Revista Impressões Rebeldes

CAÇA AOS CIGANOS

Marcados por estereótipos e superstições, os ciganos provocaram grande inquietação nas autoridades mineiras durante o governo de Martinho de Mendonça, ainda que eles mesmos não dessem razão para isso.

nterior de uma Casa de Ciganos. Jean-Baptiste Debret (1823). Aquarela sobre papel. Museu Castro Maya, Rio de Janeiro.

Irenilda Reinalda Barreto de Rangel Moreira Cavalcanti

Irenilda Reinalda Barreto de Rangel Moreira Cavalcanti é Professora Adjunta da Universidade de Vassouras (RJ). É autora de “Proveitosas diligências: ações contra os ciganos e quilombolas nas cartas de Martinho de Mendonça, governador interino de Minas Gerais, 1736-1737. Recôncavo: Revista de História da UNIABEU , v. 2, p. 18-40, 2012.”

Personagens milenarmente envoltos em mistérios, os ciganos tornaram-se sinônimo de nomadismo e preconceito. Intolerância e suspeição perseguem-lhes ao longo da história e das terras por onde andam. O propósito deste texto é fazer uma pequena reflexão sobre os dilemas administrativos que esses povos suscitavam, enfocando as decisões de Martinho de Mendonça, durante seu governo interino em Minas Gerais (1736-1737).

A ocorrência dos povos desenraizados surgiu na Europa, sobretudo após o século XIV, quando a posse da terra e as condições de trabalho nas cidades passaram por profundas mudanças. Castel (1998) destaca a origem de um fluxo de pessoas que estavam sem emprego e saiam em busca de ocupação, gerando um grupo marcado pela mobilidade e perda dos laços de apoio comunal. Contra essa circulação que feria a ordem, as autoridades buscavam freia-la através de severas leis, que os inseriam novamente nas estruturas tradicionais do trabalho, fixando-os em sua terra de origem.

Na América, esse fato se repetiu e a gente “desclassificada” também passou a se caracterizar por seu aspecto móvel. Para os governantes, cuja missão era controlar, fazer produzir e cobrar impostos, esses povos flutuantes fugiam à regra e deviam ser ordenados e civilizados. Aliás, os grupos desgarrados causavam tanto medo quanto curiosidade, já que o modelo de conduta de suas vidas “cheias de aventuras” constituía um risco para a sociedade estabelecida.

Dentre os grupos excluídos achavam-se os ciganos, um dos povos que mais causava temor e inquietação à população e às suas lideranças. A repressão incluía perseguição, expulsão, prisão e tentativa de inserção, fosse através do desmonte dos acampamentos e famílias, fosse pela inserção dos homens nas forças militares e nas obras públicas e das mulheres em trabalho doméstico ou conventos. Já as crianças iam para adoção. Mesmo que os ciganos quisessem, era-lhes proibido fixarem-se como lavradores ou comerciantes, situação só resolvida pelo Marquês de Pombal com o fim da interdição, anos depois (COSTA, 1998).

Para este grupo andarilho, a fronteira mineira parecia ideal como refúgio: não havia poder instituído, e as matas eram cortadas por atalhos. Por onde iam, os ciganos eram tidos por ladrões e malfeitores e esse estereótipo se reforçava por seus exóticos costumes: a insistência em só falar em seu dialeto (lusitano-romani), em proibir o casamento misto e em não permitir a entrada ou permanência de estranhos em seus acampamentos servia de barreira cultural. O uso de roupas coloridas e esfarrapadas e a estranheza dos seus costumes tornava-os ainda mais bizarros.

Para muitos, eles transmitiam moléstias e traziam maldições; e suas mulheres serviam de mau exemplo por sua conduta livre e atrevida, frente às recatadas senhoras ocidentais. Se com essas atitudes estranhas, os ciganos visavam à preservação de sua identidade, por outro lado, ajudavam a reforçar as ideias negativas construídas a seu respeito.

Assim, seguidos por lendas e superstições, sofriam acusações de canibalismo e raptos de criancinhas; e a perseguição justificava-se, em parte, por fatos reais – prática de bruxedos e curandeirices, estelionatos e enganos – e em parte por razões imaginárias (COSTA, 1998).
A história dos ciganos é bastante obscura. Sabe-se que entraram na Península Ibérica em 1449, pelos Pirineus e que sua presença ficou conhecida pelos processos nos tribunais. Em Portugal, as primeiras medidas contra eles foi um decreto de D. João III em 1535, que visava resolver o incômodo social que eles causavam: “a população sofria muita perda e fadiga de muitos furtos e muitas feitiçarias que os ciganos fingem saber” (PIERONI, 1993, p. 116).

Em 1718, emitiram-se medidas porque aumentaram as queixas dos portugueses devido aos furtos e outros delitos cometidos pela gente da “buena dicha”, isto é, que praticam adivinhação da sorte ou do futuro através da leitura das linhas da mão. A maioria foi presa e enviada às conquistas de África, Índia e Brasil (PIERONI, 1993, p. 123). Para forçar a inserção desse grupo no ambiente colonial, as autoridades cuidavam de “por cobro e cuidado na proibição do uso da língua e gíria, não permitindo que se ensine a seus filhos, a fim de obter-se a sua extinção” (PIERONI, 1993, p. 124).

