Revista Impressões Rebeldes

EDITAR PARA RESISTIR

A leitura filológica de documentos sobre as revoltas baianas do século XIX propõe novas interpretações da escravidão, das lutas e da história da discriminação

Documentos de arquivos se prestam à análise editorial. Na imagem, a Sentença proferida contra os réus do levante e conjuração de Minas Gerais, 18 de abril de 1792. Arquivo Nacional.

Eliana Correia Brandão Gonçalves

é Doutora em Letras e Linguística – Linguística Histórica (UFBA) – e atua como professora e pesquisadora no Instituto de Letras e no Programa de Pós-Graduação Língua e Cultura (PPGlinC-UFBA), vinculada à linha Filologia e Linguística Histórica. Coordena o Grupo de Estudos Filológicos e Lexicais (GEFILL - UFBA).

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Entre as trilhas que podem ser seguidas para a reavaliação da escravidão e da luta do povo negro, a trilha filológica-histórica permite confrontos políticos e culturais por meio da recuperação, divulgação e acesso do patrimônio cultural escrito, em variados suportes, materiais ou digitais, pois o documento é uma via de poder e conscientização que registra os rastros das lutas negras por direitos e conquistas sociais. 

Em um espaço de disputas de narrativas, destaca-se a contribuição da Filologia na circulação de outras memórias sobre a escravização e a resistência negra, por meio da preparação de edições criteriosas, que levam em consideração a produção de modelos editoriais diversificados, de acordo com o público-leitor. O termo Filologia traz na sua essência a polissemia, possuindo diversas acepções, vertentes, objetivos e métodos. Nesse prisma, a práxis mediadora e democratizadora da Filologia tem por objetivo a curadoria de textos, manuscritos, impressos, datiloscritos ou escritos, produzidos no passado e no presente, considerando a edição e a divulgação desses textos como fonte documental, por meio da leitura crítica de suas materialidades, suas histórias, seus aspectos linguísticos, suas escritas e dos agentes envolvidos na sua produção, transmissão, circulação e guarda.

Entre as possibilidades de definição do termo Filologia é destacada, para esse recorte de análise, a vertente da Filologia Textual voltada para a atividade de leitura e interpretação histórico-cultural e linguística dos textos de diversos gêneros textuais, produzidos em épocas pretéritas, com diversidade de tipos caligráficos e utilização de abreviaturas, que podem trazer dificuldades de leitura para o leitor do presente (Exs.: Abreviaturas – Lix.a – Lixboa. Pied.e – Piedade) ou usos linguísticos diferentes dos usos atuais da língua, com grupos consonantais pseudo-etimologizantes (gn) e (ct) ( Exs.: Grupos consonantais pseudo-etimologizantes (gn) e (ct). Assignaturas, Exacto).

A ação de editar inclui a descrição e o estudo material do texto – com indicação do gênero textual ou tipo documental e análise das características escriptográficas e materiais do texto; a análise da história dos textos, com a apresentação de notas explicativas do editor; a interpretação dos contextos históricos de produção, circulação e recepção, visto que o sentido de qualquer texto depende também das formas que eles chegam aos leitores (MCKENZIE, 2005); a adoção de etapas e normas criteriosas para apresentação da edição do texto propriamente dito, que são compartilhadas com os leitores; e estudo linguístico do texto, normalmente a partir da organização de produtos lexicográficos, como glossários ou vocabulários.

Nesse sentido, a análise filológica (CANO AGUILAR, 2000) caracteriza-se por uma abordagem histórica, interpretativa e linguística dos textos, organizando diferentes tipos de edição de acordo com seu público-alvo, especializado ou não especializado, o tipo documental e a tradição textual, se mono testemunhal ou poli testemunhal. A atividade de editar também promove a circulação e a democratização da leitura de textos produzidos em épocas pretéritas (GONÇALVES, 2020), somando e resistindo junto com as comunidades.

