Revista Impressões Rebeldes

REBELIÃO EM ALTO MAR

Marinheiros de dois navios negreiros ficam em apuros quando, no século XVIII, os escravizados se rebelam e tomam conta das embarcações no sul da América

Cena retrata escravizados embarcados na coberta do navio. Detalhe da ilustração do livro L'Abîme. Nantes dans la traite atlantique et l'esclavage colonial 1707-1830. Gualdé, Krytel. Éditions du Château des ducs de Bretagne, 2021.

Maria Verónica Secreto

Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), autora de “Narrativas em torno de revoltas a bordo de navios negreiros: os vários Benito Cereno” In: Gelado, V e Secreto, M. V. Afrolatinoamérica: estudos comparados.1 ed., Rio de Janeiro : Mauad X, 2016, v.1, p. 29-48

O escritor norte-americano Herman Melville (1819-1891) em sua novelle “Benito Cereno” ficcionalizou a revolta escrava acontecida a bordo no navio La Prueba, fragata de origem norte-americana de nome Tryal equipada para caçar lobos marinhos, detida em Valparaíso sob acusação de contrabando e arrematada pela Real Audiência em 1802 (Salas, 1936, p 29). A ficção se baseia no relato de viagem do capitão Amasa Delano intitulado Narrative of Voyages and Travels in the Northern and Southern Hemispheres (1817).

No ano de 1799, o capitão Amasa Delano da novela de Melville tinha ancorado na enseada da ilha Santa Maria, nas águas do Pacífico Sul, perto da costa do Chile, quando, numa manhã cinzenta, avistou um navio entrando na mesma baía que estava fundeado. Os movimentos do barco mais ou menos distante prenderam sua atenção. Atraiu-lhe a imperícia, a incerteza com que era conduzido, por momentos dirigindo-se diretamente contra as rochas. Motivado pelos códigos de solidariedade marítima, Delano tomou um bote e alguns homens, carregou peixe, – necessário caso a tripulação do outro navio estivesse há muito tempo em alto mar – e se dirigiu a abordá-lo.

Quando a bordo, descobriu que se tratava de um barco negreiro espanhol (na ficção o navio se chama Santo Domingo, talvez uma alegoria à ilha que passava pela maior revolução atlântica). Seu capitão, Dom Benito Cereno, estava debilitado por causa de todas as desgraças que tinham lhe acontecido. Tantas, que eram indizíveis. Delano tentou de muitas maneiras obter um relato “coerente” do acontecido, mas não conseguiu. Esse era sempre fragmentado e incompleto. O primeiro relato articulado por Cereno, para explicar a condição calamitosa da embarcação, tripulação e carregamento, foi que tinham saído de Buenos Aires havia cento e noventa dias, com mercadorias, passageiros e mais de 300 escravos com destino a Lima. Mas na passagem do Cabo de Horn, o Santo Domingo fora açoitado por uma tempestade, na qual perderam-se muitos homens – oficiais e marinheiros –, e os restantes tiveram que se desfazer de parte do carregamento que estavam na coberta, incluindo a água. Depois, sobreviveram o escorbuto, as calmarias, febres, falta de água e mais mortes.

Durante a conversa, Delano interpretou a presença constante e vigilante de Babo, o criado negro do capitão, como sinal de dedicação e obediência. Não obstante achava que havia algo de estranho no navio negreiro: a indisciplina dos escravos, a quebra de hierarquias, o desleixo dos tripulantes.

Os ventos favoráveis permitiram que o experimentado capitão Delano fizesse a manobra necessária e fundeasse o Santo Domingo com segurança. Na hora da despedida lhe pareceu que Benito Cereno queria dizer algo, mas não falou. O caçador de focas desceu, subiu no bote e, quando se afastava de La Prueba, viu  Cereno pular do barco gritando e pedindo ajuda. Detrás dele pulou Babo. Mesmo que esse último pulo pudesse ser interpretado como mais um ato abnegado do criado, Delano logo compreendeu que havia estado a bordo de um barco tomado pelos escravos e que o que tinha presenciado era uma encenação de uma suposta “normalidade” na rotina de um navio escravista. Babo era o vigia atento que mantinha sob ameaça o capitão, para que este não falasse nada.

A isso se seguiu a retomada do navio pelas autoridades locais e a condução dos sublevados à justiça. As declarações das testemunhas ante os juizes, o silêncio de Babo, e a pena de morte para ele, líder do motim, fizeram parte do mesmo enredo.