Em Minas Gerais, a presença de ciganos em uma região alagadiça e doentia, durante o “tempo das águas” (setembro/março) ao norte da capitania ficou registrada pelo governador Martinho de Mendonça em 14/08/1736, o qual também cita a ordem de prisão do grupo: “(…) em São Romão vive gente em todo o tempo, Enrique Carlos andou pelo Rio de S. Francisco com ordem do Sr. conde para prender ciganos no mês de Dezembro. (MENDONÇA, 1911, p. 330)”

Já em janeiro de 1737, Mendonça relata em carta a notícia de que “entraram nestas Minas grande número de ciganos que o Sr. Vice Rey fez despejar do distrito da Bahia”. Como havia leis proibindo a presença deles, o governador poderia prendê-los caso praticassem algum delito. Em seguida, ele levanta a possibilidade de extraditar esse grupo para lutar na Colônia de Sacramento ao escrever: “(…) se porém a V. Excelência parecer que esta gente pode ser útil para o Rio da Prata com o primeiro aviso se passarão ordens circulares para os prenderem as ordenanças, e se remeteram a essa cidade.” (MENDONÇA, 1911, p.394).

Relatando suas medidas, Mendonça admite que “Pelo que toca a Ciganos, as queixas que há são só por serem ciganos sem que se aponte culpa individual.” (MENDONÇA, 1911, p.398). Percebe-se que ainda não existiam queixas sobre eles e o que incomodava era o fato de serem ciganos. Como não havia provas de delitos, ele adia o recrutamento por Golpista uma revolta. O motivo não demora e em 22/05/1737, ele determina a “execução da ordem de V. Excia. para se prenderem os ciganos por recear se seguisse maior prejuízo, retirando se para o sertão onde podiam saltear as estradas.” (MENDONÇA, 1911, p.398)

O temor era que os ciganos pudessem fugir para o sertão e, de lá, passassem a realizar roubos nas estradas. Dessa forma, foi autorizado aos Ordenanças, força militar local, a prisão dos ciganos, os quais não obedeceram a ordem, sendo então acionados os Dragões, soldados mais experientes. O ataque foi marcado para o dia 1° de junho, porém, os ciganos fugiram, mostrando a Mendonça que houve vazamento de informações, e revelando haver relações entre pessoas de bem e os “fora da lei”. Ele relata esse vazamento dizendo que “como a ordem para a prisão dos ciganos foi necessário distribuir-se dos coronéis a quarenta e tantos capitães se revelou segredo, e fugiram alguns, que contudo puderam ser presos no Sabará, ou Serro […]” (MENDONÇA, 1911, p.431)

Dois meses depois, Mendonça se viu envolvido com outro problema advindo da presença dos ciganos nas Minas. Desta feita, o Bacharel Dr. Manuel Dias Torres, Intendente da capitação da Comarca de Sabará, atacou os ciganos por conta própria, causando mortes, ferimentos e algumas prisões. Apreensivo, o Governador relatou o caso a Gomes Freire:

“Tinha saído o Dr. Manuel Dias Torres para o sertão, e se dilatava em Santo Antônio […]; quis aproveitar o tempo que estava ocioso, e tendo notícia que se achavam em um rancho 26 ciganos contando os filhos e escravos, e dizendo lhe que estes publicavam haviam de resistir, juntou de Paisanos oitenta e tantas pessoas armadas, e o Destacamento com que marchou três dias atravessando para a esquerda, deu sobre os ciganos, resistiram, mataram-nos um Dragão, e feriram outro, morrendo dois ciganos, e uma criança de peito, prenderam-se alguns dois rapazes e bastantes mulheres; o Ministro me escreve sufocado com esta desgraça empenhada contra os ciganos, e sentido que as doenças lhe impeçam o passo.” (MENDONÇA, 1911, p. 444-5)

Vários fatos afligiam o governador: as “coisas do sertão” – os motins de 1736 (CAVALCANTI, 2010); às doenças devido às chuvas; mas o pior veio dos incidentes com os ciganos, pois temia que eles fugissem e sumissem no sertão ou ainda, se unissem aos revoltosos. Esse ataque, além de causar mortes inúteis, poderia suscitar a ira dos fugitivos, fazendo-os se vingarem de moradores dos lugares isolados.

As coisas se agravaram devido à atitude do Dr. Torres. Martinho de Mendonça decidiu que não enviaria mais soldados, pois estava certo que “a gente do sertão ainda que queira, não pode fazer nenhum desmancho, e que os ciganos fugidos lhe não passa pelo pensamento fazer insulto”. (MENDONÇA, 1911, p. 448) Essa mudança de atitude do governador foi ocasionada por dois fatores: o primeiro era o temor de novo levantamento nos sertões devido à presença de forças militares; o segundo foi a redução dos efetivos, visto que uma parte foi enviada para lutar na Colônia do Sacramento, enquanto outro grupo havia rumado para as minas de Goiás e Cuiabá, deixando a capitania mineira praticamente desguarnecida.

Por isso, durante o último ano de seu governo não houve mais notícias dos ciganos fugitivos. Outros problemas angustiaram Martinho de Mendonça, até que chegou à ordem dele retornar a Lisboa, no final de 1737.

Bibliografia Básica

CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
CAVALCANTI, I. R. B. R. M. O Comissário real Martinho de Mendonça: práticas administrativas na primeira metade do século XVIII. Niterói, 2010. 442 fl. Tese (Doutorado em História Social) – ICHF, UFF, Niterói, 2010.
COSTA, E. M. L da. O povo cigano e o degredo: contributo povoador para o Brasil colônia. Revista Textos de História, v. 6, n. 1-2, p. 35-56, 1998.
PIERONI, G. Detestáveis na metrópole e receados na colônia: os ciganos portugueses degredados no Brasil. Varia História: Belo Horizonte, n. 12, p. 114-27, dez., 1993.

Fontes Impressas

MENDONÇA, M. de. Cartas de 1736-1737. RAPM, Belo Horizonte, v. 16, n. 2, 1911.

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