Revista Impressões Rebeldes

A GUERRA DOS CACETES BENTOS

Na região do Cariri, capitania do Ceará, um padre e um militar monarquistas lideraram no século XIX a repressão contra os liberais empregando recursos militares curiosos

Pintura em azulejo de Armando Lopes Rafael (2010), representando Joaquim Pinto Madeira, militar monarquista convertido em mártir. Seminário Cariri Cangaço.
16 de novembro 2023 Ano 11, n. 2 (jul-dez), 2023

Maria Jorge dos Santos Leite

é Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará- UFC, professora-adjunta da Universidade de Pernambuco-UPE, professora permanente do Programa de Pós-graduação em Educação-PPGE. É autora do artigo “A influência das revoltas liberais no Cariri cearense e a "sedição de Pinto Madeira”, ANPUH, Natal/RN, 2013.

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Crato e Jardim são dois municípios do Cariri cearense que na atualidade mantêm  relações econômicas, sociais e culturais amigáveis. Mas, nem sempre foi assim. No passado tiveram fortes rivalidades. Segundo João Brígido, os desentendimentos  originaram-se  com a emancipação política de Jardim, separando-se de Crato em 1814 e  causando prejuízos econômicos ao município. (BRÍGIDO, 2001.)

Os conflitos acirraram-se a partir das manifestações liberais do século XIX em Pernambuco, como a Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador de 1824, que tiveram fortes repercussões no Cariri cearense, colocando em lados opostos republicanos liberais cratenses e monarquistas jardinenses. Mais tarde, toda essa instabilidade desaguaria em uma revolta em 1832 que ficou conhecida como Sedição de Pinto Madeira ou Guerra dos Cacetes Bentos.

Na condição de militar e monarquista, Joaquim Pinto Madeira nasceu em Barbalha, Ceará, participando ativamente do combate às revoluções liberais na região do Cariri, lideradas pela família cratense de Martiniano de Alencar. Após a derrota dos liberais, no confronto em Jardim, no qual Leonel Pereira de Alencar e seu filho, Raimundo Pereira de Alencar foram assassinados pelos monarquistas em 1824, coube a Pinto Madeira conduzir a família de Alencar à prisão em Fortaleza. Narram os historiadores que no percurso à capital esses presos teriam sofrido humilhações por parte de Madeira.

Segundo Irineu Pinheiro, os liberais cratenses nunca perdoaram a ação do militar naquelas duas agitadas fases de suas histórias. Por outro lado, Pinto Madeira, acérrimo inimigo dos republicanos e liberais, mais tarde, na abdicação do Imperador dom Pedro I ao trono brasileiro em 7 de abril de 1831, aliou-se ao vigário de Jardim, Padre Antônio Manoel de Sousa, para atacar os republicanos de Crato. Sua justificativa era de que os liberais brasileiros teriam forçado o Imperador a abdicar. Começou em seguida a Sedição de Pinto Madeira, ocorrida em 1832, e considerada por historiadores um desdobramento das revoltas 1817 e 1824 no Ceará. 

O prestígio de Pinto Madeira no Cariri era sustentado pelo Imperador. Com a queda deste em 1831 os liberais republicanos de Crato puseram em prática sua vingança contra o militar, passando a atacar os monarquistas de Jardim. Mesmo sofrendo ataques, Pinto Madeira, juntamente com o padre Antônio Manoel de Sousa, continuou demonstrando seu incondicional apoio ao Imperador e defendendo seu retorno ao trono. Já cansados das acusações sofridas e das oposições enfrentadas, Pinto Madeira e o padre não conseguiram conter o ódio contra os cratenses que, sob seu ponto de vista, estavam cada vez mais próximos de alcançar seu objetivo, a República.  

Aliado de Pinto Madeira, Antônio Manoel de Sousa nasceu no Rio Grande do Norte, em 1776 e teria chegado a Jardim em 1816 para assumir a Paróquia de Bom Jesus.