Como os escravizados poderiam esconder a revolta em pleno curso? Na versão preparada para satisfazer a curiosidade do capitão norte-americano, o barco negreiro tinha saído de Buenos Aires havia mais de seis meses, passando pelo temido Cabo de Horn, período durante o qual sofreu por causa da tempestade, da deriva e das doenças.

Era verdade que os escravizados a bordo tinham saído de Buenos Aires, mas essa travessia não tinha sido somente marítima. Uma boa parte do caminho, que os conduziu de Buenos Aires a Mendoza e desta a Valparaíso, na costa do Pacífico, atravessando os Andes, tinha sido realizado por terra, em carretas, a pé e em mulas pelos perigosos caminhos gelados.

A rota terrestre entre Buenos Aires e Mendoza constituía o principal trecho da via que unia os dois oceanos no vice-reino do Rio da Prata: o Atlântico e o Pacífico. O trecho entre Mendoza e Valparaíso era menor, mas também o mais difícil.

Travessia terrestre entre Santiago e Mendoza, na Cordilheira do Chile. A rota corresponde ao trecho percorrido pelos escravizados antes da rebelião. Mapa da grande cordilheira do Chile ao longo da parte do caminho principal que atravessa da cidade de Santiago a Mendoza. Arquivo Geral das Índias (Espanha), MP-Buenos Aires, 250. Acesso digital.

O viajante Julian Mellet observou, no início do século XIX, a saída de um contingente de escravos de Buenos Aires para Lima, via Mendoza e Valparaíso:

No momento de sua partida de Buenos Aires para Lima, cada um [dos escravos] recebe uma calça de lã azul e uma espécie de roupa em forma de camiseta e um chapéu também feito de lã. As mulheres recebem uma saia muito larga e um lenço para a cabeça.

Ambos os sexos são separados e amontoados em grandes carroças cobertas de couro, cada uma puxada por oito juntas de bois e cada uma contém de 25 a 28 desses escravos. (Mellet, 1824).

O comboio era completado com outras carretas, que se juntavam para seguir a caravana, buscando desta forma maior segurança, num caminho em que era possível encontrar índios não submetidos (Mellet, 1824).  Depois da chegada em Mendoza e de alguns dias de descanso, os escravos eram conduzidos pelos caminhos andinos para Santiago e Valparaíso, na costa do Pacífico; esta parte do trajeto era a pé e com a ajuda de mulas para transportar mantimentos e petrechos.

Esta era a rota seguida pelas caravanas de tropeiros, escravos e mercadorias. Este foi o caminho realizado pelos escravos do La Prueba que se rebelaram e tomaram o navio sete dias depois de deixar o porto de Valparaíso.

Mas o levantamento no La Prueba não foi o único protagonizado pelos escravizados saídos dos portos do Rio da Prata. Também a embarcação San Juan Nepomuceno foi tomada por escravizados que mudaram o curso de sua navegação  rumo ao Senegal. O Telégrafo Mercantil de 16 de dezembro de 1801, um ano após o levantamento, informou a seus leitores o acontecido. A versão publicada tinha sido tomada de um jornal americano. A notícia chegou ao porto de Salem, nos Estados Unidos, procedente de Senegal, ocasião em que a imprensa da Filadélfia noticiou a revolta escrava a bordo do San Juan Nepomuceno. Ele havia  zarpado de Montevidéu em 10 de dezembro de 1800 com destino ao porto do Callao (Peru), com um carregamento de roupas, cera, sebo, azeite e “70 escravos de diferentes nações, principalmente negros e mouros [sic] do Senegal”, e aos 7 dias de navegação “sofreu” uma revolta e foi tomado pelos escravos.

Um dos escravos de nome Antonio, de idade de 30 anos, moço determinado e desesperado, que tinha sido carpinteiro de um buque e fugiu de seu senhor, [foi] feito Comandante em Chefe de seus companheiros, [sendo] divididas suas forças em duas partes e fazendo-se previamente dono das armas, contribuindo muito para seus depravados propósitos estarem carregados os fuzis, passaram uns aos camarotes e outros à proa, e feriram perigosamente o capitão Ollague com um corte de sabre no pescoço e uma punhalada no lado, matando quatro oficiais. (Telégrafo Extraordinario del Rio de la Plata del miércoles 16 de diciembre de 1801, 1914, p. 609-611.)

