Revista Impressões Rebeldes

É DIFÍCIL PERDOAR

Uma rebelião no coração de Minas Gerais em 1720 mostrou como era polêmica a decisão sobre o castigo ou o perdão. O governador precisou usar de toda a prudência para escolher o melhor caminho naquele contexto dramático.

Ao fundo, o Morro da Queimada em Ouro Preto, incendiado por ordem do Conde de Assumar, governador das Minas, durante a repressão à Revolta de 1720. foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

João Henrique Ferreira de Castro

João Henrique Ferreira de Castro é professor de História do Colégio Pedro II e autor da tese “Castigar sempre foi razão de estado? O Debate Sobre a Punição às Revoltas ocorridas no Brasil: Da defesa dos perdões à progressiva legitimação da violência (1660-1732)” (UFF, 2016).

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Ao tratar do perdão que o governador, o Conde de Assumar, deu aos líderes da revolta de Vila Rica em 1720, a historiadora Maria Verônica Campos afirmou que o mesmo “só fora concedido diante da pressão e perigo da disseminação [de mais protestos] do momento”. A concessão, portanto, não passaria de um blefe do então governador da capitania de São Paulo e Minas do Ouro para ganhar tempo e organizar a repressão aos rebeldes que vinham aterrorizando a região com protestos e atos de violência.

Era 1º de julho de 1720 e haviam se passado seis dias desde que o governador Pedro de Almeida, Conde de Assumar foi comunicado que corria o boato de que um motim com o objetivo de matar o ouvidor Martinho Vieira e expulsar o governador da capitania estava a ser organizado. A notícia chegou trazida por João da Silva, filho de Pascoal Guimarães, líder dos movimentos que incendiaram a região. A rebelião se materializou na passagem do dia 28 para o dia 29, durante o festejo de São João, quando bandos de mascarados acompanhados de negros armados, empreenderam os primeiros atos de confronto.

A tentativa da historiadora de mergulhar na consciência do governador e definir o seu intuito com o perdão foi um pequeno deslize na excelente obra de reconstrução do contexto das minas e do cenário da revolta feita por Maria Verônica Campos. O perdão do governador mostrou-se insuficiente para pacificar os conflitos que se arrastariam por pouco mais de duas semanas pois havia ali um elemento inédito. Ao contrário dos governadores anteriores, a decisão de Assumar era condicionada à aprovação régia, situação que desagradou os rebeldes, que passaram a exigir que o termo de perdão fosse incondicional.

Polêmica crucial durante os dias de negociação, o perdão condicional concedido pelo governador estava de acordo com uma determinação passada aos governadores do Estado do Brasil em 11 de janeiro de 1719 que os proibia de absolver rebeldes sem o consentimento régio, justificada pela convicção da Coroa de que tem “mostrado a experiência que a frequência com que em todo esse Estado costumam os governadores concederem perdões das sublevações dá confiança aos povos para novamente se sublevarem e não temerem o castigo”.

A importância desta ordem régia na decisão do Conde de Assumar é revelada no Discurso Histórico sobre a Sublevação que nas Minas Houve, um dos mais importantes documentos elaborados sobre a revolta cuja autoria é atribuída por Laura de Mello e Souza a dois padres jesuítas em defesa das ações do governador. Neste texto é feita uma clara referência à instrução real para explicar essa modalidade de perdão, a saber: que ficava o governador proibido de perdoar incondicionalmente, podendo apenas publicar o “perdão, regalia suprema do soberano […] em extrema necessidade”.

Explica-se, assim, porque o Conde de Assumar resolveu acatar todos os pedidos dos revoltosos no termo de procuração da revolta, como a suspensão da instalação de casa de fundição determinada por D. João V, mas não cedeu à pressão para passar um perdão definitivo aos revoltosos.

Afinal, os levantamentos não pararam com o perdão, liderados pela rede de potentados ligados a Pascoal Guimarães, dentre eles Sebastião da Veiga Cabral que desejava tomar o posto de Assumar e no passado havia sido preterido em 1717 quando a Coroa nomeou D. Pedro para governar a capitania. Logo o governador entenderia ser necessário deixar sua residência em Vila do Carmo, atual Mariana, e passar a Vila Rica (atual Ouro Preto) para punir os rebeldes. Em meio às informações que chegavam de que os revoltosos reuniam pessoas para irem à Vila do Carmo expulsar Assumar da capitania, o governador articularia sua incursão a vila vizinha amotinada. No Discurso Histórico, a justificativa para enfim recorrer ao rigor passa pela observação de que a “sucessão dos tumultos, o excesso das desordens, as evidências do perigo, as certezas da ruína, que no desprezo dos editais, na quebra dos perdões, sem temor, sem pejo, prometiam, seguravam, com o atrevimento, com a desobediência, os danos, os estragos, ao príncipe, aos vassalos.”

Em 12 de julho, o Conde de Assumar deu início à repressão. O primeiro a ser preso foi justamente Sebastião da Veiga Cabral em Vila do Carmo e que seria imediatamente encaminhado ao Rio de Janeiro. O governador, segundo Verônica Campos, determinaria ainda que passassem a Vila Rica “durante a noite, trinta homens da cavalaria, ordenando-lhes a prisão de Manuel Mosqueira da Rosa (ex-ouvidor), Pascoal da Silva, frei Vicente Botelho e frei Francisco do Monte Alverne, seguramente os cabeças do motim”.