Com a sua tática de Bom Pastor, imediatamente, magnetiza, por assim dizer, a população da região. Exerceu sobre ela um grande fascínio que lhe deu condições de conciliar as suas qualidades de homem culto, muito inteligente, com um trabalho de arregimentação permeado de misticismo, e de fanatismo da população do Cariri, e principalmente a de Santo Antônio do Jardim onde esta serviu aos interesses políticos (BRITO, 1979,p.62).

Desde os primeiros dias à frente da Paróquia de Jardim, o padre já deixava claro  suas tendências absolutistas  através de eloquentes sermões. Relacionava sempre Altar e Trono, Deus e Rei, construindo uma união indissociável entre o religioso e o político. Nessa perspectiva, atribuía à Providência Divina a vitória dos monarquistas sobre os liberais-republicanos em 1817 e 1824. Tal postura era plenamente aceita naquela sociedade conservadora e de tendências monarquistas.

Em 1832 chegou o momento do enfrentamento entre monarquistas jardinenses e republicanos cratenses. Após invasões à vila de Jardim pelos liberais, nas quais os monarquistas lutavam com porretes (ou “cacetes”), o militar Pinto Madeira, mesmo sem preparo suficiente para a guerra, convocou seus aliados e seguiu em direção à vila de Crato. Os cratenses, tomando conhecimento da pretensa invasão dos jardinenses,  avançaram contra estes. As duas tropas se enfrentaram no sítio Buriti, próximo à vila de Barbalha, travando ali mesmo uma batalha sangrenta da qual os monarquistas julgaram-se vitoriosos. Em seguida, vieram várias  outras batalhas  com vitórias e derrotas para ambas as partes, até a rendição das tropas pintistas.

O padre Antonio Manoel de Sousa, além de ser o “estrategista” do movimento de 1832, participou ativamente dos conflitos ocorridos durante a rebelião, chegando algumas vezes a comandar uma tropa, enquanto Pinto Madeira comandava outra.

Utilizando-se de seu poder de persuasão, quer pelos seus dotes oratórios, quer pelo fanatismo que difundia em meio aos seus fiéis, Antonio Manoel de Sousa conseguiu um verdadeiro exército de “cabras” para lutar ao lado de Pinto Madeira. A grande maioria sem nenhuma instrução constituía fácil massa de manipulação: eram homens tementes a Deus e fiéis ao seu coronel (SANTANA, 2011, p. 67).

Entretanto, a participação mais curiosa do padre Antônio Manoel de Sousa, na sedição deveu-se ao fato de ter armado seus aliados com porretes de madeira que eram benzidos por ele, chamados de “cacetes bentos” . Porém, diante da grande quantidade de cacetes que se prenunciava para receber a bênção, para agilizar o procedimento, adotou-se a prática de se escolher uma mata inteira de onde seria retirada a madeira para a confecção das armas e pronunciar a bênção sobre toda ela. Em decorrência deste fato, o clérigo passou a ser chamado de Padre “Benze Cacetes”.

Tomando conhecimento daquela rebelião, a Província do Ceará, de tendência liberal, pôs as cabeças do militar e do padre a prêmio. A partir desse momento iniciou-se uma série de perseguições que culminaram com a rendição e prisão de Pinto Madeira e do padre, pondo fim à rebelião. Após passarem por prisões em pelo menos três capitais do nordeste, chegou a hora do julgamento dos rebeldes. Para tanto, em novembro de 1834, Pinto Madeira foi conduzido ao Crato, terra de seus maiores inimigos, onde seria julgado. 