Depois de cinco penosos meses de navegação com ventos não muito favoráveis, chegaram à ilha de São Nicolás, em Cabo Verde, onde ancoraram para carregar água e suprimentos. Uma reduzida expedição, composta por um oficial espanhol que tinha assumido a navegação, Antonio e outros marinheiros, desceu do barco. Em terra se soube da situação a bordo do San Juan Nepomuceno e houve uma escaramuça para retomar o barco. Ante os primeiros canhonaços disparados da fortificação da ilha, Lara, “negro de Senegal”, segundo no comando, cortou o cabo e se fez ao mar. Doze dias depois, chegaram a Senegal.

No caso do La Prueba (Tryal), a sublevação também aconteceu após uma semana iniciada a segunda travessia marítima. Dos 72 escravizados conduzidos no navio, 64 tinham sido vendidos por um promissor comerciante de couros de Buenos Aires, Juan Nonell, para um comerciante de Mendoza, Alejandro Aranda (Grandin, 2014, p. 117).  64 deles tinha o Senegal como procedência. Provavelmente tinham feito quarentena em Montevidéu e posteriormente ficado em algum depósito do próprio Nonell em Buenos Aires, até formar-se a caravana que os levaria a Mendoza. O trajeto entre Buenos Aires e Mendoza deve ter permitido um maior entrosamento dos escravizados. Na chegada em Mendoza, ainda aguardaram a boa estação para atravessar os Andes. Enquanto os meses de maio a agosto eram os melhores para trafegar nos Pampas, os Andes somente podiam ser atravessados nos meses mais quentes da primavera e do verão.

Uma vez em Valparaíso, os escravos foram embarcados para seguirem por mar até El Callao. Mas, seis dias após estarem novamente no mar, os escravizados, equipados com armas brancas, renderam a tripulação e tomaram o barco. Nos dois casos, os relatos e depoimentos dizem que os escravos viajavam na coberta do navio com pouca custódia. Um dos depoimentos informa que

Em vista do escasso número de negros e da maior pujança da tripulação, o mestre de La prueba (Tryal) descuidou das precauções usuais naquele transporte, e como os negros tiveram certa folga, Babo e seu filho tiveram a ideia de liberar-se dando morte a todos seus. [Babo] Comunicou seu propósito por meio de seu filho a um escravo chamado Joaquim, de 26 anos de idade, que estava a bordo, empregado como calafate, e este que era tão decidido como seus prisioneiros, ganhou a cumplicidade dos dois serventes do mercador Aranda. Por sua vez, Babo conquistou os negros mais esforçados de sua nação, principalmente os que se chamavam Atufai e Matiluqui (Vicuña Mackenna, 1936, p. 292-294).

Como no San Juan Nepomuceno, entre os escravizados do La Prueba um assumiu  a liderança, embora deva-se registrar que algumas decisões foram discutidas e tomadas em grupo.

O vice-rei do Peru, Marquês de Avilés relacionava em sua correspondência as duas revoltas. O que apareceu como intolerável para os escravizados nos dois casos foi o reembarque. A isso se agregou a oportunidade que ofereceu para os escravizados ao serem transportados no convés e não no porão, como acontecia nas viagens transatlânticas. Como diz Javiera Carmona, o levantamento do La Prueba mostra a diferença das condições do tráfico entre o Atlântico e o Pacífico. Devemos pensar não só a distinção entre o tráfico transatlântico e o realizado entre os diferentes pontos do Império espanhol, como também dar destaque à situação de reembarque que gerou uma propensão à revolta, junto à origem comum dos escravizados e às longas convivências em terra.

Subsídios para uma conclusão

A bibliografia sobre as revoltas escravas a bordo de navios negreiros define, ou tenta definir, uma série de regularidades. Em primeiro lugar, destaca a assimetria entre a quantidade de pesquisas dedicadas à resistência e revoltas escravas em plantações e a pouca importância que se tem dado às revoltas acontecidas a bordo dos navios negreiros durante a travessia atlântica, ou ainda, na costa africana ao momento do embarque (Behrendt, Eltis e Richardson, 2001, p. 454-476). A partir do novo milênio, o estudo das revoltas a bordo foi possível graças ao levantamento de grande quantidade de dados, fruto de empreendimentos coletivos, sobre o tráfico de escravos. No ano de 1999, a base de dados Slave Voyages já possuía o registro de 34.948 viagens de navios negreiros.

