Revista Impressões Rebeldes

SUSPEITOS NO RIO DE JANEIRO

Após o grande impacto da Inconfidência Mineira de 1789, o temor de novas conspirações tomou conta da colônia. Na capital do Brasil, letrados se reuniam para compartilhar saberes científicos, mas as autoridades locais desconfiaram que havia algo a mais.

“Os Arcos e o Convento de Santa Tereza”, gravura do inglês Richard Bate (1820), retrata locais de grande circulação, difusão de informação e leituras em voz alta, como o aqueduto da carioca (acervo Itaú enciclopédia cultural)

Gustavo Henrique Tuna

Gustavo Henrique Tuna é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese “Silva Alvarenga: representante das Luzes na América portuguesa” (2009). É vencedor do Prêmio Jabuti de 2011 e 2018, e pesquisador colaborador do Departamento de História da USP, onde realiza estágio de pós-doutorado.

As academias foram na Europa importantes espaços de construção e disseminação de conhecimento desde pelo menos o século XVII, quando passaram a acolher homens de ciência dedicados a investigar a natureza (suas potencialidades e fenômenos) e a apoiar seus inventos. No mundo português, tais instituições ganharam corpo na metrópole durante o governo de D. João V (1706-1750) e se dinamizaram durante os reinados subsequentes de D. José I (1750-1777) e de D. Maria I (1777-1816), merecendo destaque a fundação, em 1779, da Academia Real das Ciências de Lisboa – instituição que balizaria os rumos da cultura lusitana. Na América portuguesa, também assistiu-se ao despontar de academias nas quais homens de letras de diversas formações e ocupações promoviam a circulação de saberes. Na cidade do Rio de Janeiro em fins do século XVIII, teve lugar uma das mais relevantes agremiações acadêmicas do período colonial brasileiro.

Movidos pelo propósito de compartilhar conhecimento científico entre si, um grupo de letrados nascidos no reino e na colônia fundaria, em 1786, a Sociedade Literária do Rio de Janeiro. Além de médicos e cirurgiões – alguns deles integrantes da precedente Academia Científica do Rio de Janeiro – na Sociedade também figuraram químicos, advogados e professores régios. Com o aval do vice-rei do Estado do Brasil Luís de Vasconcellos e Sousa (1778-1790), a academia funcionou com relativo vigor, ao que se sabe, até pelo menos o ano de 1790. Contudo, o desinteresse do governante em apoiar de forma efetiva as realizações da agremiação – provavelmente pelo receio em estimular aparelhos ligados à disseminação da cultura e da educação na colônia – e a insuficiente condição econômica de seus membros para arcar com os custos do desenvolvimento de seus trabalhos – que também esperavam o amparo financeiro por parte do poder real ou, eventualmente, de algum mecenas – acabariam por arrefecer os ânimos e interromper seu funcionamento.

Já durante o vice-reinado de José Luís de Castro, o Conde de Resende (1790-1801), a Sociedade retomaria seus encontros, sobretudo graças ao empenho de um de seus sócios: o poeta, advogado e professor régio de Retórica e Poética Manuel Inácio da Silva Alvarenga. Ele foi o responsável por alugar uma casa de dois andares na rua do Cano (atual Sete de Setembro), reservando o andar inferior para as reuniões e pertences da academia. Contudo, em 1794, alcançou os ouvidos do vice-rei menções a perturbadores diálogos travados entre alguns letrados que integravam a Sociedade com a participação de homens que exerciam ofícios mecânicos. Em boa parte destas conversas, seus participantes manifestariam não só descontentamento e desaprovação em relação ao regime monárquico e à figura do vice-rei, como também emitiam juízos ofensivos à doutrina católica e aos que a ministravam na localidade. Uma denúncia trazendo pormenores das confabulações perigosas foi feita por José Bernardo da Silveira Frade, rábula (advogado sem formação acadêmica que obtinha autorização para exercer a postulação em juízo) que chegara a tomar parte de alguns encontros da Sociedade. O relato daria ensejo ao fechamento da academia, ao encarceramento de alguns de seus membros e de outros homens citados nas conversas e à abertura de um processo de devassa, destinado a averiguar essencialmente se estava em curso algum plano de sedição que ameaçasse os poderes estabelecidos.

