços, fugindo ao trabalho, pegando em armas, resistindo à prisão e ameaçando os demais soldados. Em outros momentos foram acusados de acoitarem [isto é, esconderem] soldados fugidos em suas aldeias e de atacarem e invadirem fazendas e engenhos, transformando-se assim em personagens daquele vasto ‘mundo da desordem’”.

Além das atitudes rebeldes dos índios livres, não se pode esquecer das revoltas promovidas pelos escravizados e nem dos amplos movimentos de resistência que ameaçaram seriamente a ordem que os portugueses buscavam impor. Tais ameaças foram especialmente graves em meados do século XVI, quando ao longo do litoral entre Cabo Frio e São Vicente ocorreu um poderoso movimento de resistência conhecido como Guerra dos Tamoios. Enquanto isso, na Bahia ocorriam movimentos semelhantes: motivados pelo contexto de epidemias, escravização e fome, os tupinambás promoveram grandes revoltas.
Diversos estudos que vêm se desenvolvendo nas últimas décadas nos mostram que ainda temos muito a conhecer sobre a trajetória de indivíduos e povos indígenas que viveram situações variadas, situações que não se resumem à revolta ou ao desaparecimento dos índios. Está aberto um campo fértil de estudo, que afirma para o conjunto da sociedade o papel que vem sendo desempenhado há séculos pelos indígenas: o de sujeitos históricos ativos. Papel do qual os indígenas há muito estão conscientes, a despeito da pouca importância que tantas vezes lhes foi atribuída.

Bibliografia Básica

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: Identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios Cristãos. Poder, Magia e Religião na Amazônia Colonial. Curitiba: Editora CRV, 2017.

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 (1994).

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goyaz. Trad. Clado Ribeiro de Lessa. 2 vols. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937 (1847).

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