Os contemporâneos das revoltas tinham uma série de preconceitos, embora não fossem necessariamente “tolos” em relação aos levantamentos na travessia atlântica. Uns se referiam à incidência das revoltas de acordo com as variações temporais e da origem regional dos escravos, outros associavam-nas ao gerenciamento das viagens. Alguns comerciantes europeus afirmavam que os escravos de Senegâmbia e parte da Alta Guiné eram propensos à rebelião e que os originários de sociedades próximas às costas eram ainda mais propensos à revolta. Richardson afirma que a incidência de revoltas dentro de um grupo étnico mais do que em outros, ou de uma região mais do que em outras, demanda uma explicação que considere as próprias dinâmicas africanas (Richardson, 2001, p. 83).

Um dos casos mais documentados de revoltas escravas a bordo de navios negreiros é o da escuna Amistad, que navegava dentro do Caribe, num trajeto também de reembarque. Os escravos transportados no Amistad tinham chegado em Cuba na fragata portuguesa Teçoura, de contrabando, desembarcado em algumas das praias habituais para tais ilícitos e caminhado durante dez dias até chegar em Havana, onde foram depositados no barracão dos escravos, de onde seriam embarcados como “ladinos”, com licenças ou passaportes falsos. Neste último caso, temos alguns elementos em comum com as duas revoltas analisadas aqui: o prolongamento da travessia atlântica através de uma travessia terrestre, o segundo embarque, uma quantidade de escravos dormindo em coberta e a “natureza” revoltosa dos escravos considerando seu porto de embarque na África. Devemos salientar ainda, nos casos do San Juan Nepomuceno e do La Prueba, que os escravos provinham de Senegal e, como noticiou o Telégrafo Mercantil sobre os protagonistas do levantamento de 1800, eram “mouros”. Esta hipótese também é levantada por Javiera Carmona quando sugere a possibilidade da origem muçulmana das lideranças do navio: “Os nomes dos escravos assim como a alusão à língua desconhecida em que assinaram, abrem um terreno de discussão”.

Para uma melhor compreensão das revoltas a bordo de navios negreiros é necessário considerar as peculiaridades dos casos e, como naqueles abordados aqui, parece que não se ajustam muito às “estatísticas”.  Neste sentido, as revoltas parecem acompanhar a própria “excentricidade” da escravidão no Rio da Prata e no Chile.

 

Bibliografia Básica

BEHRENDT, Stephen D.; ELTIS, David e RICHARDSON, David. The Costs of Coercion: African Agency in the Pre-Modern Atlantic World. The Economic History Review, v. 54, n. 3, ago 2001, p. 454-476.

CARMONA, Javiera, De Senegal a Talcahuano: los esclavos de un alzamiento en la costa pacífica (1804). In: CUSSEN, Célia. Huellas de África en América. Perspectivas para Chile. Santiago: Editorial Universitária, 2009.

DELANO, Amasa. Narrative of Voyages and Travels in the Northern and Southern Hemispheres. Boston: E. G. House, 1817.

GRANDIN, Greg, O Império da necessidade. Escravatura, liberdade e ilusão no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

MELLET, Julian. Viajes por el interior de la América Meridional (1808- 1820). Santiago, 1824.

MELVILLE, Herman. Bartleby, el escribiente. Benito Cereno. Billy Budd. Madri: Editorial Cátedra, 1993.

RICHARDSON, David. Shipboard Revolts, African Authority and the Atlantic Slave Trade. The William and Mary Quarterly, v. 58, n. 1, New Papers on the Transatlantic Slave Trade (Jan. 2001) p. 69-92.

SALAS, Eugenio Pereira. Buques norteamericanos en Chile a fines de la era colonial (1788-1810). Santiago de Chile: Prensas de la Universidad de Chile, 1936.

VICUÑA MACKENNA, Benjamin. Historia de Valparaíso: crónica política, comercial y pintoresca de su ciudad y de su puerto desde su descubrimiento hasta nuestros días, 1536-1868. Universidad de Chile, 1936, p. 292-294. (Primeira Edição 1869)

Fontes Impressas

Telégrafo Extraordinario del Rio de la Plata del miércoles 16 de diciembre de 1801. Edición fac-similar. Biblioteca de la Junta de Historia y Numismática Americana. Academia Nacional de la Historia. Tomo VI, Buenos Aires: Cia. Sud Americana de Billetes de Banco, 1914, p. 609-611.

Fontes Primárias

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