Revista Impressões Rebeldes

UMA REVOLTA E MUITAS CABEÇAS

O processo punitivo ocorrido no sertão das Minas e Bahia no Século XVIII mostra como até para condenar era preciso respeitar o prestígio de cada um

Irenilda Reinalda Barreto de Rangel Moreira Cavalcanti

Irenilda Reinalda Barreto de Rangel Moreira Cavalcanti é doutora em História, autora da tese O Comissário Martinho de Mendonça: práticas administrativas portuguesas na primeira metade do século XVIII ( UFF, Niterói, 2010) e professora da Universidade Severino Sombra (Vassouras-Rio de Janeiro)

Abordados a partir de várias perspectivas, os motins coloniais despertam curiosidade pelo fato de que havia diferenças nas formas de reprimi-los e/ou de julgar e punir os participantes. Entendemos que a intensidade da repressão tinha a ver com a “qualidade” dos participantes ou com a motivação e possíveis consequências da revolta, ou seja, havia uma hierarquia subjacente que regulava as ações governativas. Tomamos como exemplo os motins dos sertões do Rio S. Francisco ocorridos em 1736 e já analisados aqui, na seção Revoltas, sob o título “Furores Sertanejos – Sertões do Rio São Francisco” para entender como essa hierarquização de pessoas e delitos influía na tomada de decisões.

Uma das fontes utilizada, que traz um relato sobre esses motins, foi produzida por Martinho de Mendonça de Pina e de Proença (1693-1743), governador interino de Minas Gerais e publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro, em 1896, sob o título “Motins do sertão e outras occorrencias em Minas Geraes (…)”. Para esse governador, as sublevações do sertão ocorridas entre maio e julho de 1736 foram o fato mais importante de seu período de governo.

Como motivação para a eclosão dos motins de 1736, a atual historiografia geralmente aponta a ampliação da base arrecadadora do quinto, devido à introdução do sistema de capitação em uma região que, até então, vivia ao seu modo e observando apenas os direitos costumeiros: a única contribuição que se pagava à Coroa era o dízimo sobre os produtos da terra, destinado à manutenção da Igreja.

Os tumultos se iniciaram ao se juntar gente para impedir o trabalho de um Comissário, que fazia cobranças para a Real Fazenda no sertão do Rio Verde (ao norte da capitania, próxima da atual Montes Claros). Logo após as primeiras alterações, Mendonça deu ordens para seguir para a região um corpo de Dragões e um grupo de capitães-do-mato, reforçando a ocupação militar. Os participantes deste motim seguiram um ritual: primeiro, avisaram que voltariam dentro de um mês, se não parasse o cadastramento dos escravos da região. Como não foram atendidos, na data marcada, atacaram violentamente, queimando casas e documentos, ferindo pessoas ou obrigando-as a aderir ao movimento.

Essa segunda fase aconteceu no dia 24 de junho de 1736, quando se juntaram cerca de duzentos moradores da região no Brejo do Salgado e marcharam para o Arraial de S. Romão, sob o comando de populares que se autodenominavam Juízes do Povo e Cabos. A força militar, ao ouvir boatos de que o número dos amotinados chegaria a cinco mil, fugiu em direção à região das Minas, em busca de segurança. Martinho ordenou que voltassem, pois achava exagerado aquele número de rebeldes.

Enquanto isso, os amotinados se reuniam novamente no Brejo do Salgado, agregando cúmplices: uns espontaneamente, outros sob coação. Pelo relato, os amotinados compunham-se de negros, mulatos e índios, pessoas consideradas das mais baixas categorias. Durante o levante, mataram um dos seus próprios comandantes, devido às suas grandes desordens. Ao chegar próximo à barra do rio Joquidai, o grupo se dispersou inesperadamente: ou por discordâncias internas ou porque não encontrou o apoio esperado nos moradores da região. Assim, as forças militares puderam cercá-los e prendê-los. Procedeu-se, então, ao julgamento sumário, seguindo-se a libertação daqueles em quem não se achava culpa. Nos meados de julho de 1736, Martinho de Mendonça comunicava a Gomes Freire de Andrada, governador do Rio de Janeiro e Minas Gerais, a prisão do capitão dos amotinados e, com esse fato, parecia chegar ao fim a desordem ocasionada pelos motins.

Pelo que o Governador interino deixou registrado, esse conflito envolveu pessoas de várias etnias e categorias sociais, revelando que, apesar das diferenças, poderia haver uma perigosa união entre esses indivíduos, principalmente quando estavam em questão os seus direitos presumidos. Era essa coligação que causava temor e tremor nos Ministros reinóis. Aí estavam os perigos internos apontados por D. Antônio Rodrigues da Costa, em sua famosa Consulta.