Desse modo, o filólogo recorrerá a diferentes métodos e técnicas, que serão compartilhadas com o leitor, a fim de desenvolver o estudo e a edição de fontes documentais, com perfil editorial de conservação ou de modernização das características linguísticas do texto, de acordo com o público-alvo, promovendo um diálogo ativo com as áreas de Historiografia, Linguística e Literatura.

Na Bahia do início do século XIX, as tentativas de repressão e silenciamento da população negra escravizada foram diversas e constantes. Mas se havia atos de violência, ocorreram ações de insubmissão cada vez articuladas que ameaçavam a estabilidade do governo e dos proprietários locais.

As fontes administrativas e jurídicas registram atos de enfrentamento e de luta dos escravizados rebeldes. Nesse contexto, os escravizados aterrorizavam as autoridades provinciais na época do Brasil Império, que instituíam medidas repressivas de segurança para garantir a defesa de engenhos ameaçados pelas revoltas. Para Reis (2003, p. 105), grande referência no estudo das ações de protestos na Bahia, as incertezas cercavam a capital, as vilas do Recôncavo e os engenhos, pois “uma onda de pequenos levantes de escravos perturbou o tênue equilíbrio social da Bahia entre os anos de 1827-1831”.

É possível conhecer mais um pouco sobre esse capítulo da nossa história baiana a partir da análise filológica de um documento específico: o Ofício de José Egídio Gordilho de Souza Barbuda, Visconde de Camamu e presidente da Província da Bahia, a José Clemente Pereira, Bahia, 7 de dezembro de 1829, sobre a necessidade de organização de destacamentos militares para a defesa dos engenhos ameaçados por outra sublevação de escravos. Um Ofício, é  um “documento não-diplomático, informativo”, que serve como “meio de comunicação do serviço público”, “entre subalternos e autoridades” ou “entre os órgãos públicos e entre estes e os particulares, em caráter oficial” (BELLOTTO, 2002, p. 77).

Ofício do Visconde de Camamu sobre a organização de Destacamentos militares diante da iminente revolta de escravos. Bahia, 7 de dezembro de 1829. Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Em um período marcado por turbulências sociais e políticas na Bahia, face às conspirações rebeldes que estavam em curso (DANTAS, 2011), era preciso organizar um plano de policiamento para combater as rebeliões, especialmente no Recôncavo baiano. As autoridades tinham algumas questões relevantes a serem resolvidas, entre as quais a necessidade da gestão do controle social da população negra, diante da dificuldade de obter apoio policial da capital baiana. Dessa forma, acontecimentos como esses motivaram atos administrativos – a exemplo do plano de repressão às sublevações registrado no Ofício de 1829 – que se traduzem por ações interventivas contra a ameaça das revoltas. 

No Ofício de 7 de dezembro de 1829, o presidente da província destaca que sucedeu outra sublevação de escravos que foi prontamente sufocada, mas que deixou “os moradores do Recôncavo sobremodo receosos, sobressaltados tanto mais pelos motivos que há de desconfianças, que ainda mal fundada, não se devem desprezar (Ofício, 1829, f. 1r, l. 6-9; excerto, com base na edição que foi modernizada, considerando o público-leitor).

O próprio crescimento de desconfianças de que aconteceriam mais revoltas e o descontentamento do povo com as autoridades nacionais demandaram redobrar a vigilância com o fim de conter esses movimentos, antes que estes aconteçam. Esse fato é atestado na divulgação no Ofício do Visconde de Camamu, que elaborou um plano de apoio militar, com o fim de conter as rebeliões dos escravizados e mostrar aos proprietários o cuidado com a ordem local: “a este respeito me oficiaram algumas autoridades e fazendo-me os proprietários mais abastados de Engenhos a representação inclusa, pedindo em primeiro lugar que se colocassem os Destacamentos de 2ª Linha que já tinham sido em outro tempo postos, conforme o Plano de Polícia […] (Edição modernizada – Ofício, 1829, f 1r, l. 9-15).” Segundo Reis (1992, p. 118), essas medidas decorrentes do plano do Visconde de Camamu foram “endossadas pelo ministério da Justiça”.

