Revista Impressões Rebeldes

EM BUSCA DE HONRAS E MERCÊS

Moradores paulistas aproveitaram os momentos de guerra, em que eram obrigados a defender a colônia, para negociarem alguns favores em troca com a Coroa

A experiência sertanista dos paulistas serviu para fazerem bons negócios. “Bandeirante”. Óleo sobre tela de Rodolfo Amoedo, 1929 (detalhe). Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora, Minas Gerais.
13 de dezembro 2022 Ano 10, n. 2 (jul-dez), 2022

Ludmila Gomides Freitas

doutora pela Universidade Federal de Uberlândia, foi professora substituta na Universidade Estadual de Minas Gerais e na Universidade Federal de São João Del Rei. É autora do artigo 'Sem Prejuízo dos Ditos Índios': A Câmara Municipal de São Paulo e a Promoção dos Interesses Locais (1628-1696). Revista Ars Histórica, UFRJ, v. 23, p. 105-125, 2022.

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A colonização de São Paulo nos séculos XVI e XVII foi marcada por especificidades quando comparada ao restante da América portuguesa. Nessa remota região da colônia, muitos ‘principais’ carregavam o sangue indígena e toda a sociedade era permeada pela cultura nativa: o tupi era mais corrente que a língua portuguesa, a agricultura incorporou as técnicas guarani de cultivo, o alimento básico do povo era o milho e a mandioca. Desenvolveu-se ali uma economia agrícola articulada ao abastecimento interno, cuja mão-de-obra era exclusivamente formada por indígenas escravizados. No entanto, por haver uma série de restrições legais contra esse tipo de escravidão, os colonos paulistas, por meio de sua Câmara, lançaram mão de estratégias políticas para garantir seus interesses, sobretudo, o de escravizar os “negros da terra”, como eram então chamados os nativos.

A Câmara Municipal, ao lado da Igreja Católica, eram as instituições que viabilizavam a colonização portuguesa. Assim, os colonos que entenderam o sentido e a importância da apropriação dos signos culturais e de poder do Reino, constituíram, com o passar das gerações, a elite local. Enfim, ser homem bom, “gente da governança da terra”, foi o meio mais sólido para se tornar nobre ao lado de ser senhor de terras e escravos. Essa era uma relação de mão-dupla em que uma coisa facultava a outra.

Em tempos de invasão de inimigos estrangeiros ou de conflitos internos, os moradores do Brasil eram os responsáveis pela segurança e manutenção da colônia, arcando com a formação das tropas e seus custos (o soldo, a guarnição e o fardamento). A vila de São Paulo não escapou à obrigação em dois momentos de grande instabilidade no século XVII: a invasão dos holandeses no nordeste (Bahia, 1624-1625, e Pernambuco, 1640-1653) e a “Guerra dos Bárbaros” (conjunto de confrontos contra os índios tapuias no processo de ocupação do interior do nordeste, entre os anos 1650-1720). Embora os moradores do planalto paulista tenham tentado ao máximo evitar o encargo, embrenhando-se pelos sertões, a política insistente do governo régio encontrou meios de convencê-los a participar das guerras de defesa, oferecendo em contrapartida o perdão dos crimes contra a legislação indígena, a promessa de mercês e o direito de escravização dos índios capturados nas guerras. Os paulistas relutantes, por fim, cederam. Porém, cobrariam sua paga, não admitindo interferência no poder local contrária a seus interesses econômicos e políticos, seja de autoridades, seja dos jesuítas.

No dia 18/08/1624 a Câmara de São Paulo recebeu uma petição enviada pelo capitão mor e ouvidor da capitania, Álvaro Luís do Vale, requisitando a ajuda dos moradores para “tratar sobre a defensão da terra”, que para isso deveriam mandar “vir toda a pólvora e chumbo que se pudesse”. Ordenava também enviar a Santos “todos os índios de sua majestade e de suas aldeias (…), aliás, o que contrário fizer e não cumprir, os julgareis e havereis por traidor.” (Registro Geral da Câmara de São Paulo, vol. I, p.455-456.)