Entre os meses de dezembro de 1794 e fevereiro de 1795, 61 testemunhas foram ouvidas. Os depoimentos trazem amostras expressivas de diálogos ocorridos em locais públicos e privados da cidade do Rio de Janeiro, nos quais homens externavam suas insatisfações relacionadas aos abusos de poder dos reis e a preceitos da religião católica que permeavam seu cotidiano. Além de membros das corporações militares, entre os chamados a depor estiveram entalhadores, marceneiros, alfaiates e outros trabalhadores manuais que mencionam conversas presenciadas ou que chegaram aos seus ouvidos.

A leitura dos depoimentos deixa entrever que no desfecho dos Setecentos muito se falava sobre política na capital do vice-reino do Estado do Brasil. Não apenas em ambientes privados, como também em espaços de livre circulação de pessoas como no cais, na praia, nas igrejas e capelas, na porta de estabelecimentos como boticas, dentre outros. Os relatos indicam que tanto a fiscalização existente nas alfândegas de Lisboa e do Rio de Janeiro, como o analfabetismo de boa parte da população da localidade não se configuravam como barreiras que impediam que adentrassem na colônia notícias sobre as agitações que se passavam na Europa em fins do século XVIII. Gazetas e mercúrios são mencionados pelos depoentes como impressos vistos nas mãos de homens que se dedicavam a lê-los em voz alta, fazendo chegar ao conhecimento dos que não tinham a habilidade da leitura muito do que transcorria noutros cantos do globo. É o que se vê nas palavras de José Teixeira, uma das testemunhas convocadas a depor na devassa, que declara:

[…] se achou algumas vezes na botica de José Luís, que fica defronte da capela do Carmo, em ocasiões que chegavam navios da Europa; e então aparecia um bacharel chamado Mariano, filho de um homem denominado por alcunha o Biscoito, o qual trazia o correio da Europa e aí o lia, mostrando uma grande satisfação dos progressos que os franceses faziam, louvando-os de grandes homens e guerreiros e que, como nos ditos correios da Europa se falava na liberdade da França, ele testemunha, dizia ‘que liberdade tem esse esses cachorros dos franceses, se eles estão matando uns aos outros?’[…]

Não são raros depoimentos no qual a testemunha, ao descrever com certo detalhamento as situações que vira ou ouvira falar de homens proferindo opiniões desfavoráveis aos reis e à Igreja Católica, faz questão de realçar sua desaprovação em relação às agitações políticas que se desenrolavam na França em fins do século XVIII, procurando expor sua total fidelidade à monarquia portuguesa. Contudo, os depoimentos na devassa acabam por desnudar um cenário significativo de inconformismos com o status político da colônia, insatisfações que pareciam estar espraiadas para além da camada letrada.

Os testemunhos indicam, assim, que os incômodos não residiam somente entre professores régios, médicos, botânicos e outros integrantes da elite ilustrada, mas também pulsavam nos corações e mentes de membros das camadas intermediárias, que se sentiam vexados com a exploração econômica a que estavam sujeitados na colônia. Nesta seara, pode-se destacar como exemplo a fala atribuída a um dos presos, o marceneiro João da Silva Antunes, o qual teria se queixado de que “os reis eram como o tesoureiro dos ausentes que, quando morre alguma pessoa e vai à sua casa, no que somente cuida é em ver o que pode furtar.”

Na sequência dos depoimentos das testemunhas, os onze acusados foram submetidos a inquirições pelo desembargador-chanceler da Relação do Rio de Janeiro, Antonio Diniz da Cruz e Silva. O mesmo magistrado que atuara, poucos anos antes, nas inquirições realizadas no âmbito do processo da Inconfidência Mineira. Os réus foram confrontados por Cruz e Silva com as falas a eles atribuídas por algumas testemunhas, sendo o professor régio Manuel Inácio da Silva Alvarenga submetido ao maior número de inquirições. Por sua residência ter operado como sede da Sociedade Literária do Rio de Janeiro nos últimos tempos de sua atividade e também por ter sido mencionado por diversos depoentes, era natural que sobre ele recaíssem mais fortes suspeitas a respeito de sua participação nas supostas conversas sediciosas.

O penar dos suspeitos conspiradores do Rio de Janeiro duraria quase 3 anos. Com a demora para se dar contornos definitivos ao caso, o desembargador-chanceler Cruz e Silva, certamente a contragosto, acabaria sendo instado a findar o impasse que já começara a causar constrangimento nas autoridades coloniais. Afinal de contas, propagara-se largamente na cidade e em outras partes da América portuguesa a notícia de que aqueles homens prosseguiam sob cárcere na Ilha das Cobras sem a efetivação de um julgamento. Em seu parecer, Cruz e Silva recomendou a soltura dos presos, sugerindo, todavia, a permanência de um olhar atento sobre suas condutas.