A recepção da cavalaria em Vila Rica, como era de se esperar, não seria das melhores. Após as prisões, no dia 13 os revoltosos mataram um homem identificado como informante de Assumar, muito provavelmente o escrivão Manoel José. Para vingar a prisão do pai, João da Silva daria ordem para os moradores do morro de Pascoal Guimarães se armarem e partirem para Vila do Carmo a fim de libertar as lideranças que haviam sido presas. Concomitantemente, o Conde decidiria por passar a Vila Rica acompanhado de um oficial, da recém-chegada tropa da Companhia dos Dragões e de negros armados para pacificar a localidade e também proceder à queima das propriedades de Pascoal Guimarães e seus aliados.

A decisão de Assumar foi tomada em uma junta que reunia outros oficiais, o que reduzia as possibilidades de atribuírem ao governador atitude tirana e autoritária. Ao mesmo tempo, Pascoal passava ordem para que seu filho abandonasse o revanchismo, já prevendo que o governador poderia ser ainda mais rigoroso caso os levantamentos permanecessem. E se era este o sentimento de Pascoal, o tempo daria razão a ele através do exemplo de Filipe dos Santos.

Já era 16 de Julho quando Assumar chegou a Vila Rica e deu início ao processo de queima das propriedades de Pascoal Guimarães no Morro Podre, atual Morro da Queimada em Ouro Preto. Perto dali, no atual distrito de Cachoeira do Campo, Filipe dos Santos convocava pessoas para irem ao encontro da autoridade, desafiar suas tropas, libertar os prisioneiros e expulsar o governador das minas. Nascido no reino, Filipe dos Santos havia encontrado em Pascoal Guimarães a proteção necessária para que pelas minas pudesse permanecer, especialmente com um processo aberto por sua esposa em Lisboa denunciando que o muladeiro (isto é, que lida com mulas) havia deixado família em Portugal. O historiador Alexandre Fonseca sugere que o temor de ser obrigado a retornar poderia ser a motivação de Filipe para tentar desesperadamente salvar Pascoal da prisão. No entanto, fracassaria em seu intento e ainda terminaria severamente punido por isso.

Durante a ação de Filipe dos Santos, um homem de nome Luís Soares de Meireles não só recusou a proposta de se aliar aos rebeldes como, com o auxílio de alguns, o prendeu e encaminhou a presença de Assumar. Sem vacilar, ao tomar conhecimento da nova conspiração contra a sua pessoa ordenou, de forma sumária, a execução de Filipe, além de conceder o hábito da Ordem de Cristo a Luís Meireles.

Ao castigo capital de Filipe dos Santos e à queima do Morro do Ouro Podre, seguiria o esforço de Assumar de justificar suas atitudes junto à Câmara e à Coroa. Já os prisioneiros seriam enviados ao Rio de Janeiro e em 1722, a pedido do Conde, enviados à Lisboa, última notícia que se sabe sobre seus destinos. Pascoal, aliás, ainda teria tempo de processar Assumar por seus excessos, mas a morte lhe chegaria antes da decisão judicial.

Certo é que foram tensos os dias em que Vila Rica esteve levantada e a negociação para o desfecho dos atos rebeldes foi bastante complexa e delicada, sendo impossível afirmar sem um pouco de dúvida que já era intuito de Assumar atuar com violência desde o primeiro momento. Até porque a ação lhe custaria caro, pois como percebe Rodrigo Bentes Monteiro, o Conde “castigou duramente, antecipando-se à decisão judicial, e por isso sua imagem permaneceu associada à tirania”.

É bem verdade que o Conde, afastado do governo das minas logo após o evento, conseguiria se reabilitar no Reino e terminaria sua carreira administrativa como vice-rei na Índia, um dos mais importantes postos no ultramar. Suas ações, aliás, coincidiram com um momento em que o vice-rei do Estado do Brasil, D. Vasco Fernandes Cézar de Menezes recebia, em 1720, poderes especiais para punir, inclusive com pena capital, os infratores desta conquista.

As ações de Assumar, portanto, conviveram com elogios, mas também com críticas e processos. Sinal de que o tema do castigo e do perdão permanecia polêmico naqueles tempos e que o governador, ao menos por prudência, teve muito que ponderar antes de cada decisão tomada naquele dramático contexto. O sangue de Filipe dos Santos e o fogo do Morro do Ouro Podre se espalharam por Vila Rica e compuseram o dramático desfecho após quase um mês de grande tensão.

Bibliografia Básica

CAMPOS, Maria Verônica. “Governo de mineiros: De como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado: 1693 a 1737”. Tese de doutoramento inédita. São Paulo: USP, FFLCH, 2002.

FONSECA, Alexandre Torres. “A Revolta de Filipe dos Santos”. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage & VILLALTA, Luiz Carlos. (Org.) História de Minas Gerais: As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. p. 549-566.

MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. Jogos de interesses e redes clientelares na Revolta Mineira de Vila Rica (c.1709-c.1736). Dissertação de mestrado inédita. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005.

MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: A monarquia portuguesa e a colonização da América 1640-1720. São Paulo: Editora Hucitec, 2002.

PEREIRA, Marcos Aurélio de Paula. Vivendo entre cafres: Vida e política do Conde de Assumar no ultramar, 1688-1756. Tese de doutoramento inédita. Niterói: UFF, ICHF, 2009.

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