Historiadores afirmam que o júri constituído para o julgamento de Pinto Madeira  não foi imparcial. Os conhecedores dos fatos logicamente esperavam que Pinto Madeira fosse julgado pelo crime de rebelião, por ter liderado os revoltosos de 1832 contra os liberais republicanos de Crato. Mas não foi o que aconteceu. Surpreendentemente, ele foi acusado de crime de morte pelo assassinato do republicano Joaquim Pinto Cidade, ocorrido na Batalha do Buriti. O promotor teria acusado o réu de ser a pessoa que ordenou a execução daquele crime. Na acusação, o promotor teria encerrado assim suas palavras: “O réu, é um homem mau, péssimo, sem religião, já afeito a matar […] deve ser afastado da sociedade como ente pernicioso” (FIGUEIREDO FILHO, 1966, p.40).

Na sua defesa, o réu teria assumido a rebeldia, identificando-se como o líder dos revoltosos de 1832, mas negou a autoria daquele crime pelo qual estava sendo acusado. Afirmou, na ocasião, que durante a Batalha do Buriti, ao alcançar a tropa comandada por Francisco Xavier de Mattos, aliado da família Martiniano de Alencar, comandante da tropa revolucionária liberal, Pinto Cidade já havia sido morto.

Segundo Figueiredo Filho, compareceram ao júri apenas três testemunhas de defesa, sendo que o juiz não permitiu a transcrição dos depoimentos de duas delas, e o da terceira foi completamente modificado. Diante do exposto, não é surpresa constatar que o juiz decidiu pela condenação de Pinto Madeira. 

Ao ouvir a sentença, o réu teria dito: – Apelo!. Foi então que o juiz replicou-lhe com arrebatamento: – Não tem apelo nem agravo, senhor coronel, prepare-se para morrer” (FIGUEIREDO FILHO, 1966, p.41).

Na manhã de 28 de novembro de 1834, menos de quarenta e oito horas após seu julgamento, Pinto Madeira foi levado para seu calvário no Alto do Barro Vermelho, subúrbio da vila de Crato – hoje bairro Pinto Madeira. Durante o percurso fúnebre do qual faziam parte o carrasco, dois guardas, algumas autoridades e dois padres chamados “confessores da agonia”, o condenado teria pedido a estes que conseguissem com as autoridades presentes a permutação de sua pena de enforcamento para fuzilamento, em atenção à função militar que exercera (SANTANA, 2011). Depois de muita discussão entre os condutores da execução, o pedido de Pinto Madeira fora concedido. Relatam-se, ainda, que instantes antes do fuzilamento, um de seus maiores inimigos, José Francisco Pereira Maia, ofereceu-lhe um lenço para que vedasse os olhos, mas o condenado teria recusado.

Após a execução de Joaquim Pinto Madeira e dadas as condições em que ocorreu o seu julgamento, as opiniões sobre a figura desse ex-militar passaram a dividir a população do Cariri cearense. Para uns, ele é visto como mártir, por não ter tido o direito a um julgamento justo, para outros trata-se de um militar autoritário que iludiu os jardinenses a ingressarem numa luta sangrenta que só visava garantir seus próprios privilégios adquiridos durante o  Primeiro Reinado.

Quanto ao companheiro de luta de Joaquim Pinto Madeira, Antonio Manoel de Sousa, o “padre Benze Cacetes”,  ele foi posteriormente julgado e absolvido da condenação. O religioso morreu pobre e cego, em 5 de setembro de 1857, na vila de Jardim. Sem honras, sem prestígio e abandonado por todos.

Bibliografia Básica

BRÍGIDO, João. Ceará, Homens e Fatos.  Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.

BRITO Sócrates Quintino da Fonsêca e. A rebelião de Joaquim Pinto Madeira. Fatores Políticos e Sociais. Dissertação de mestrado(mimeo). Florianópolis/SC: UFSC, 1979.

FIGUEIREDO FILHO, J. de.  História do Cariri. Crato: Faculdade de Filosofia, 1966.

PINHEIRO, Irineu.  Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963.

SANTANA, Nélcia Turbano. Pinto Madeira, nem herói nem vilão. Jardim: Gráfica Editora Royal, 2011.

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