Nesse clima de insegurança que cercava a província e de sublevações rebeldes, os proprietários dos engenhos solicitam providências em relação ao retorno imediato dos destacamentos que, em outro momento, foram retirados e que o plano de polícia do presidente da província fosse posto em prática, oferecendo inclusive ajuda financeira nas despesas da execução do plano. Desse modo, “atento a gravidade do caso, mandou renovar os mesmos destacamentos, determinando que se lhes pagasse somente o soldo, e a ver se os referidos proprietários se querem prestar com algum socorro em benefício da tropa como prometem […] (Edição modernizada – Ofício, 1829, f 1r, l. 19-23).” Por outro lado, os proprietários sabiam que os destacamentos não seriam suficientes para conter e extinguir totalmente as rebeliões que aconteciam amplamente no Recôncavo. Mas a proposta com a atuação das tropas militares buscava algum tipo de apoio e manter as revoltas “dentro de limites suportáveis” (REIS, 1992, p. 118). 

Com o crescente temor generalizado, diante dos riscos de revoltas, o governo redobrava a vigilância e adotava medidas repressivas e punitivas. E, visando o controle dos ataques da população negra, organiza e envia tropas de Salvador, na tentativa de manter a ordem e conter os movimentos conspiratórios pela ação policial  (GONÇALVES, 2018). 

Para Reis (2003, p. 69), “em rebeliões espontâneas ou planejadas, na capital e nas vilas do Recôncavo, nos engenhos, fazendas e armações de pesca, os escravos africanos mantiveram os senhores em estado de insegurança constante” e nem mesmo as constantes ações policiais impediam os escravizados de se rebelarem.  

Por fim, conhecer também é uma forma de resistência e a prática investigativa, filológica e histórica, eticamente comprometida com a produção de saberes, se soma a essas outras propostas de desconstrução das narrativas históricas de subalternização da população negra. Nesse viés, “partilhar as leituras de textos históricos por meio de produtos editoriais é propor novas interpretações sobre a história de escravidão, luta e discriminação vivida no passado-presente pelo nosso povo negro”(GONÇALVES, 2018, p. 172). 

As breves reflexões filológico-históricas aqui trazidas, mostram que acompanhar o protagonismo histórico e revolucionário do nosso povo negro na organização de atos de insubmissões, individuais ou coletivos, por direitos e lugares sociais, e de resistências à escravização, nos encoraja a promovermos a circulação de outras narrativas e a continuarmos na luta presente contra o racismo, produzindo debates mais inclusivos e democráticos para a sociedade sobre o  papel da população afrodescendente no Brasil.

Bibliografia Básica

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. As espécies documentais. In: Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de arquivo. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2002. p. 45-90. (Projeto Como Fazer, v. 8).

CANO AGUILAR, Rafael. Introducción al análisis filológico. Madrid: Castalia, 2000.

DANTAS, Mônica. Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.

GONÇALVES, Eliana Correia Brandão. A Filologia e o estudo de Requerimentos do Arquivo Histórico Ultramarino. Filologia E Linguística Portuguesa, São Paulo, 22(Especial), p. 75-92. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v22iEspecialp75-92

GONÇALVES, Eliana Correia Brandão. (2018). Leitura crítico-filológica de Resolução de 1822: revoltas, vigilância, violência e punição na Bahia do século XIX. Filologia e Linguística Portuguesa, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 53-174, 2018.

MCKENZIE, Donald Francis. Bibliografía y sociología de los textos. Tradução Fernado Bouza. Madrid: Akal, 2005.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

REIS, João José. Recôncavo rebelde: revoltas de escravos nos engenhos baianos. Afro-Ásia, Salvador, n. 15, 1992, p. 100 – 126, 1992.

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