Em novembro de 1736, Martinho de Mendonça informa a prisão de Pedro Cardoso, um rico morador do sertão, que ele denomina “provocador do povo levantado”. Pedro Cardoso era também sobrinho de Domingos do Prado Oliveira e possuía extensas fazendas de gado, além de se ocupar com comércio de sal, de ferragens e de gêneros da Bahia. Apesar de ser considerado um dos principais potentados, foi enviado com mais quatorze presos para o Rio de Janeiro, de onde seguiriam todos para a Bahia, por serem considerados os principais líderes da revolta. Neste motim, vale destacar a participação de uma mulher: Maria da Cruz, mãe de Pedro Cardoso, sogra de Alexandre Gomes, um dos mais ricos moradores do sertão da Bahia, e de Domingos M. Pereira, irmão do vigário geral do Arcebispado. Apesar de sua vida estar envolta em muitas lendas, sem dúvida ela desempenhou um papel importante para a região noroeste de Minas Gerais. As polêmicas figuras dos clérigos estiveram presentes na pessoa do vigário António Mendes Santiago, que seria um dos principais amotinadores, responsável, inclusive, por escrever “um termo sedicioso e publicar editais de manifesta rebelião”.

Destacam-se ainda o filho de Martim de Mello, que havia sido secretário do “intruso” governo emboaba de Manoel Nunes Viana; e Antonio Tinoco Barcellos, cuja fuga foi comunicada a Gomes Freire de Andrada, em maio de 1737. Muitos outros envolvidos conseguiram fugir das Minas e se dirigiram tanto para o Rio de Janeiro, quanto para os sertões de Goiás, sendo o mais importante evadido o potentado Domingos do Prado.

Envolvida nestes acontecimentos, pode-se perceber a existência de várias redes de poder que, às vezes, se entrelaçavam e, às vezes, se contrapunham. Havia o grupo dos funcionários reinóis, liderados pelo Governador interino, que buscava o apoio de pessoas da região conflagrada, prometendo-lhes cargos e mercês em nome do Rei. Destacava-se, neste cenário, a figura de Domingos Álvares Ferreira que, juntamente com seus parentes e amigos, tentou enfrentar os revoltosos, ficando sua casa incendiada, os bens destruídos e roubados e sua vida ameaçada, por ser considerado “traidor do povo”. Havia também alguns militares reinóis simpatizantes dos donos de lavras da região do Sabará, opositores ao pagamento da capitação, como o Mestre-de-Campo João Ferreira Tavares.

Pelo documento escrito por Martinho de Mendonça, percebe-se a construção de hierarquias sociais, ligadas à participação nas atividades revoltosas, ou seja, havia três níveis de lideranças ou “cabeças”, que unia os níveis de responsabilidade nos motins com suas categorias socioeconômicas. Geralmente, as hierarquias sociais são construídas a partir de modelos de comportamento ou de pertencimento considerados exemplares e plenamente aceitos em dada sociedade. Como é oriunda da inclusão/exclusão de grupos identitários, sua definição provém de instâncias do poder, que se arrogam o direito de separar e classificar, segundo parâmetros previamente definidos. Assim, as categorizações apontam para características que criam identidades e diferenças entre os vários grupos sociais envolvidos.

Lembramos que a questão da distinção social era fundamental para a sociedade extremamente hierarquizada do Antigo Regime europeu, transplantada para as colônias ultramarinas. Essas distinções se baseavam primeiramente no nascimento, classificando os nobres e os plebeus a partir de sua consanguinidade. Esta era, portanto, uma diferença naturalizada. Havia também diferenças construídas tendo por base: (a) fatores econômicos, isto é, de acordo com a atividade exercida, com a limpeza de mãos ou não, com o trabalho manual livre ou escravo, se na posição de proprietários de fazendas ou minas, se comerciantes de grosso trato ou mascates etc.; (b) fatores étnicos: brancos, mulatos, negros, indígenas, mamelucos etc.; (c) fatores religiosos: cristãos-novos ou velhos, judeus, mouros, gentios etc. Todas essas categorias se mesclavam para compor figuras individuais, que eram classificadas hierarquicamente a partir deste mix, sendo alguns desses fatores mais degradantes que outros, como era o caso da escravidão do africano.