Muita tinta foi gasta pela historiografia no sentido de posicionar a movimentação de ideias que integrou o universo da Sociedade Literária do Rio de Janeiro como parte do processo histórico que teria culminado na independência política do Brasil. Já no século XX, historiadores como Pedro Calmon e Américo Jacobina Lacombe posicionaram como sediciosas as intenções dos letrados de 1794 e enxergaram nelas ímpetos nativistas. Em estudo que se constituiu num divisor de águas sobre o tema, Afonso Carlos Marques dos Santos postulou que as aspirações daqueles homens não guardam ligação causal com a ruptura que se dá em 1822, e que seria um anacronismo estabelecer tal relação. Em seu ponto de vista, estabelecer tal relação seria um equívoco, uma vez que isso implicaria considerar que o processo de Independência política que se sucedeu já era uma realidade pensada num contexto histórico anterior. Perspectiva efetiva que, de fato, não existia.

Em estudo que justapõe as aspirações ilustradas dos letrados encarcerados no Rio de Janeiro de 1794 com os ímpetos dos envolvidos na Inconfidência de Goa, na Índia portuguesa, levada à cabo em 1787, a historiadora Anita Correia Lima de Almeida identificou semelhante desgosto das elites de ambas as colônias ultramarinas diante do lugar a elas reservado no quadro do reformismo ilustrado; que se desenhara durante o reinado de D. José I e perdurou no governo de D. Maria I.

É plausível presumirmos que as conversações decorridas nos encontros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro não tenham ficado restritas à seara científica, visto que aqueles homens estavam aptos e ávidos por compartilhar entre si informações de toda sorte. Alguns letrados haviam estudado na Universidade de Coimbra e em outras partes da Europa e, após suas estadas, retornaram à América portuguesa capacitados e motivados a colocar em prática o que haviam assimilado. Os livros, gazetas e mercúrios (outra designação para periódicos) que aportavam e circulavam na cidade seriam os instrumentos pelos quais muitos conheciam o desenrolar das agitações políticas nas monarquias europeias e seus domínios para, a partir de então, disseminar a seu modo os contornos de tais contextos. A independência dos Estados Unidos e os processos revolucionários em ebulição na França e no Haiti, por exemplo, eram algumas das transformações que compunham este cenário de tensões políticas de ordem global cuja marcha reverberava na América portuguesa, principalmente entre as elites letradas.

É verossímil apontarmos que a situação colonial em que estavam inseridos levaria alguns daqueles homens de letras a se dar conta das circunstâncias que se impunham para o pleno exercício de suas funções. Formados dentro do compromisso de manterem sua fidelidade à monarquia no fito de serem por ela recompensados, aqueles espíritos estavam expostos aos ventos moderados da Ilustração que sopravam nas metrópoles ibéricas e que adquiriam muitas vezes novas direções ao alcançarem as fronteiras do ultramar. Muitos daqueles letrados se empenhavam vigorosamente para conectar a colônia num verdadeiro circuito global das Luzes.

Contudo, simultaneamente ao rarefeito amparo que tinham para a realização de suas atividades científicas, eles exerciam seus ofícios sob o signo da suspeita, o que certamente conduziu muitos deles, numa conjuntura de intensas mudanças políticas de ordem internacional como era aquela do último quarto do século XVIII, a refletirem sobre as especificidades de viver em território lusoamericano.

Bibliografia Básica

ALMEIDA, Anita Correia Lima de. Inconfidência no Rio de Janeiro: Goa de 1787 e Rio de Janeiro de 1794. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2011.
NEVES, Guilherme P. C. Pereira das. “Rebeldia, intriga e temor no Rio de Janeiro de 1794”, Comunicação apresentada na XXIV Reunião Anual da SBPH, realizada em Curitiba entre os dias 26 e 30 de julho de 2004.
SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. No rascunho da nação: Inconfidência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992.
STARLING, Heloisa M. Ser republicano no Brasil Colônia: a história de uma tradição esquecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Fontes Impressas

AUTOS da Devassa: Prisão dos letrados do Rio de Janeiro – 1794. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002

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