Entre 1638 e 1640, o governador Salvador Correia de Sá e Benevides passou inúmeras provisões à Câmara de São Paulo para que fosse enviado “a maior quantidade de mantimentos assim de farinhas de guerra como de trigo, arroz, carnes para o sustento da infantaria que ora envio de socorro ao Brasil”. E disso dependia a “conservação de todo este estado e restauração e liberdade de Pernambuco e Bahia (…)”. (Registro Geral da Câmara de São Paulo, vol. II, p.70-75).

Entre os anos de 1639 e o seguinte foi registrada na Câmara uma série de absolvições, concedidas por Salvador de Sá, aos colonos que ilegalmente apresavam índios. Os nomes dos moradores aparecem ao lado do número de índios e da quantidade de mantimentos enviados à guerra contra os holandeses. Ao mesmo tempo em que essas medidas apoiavam as ações escravistas dos paulistas, apontavam a dependência das áreas centrais da colônia em relação a São Paulo, celeiro de alimentos e de gente de guerra.

Tal política proporcionava aos paulistas a ideia de que haviam cumprido o seu papel no quadro de responsabilidades para com a Coroa. É importante notar que, no imaginário do colono, Salvador de Sá personificava a autoridade régia que se aproveitava dos esforços e do patrimônio dos paulistas em nome dos interesses mais gerais da colonização Portanto, depois de muito servirem ao Rei, era fácil prever que os colonos não aceitariam que o governador defendesse o poder temporal dos jesuítas sobre os índios aldeados. Aos padres caberia somente os assuntos espirituais, enquanto a organização da exploração do trabalho indígena caberia a um capitão leigo, de acordo com os interesses dos colonos.

Outro momento em que identificamos conflitos e negociações entre os paulistas e as autoridades coloniais coincide com um período de intensa turbulência na vila de São Paulo e de graves ameaças à segurança da colônia. A contenda entre os clãs familiares dos Pires e dos Camargo tomou conta da cena política da vila durante a segunda metade do século XVII e início do seguinte. Com intercalações de momentos mais violentos e de ânimos mais arrefecidos, o certo é que a tensão foi protagonizada na Câmara Municipal.

A ruptura no interior da elite paulista coincidiu com os anos da expulsão definitiva dos holandeses em 1654 e o início da “Guerra dos Bárbaros” no interior do nordeste, de modo a demover os paulistas de suas brigas internas e engajá-los nas brigas em nome do Rei, as autoridades coloniais concederam o perdão dos crimes de apresamento de índios, além de garantir o direito de escravizar outros mais nas guerras justas. Tal direito fora confirmado pela palavra de Ministros e de bispos teólogos. Ademais, foram prometidas mercês, distinções e honrarias àqueles que lutassem pela segurança da colônia.

Em uma carta para a Câmara, o governador-geral do Brasil, Francisco Barreto de Meneses, reportava uma ameaça que vinha sofrendo a capital da colônia, Salvador. Dizia que foram muitas as tentativas de debelar e “castigar as insolências com que os bárbaros costumam descer ao Recôncavo” da Baía de Todos os Santos, porém, sem sucesso. O motivo era a resistência e a “ligeireza daqueles bárbaros e a ignorância e pouco uso daquela guerra” por parte das tropas portuguesas. O governador informava que as regiões do Recôncavo estavam outra vez acometidas por assaltos simultâneos, e “que só a experiência do sertanista dessa capitania [São Paulo] poderá vencer as dificuldades”, pois era notória sua especialidade na guerra brasílica [isto é, táticas bélicas usadas pelos povos originários]. (Registro Geral da Câmara de São Paulo, vol. II, p.506-509).