Entendemos então, que Martinho de Mendonça criou uma tipologia dos envolvidos, baseando-se nessa hierarquia de responsabilidades e no que apregoava as Ordenações Filipinas. Segundo ele, “em todas estas inquietações se podem considerar três gêneros de Cabeças: (1) Os mais principais: homens poderosos no país e estabelecidos nele, que acostumados a viver sem mais lei que a da sua vontade, procuraram impedir o pagamento da capitação, […]; (2) Segundas cabeças e na aparência primeiras, quatro ou cinco pessoas que tinham pouco ou nada o que perder e, ocultamente instigados dos outros, começaram os motins; (3) Os terceiros pareciam cabeças, ainda que realmente não o são, porque neste emprego, introduziram maliciosamente gente meio rústica […].”

Aqui, ele se valeu da figura discursiva dos vários tipos de “cabeças”, construindo uma hierarquização em que se misturam os elementos socioeconômicos e étnicos. Os primeiros “cabeças” são homens brancos, ricos e poderosos, donos de gado e terras, que mantinham seus bandos armados. Seriam aqueles que mais tinham a perder com a implantação do recolhimento do quinto sobre o ouro e com a efetiva organização dos poderes da Coroa em seus territórios de mando. Os segundos “cabeças” são representados por um conjunto misto de formadores de opinião, que vão desde clérigos até agregados dos potentados. São pessoas acostumadas a “arrumar as coisas” para os seus “padrinhos”. Os terceiros “cabeças” são elementos do povo – a chamada arraia-miúda – que não tinham motivos reais para se revoltar, a não ser seguir a orientação dos “capitães” dos potentados. A esses, Martinho de Mendonça não reputou tanta culpa, pois os via como massa de manobra. Formavam bandos armados, sustentados pelos potentados, que desde sempre espalhavam violência pela região. Estavam nesse grupo índios, escravos africanos, mulatos e mamelucos.

Ao distinguir três grupos de participantes nos motins, Martinho de Mendonça estava querendo identificar os verdadeiros responsáveis pelo movimento, inicialmente apontado como uma agitação de cunho popular. Para explicitar os primeiros “cabeças”, dividiu os revoltosos em dois grupos – quem tinha a perder ou a ganhar com o motim – de onde conseguiu distinguir os reais mandantes e os subordinados. Por fim, criou a hierarquia dos três “cabeças”: os idealizadores, os comandantes e os executores. Nessa sua hierarquização, vemos que se misturaram os elementos socioeconômicos e étnicos: homens brancos ricos e poderosos, homens brancos subordinados, e elementos indígenas, africanos e mestiços, situados nas camadas mais baixas da sociedade, os executores.

Com a metáfora das três cabeças, Martinho de Mendonça também aponta para a qualificação do delito e sua punição, pois, nas Ordenações Filipinas, os crimes também eram separados por “cabeças”. Entre os crimes de primeira “cabeças” estavam os de lesa-majestade, passíveis de condenação à morte, incluindo-se aí as conjuras e os levantamentos dos povos, como foi o caso em questão.

Diferente de outras ocasiões, em que os revoltosos foram duramente punidos, neste motim a responsabilidade recaiu sobre os mandantes que, aprisionados, tiveram suas devassas demoradamente analisadas, primeiro em Salvador e depois, em Lisboa. As penas não foram tão severas, mas suas prisões e confiscos serviram de exemplo. A “arraia miúda” sofreu punições variadas e brandas, e muitos participantes foram perdoados. O padre mesmo advertido pelo bispo de Pernambuco, continuou a promover desordens pelos sertões por muito tempo. Resta-nos perguntar: por que neste caso o governador agiu com tanta cautela? Seria devido a sua condição de interinidade ou a sua faceta iluminista?

Bibliografia Básica

BOTELHO, Angela V.; ANASTASIA, Carla M. J. D. Maria da Cruz e a sedição de 1736. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

CAMPOS, Maria Verônica. “Governo de mineiros: de como meter as minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado, 1693 a 1737”. São Paulo: USP/FFLCH, 2002 (Tese de Doutorado).

ORDENAÇÕES FILIPINAS, Liv. V, Tit. 6: Do crime de lesa-majestade. Disponível no url: <www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=88&id_obra=65&pagina=12>. Acesso em 11/07/2014.

RODRIGUES, Gefferson Ramos. No sertão a revolta: grupos sociais e formas de contestação na América Portuguesa, Minas Gerais- 1736. Dissertação (Mestrado em História). Niterói, RJ: Universidade Federal Fluminense, 2009.

SOUZA, Alexandre Rodrigues de. A rebelde do sertão: Maria da Cruz e o motim de 1736. Varia História. [online]. Belo Horizonte: UFMG, vol.29, n.50, p. 453-475, maio/ago., 2013. Disponível no url: http://www.scielo.br/pdf/vh/v29n50/05.pdf. Acesso em: 14 ago. 2014.

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