No ano de 1670, os moradores de São Paulo foram novamente convocados “a extinguir e afugentar os índios muito bárbaros que infestam a cidade [do] Recôncavo e moradores da Bahia”. Anos depois, em 1688, uma nova carta do governador geral chegou à Câmara conclamando os paulistas para a guerra contra os bárbaros da Capitania do Rio Grande:

E se os paulistas são tão acostumados a penetrar os sertões para cativar índios contra as provisões de Sua Majestade que o proíbem, tenho por certo  que agora que o podem fazer em serviço de seu Rei como leais vassalos seus, e em tão público benefício daquelas Capitanias, o farão com a maior vontade, não só pelo crédito de sua fama, e esperança da remuneração que há de ter o que obrarem: mas também pela utilidade dos bárbaros que aprisionarem são cativos nas formas das leis Del-Rei, meu Senhor, e resolução na Junta Geral do Teólogos e Canonistas, que sobre esta guerra se fez para declararem por tais. [“Carta para os oficiais da Câmara da vila de São Paulo sobre virem os Paulistas à guerra dos Bárbaros do Rio Grande”. In Documentos Históricos, vol.11, p.142.]

Nota-se que em momentos decisivos para a segurança e continuidade da empresa colonial, a política central funcionou como um incentivo a mais às atividades escravagistas dos colonos de São Paulo. Lembremos que no socorro prestado a Pernambuco para a guerra contra os holandeses, Salvador Correia de Sá deu perdão a todos os homiziados [isto é, fugitivos da justiça]  que haviam cometido crimes de entradas no sertão. Nas guerras contra os “bárbaros” do Recôncavo e do Açu, os governadores gerais permitiram a escravização dos índios capturados. Além disso, tal direito fora atestado como legítimo pela palavra de ministros e bispos teólogos e, portanto, não feria a consciência do apresador. Não que fosse o caso de os sertanistas se incomodarem com melindres de consciência, todavia, a diferenciação entre guerra ofensiva e guerra justa era fundamental para a legitimidade jurídica da expansão colonial portuguesa.

O perdão aos homiziados e as promessas de mercês e honrarias foram as concessões dadas aos paulistas pelas autoridades coloniais. Os desejos de qualificação social, de participação nos cargos da governança e de possuir terras e escravos, enfim, ser senhor e viver à sombra da lei da nobreza, compunham o imaginário dos homens do planalto. Nesse ponto não diferiam das elites de outras porções da colônia, porém os caminhos para alcançar seus objetivos foram outros: passavam pelo cativeiro do natural da terra e por uma certa posição de autonomia frente os representantes do Rei. No entanto, se por um lado os moradores de São Paulo agiam conforme seus interesses, por outro essa autonomia em nenhum momento os levou a dispensar o vínculo com o Reino.

Bibliografia Básica

BLAJ, Ilana. A Trama das Tensões. O processo de mercantilização de São Paulo colonial: São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP/Fapesp, 2002.

MONTEIRO, John. Negros da Terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do Brasil, 1650-1720. São Paulo: HUCITEC/ Fapesp/Edusp, 2002.

VELLOSO, Gustavo. “Historia e Historiografia do trabalho indígena em São Paulo colonial: balanços, categorias e novos horizontes”. Revista de Historia de América, n. 159 jullio-diciembre 2020.

Fontes Impressas

ACTAS da Câmara Municipal da Vila de São Paulo, Publicação offcial do Archivo de São Paulo. São Paulo: Typografia Piratininga, 1915. Volumes: III (1623-1628), IV (1629-1639), V (1640-1652), VI (1653-1678), volume anexo ao volume VI (1656-1669), VII (1679-1700).].

CARTA para os officiaes da Camara da Villa de São Paulo sobre virem os Paulistas á guerra dos Bárbaros do Rio Grande. Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1929. Vol. XI da série IX.

REGISTRO Geral da Câmara Municipal de São Paulo. Publicação official do Archivo Municipal de São Paulo. São Paulo: Typografia Piratininga, 1917. Volumes: I (1583-1636), II (1637- 1660), III (1661-1709).

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